CAPÍTULO 2

Tudo parece normal, até o capítulo 2

Fatine Oliveira
Literatura Brasileira

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Não era do tipo sozinho no mundo. Tinha amigos, família e uma boa namorada. Tinha também um emprego bacana, bons colegas de trabalho e estava na profissão que amava. Visitou lugares diferentes, conheceu pessoas interessantes, provou novos sabores. Experimentava a vida sempre que podia. Para muitos, a maioria aliás, era um cara feliz e realizado. Ele mesmo sabia disso. Estava realizado e completo. Por isso mesmo não entendia o que sentia.

Todos as noites, depois que o relógio virava as horas seu coração apertava e ele podia ouvir a porta se abrir. Era sua visita noturna, religiosamente programada: tristeza. Não contou aquilo pra ninguém, não acreditariam nele. Era do tipo brincalhão e boa praça. Desacreditariam de cara em suas palavras. Pensou em falar pra namorada, marcou lugar e dia, contudo desistiu na hora que vira aquele brilho vivo em seu olhar. Apagar aquela chama era covardia demais. Precisaria ter coragem e enfrentar seus dilemas sozinho.

Duas e quinze da tarde. Suas mãos gelavam enquanto esperava na entrada do consultório. Um rádio ligado numa dessas estações de MPB espalhava timidamente as palavras de Chico Buarque.“Ah, se já perdemos a noção da hora, se já jogamos tudo fora…” em sua frente uma paisagem com montanhas e uma casinha à margem de um tímido rio enfeitava a parede com sua moldura dourada. Sentiu-se como aquele quadro, cheio de coisas admiráveis, porém preso por limites forjados para adornar quando na verdade conferiam um final ao artista.

A porta se abriu. O paciente saiu com a cabeça baixa e, quase sem levantar a cabeça, despediu-se dele. O terapeuta o convidou a entrar com um largo sorriso e uma voz macia. A sala era ampla, tinha livros em uma estante bem moderna, um vaso de orquídea sobre a mesa e um conjunto de sofá e poltrona separados por um belo tapete. Nunca tinha ido ao terapeuta antes, em verdade jamais cogitou algo daquilo pra sua vida. Por isso, devorava os detalhes com os olhos curiosos de uma criança.

Sentado com as mãos repousadas sobre a poltrona o profissional fazia suas perguntas. Ele respondia como se estivesse em uma entrevista de emprego. Não sabia porque fazia aquilo, mas sentia que deveria impressioná-lo. Possivelmente, queria provar para si a inexistência de algum problema. “Mentiras, a pior forma de se começar uma relação. Porquê não me mostra quem realmente é?” perguntou o terapeuta. Ele deixou seu olhar cair e soltou um suspiro. Conversaram por alguns minutos e remarcaram a próxima sessão após acertarem os horários e formas de pagamento. Despediram.

Ao sair do prédio já sabia o que faria. Observou o movimento na rua. Tantas pessoas, destinos cruzados, pensamentos perdidos transitando entre os carros. Tantas vidas importantes passando entre si sem o menor interesse possível. Somos únicos e ao mesmo tempo tão parecidos. Sua mãe sempre dizia o quão era especial. Todas as mães o dizem, pensou. Talvez sejamos para elas e mais ninguém, aos outros éramos apenas mais um. Era tudo tão líquido que podia sentir a vida escoar pelo sarjeta.

Resolveu caminhar. As coisas pareciam ter mais sentido afinal. Não voltaria à terapia, sentia-se decidido nisso. Nada seria tão diferente quanto ao que vivera desde então, falar da vida não a faria menos pesada. Aliás, continuar com aquilo lhe parecia um erro. Tudo indo tão bem porquê insistir em algum problema? O que o impedia de acreditar em sua felicidade? Eram tantas questões atormentando sua mente, que não ouviu seu celular tocando no bolso direito do casaco. Assim como não viu o sinal abrindo para o trânsito. E não viu o caminhão de carga correndo para não perder o sinal. Muitos detalhes escaparam de seu olhar naquela tarde. “É nos detalhes que o diabo mora”, dizia sua avó. Que Deus a tenha, finalmente encontraria o neto novamente.

O policial tentava manter as pessoas afastadas. Um enorme congestionamento se formava e complicava ainda mais com a curiosidade alheia. Aquilo o irritava, como podiam gostar de ver gente morta? Pensava. Uma poça de sangue espalhava embaixo do caminhão e não muito longe um celular apitava. Achou que seria da vítima, pegou e ouviu a mensagem de voz armazenada:

_Caio? Porquê não atendeu o telefone? Bom, queria te dar uma ótima notícia. (risos) Acho que teremos de fazer mais um quarto em nosso apartamento. (risos) Me liga quando ouvir. Beijos, te amo!

A vida é uma lástima, pensou o policial. Um rapaz jovem, provavelmente feliz, devia ser realizado ter uma morte assim. A vida é uma piada de mal gosto, afinal.

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Fatine Oliveira
Literatura Brasileira

Publicitária e escritora (por atrevimento mesmo). Entre palavras e rabiscos vou deixando minha marca nessa vida. Ou seria a vida que marca minhas palavras?