A extraordinária graça comum de Karl Ove Knausgård

Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção
9 min readNov 6, 2017

Quero ser franco a dizer “fui eu”
Quero-me aflito a afirmar quem fui
Quero ter queixo caído a ganhar o céu
E dedo para pôr onde dói
Estar solto para ser só mais um
No indulto da graça comum
(Samuel Úria — Graça comum)

Assim como todas as outras coisas são, nas vidas de todas as outras pessoas, a música “Graça comum”, do cantor português Samuel Úria, foi divinamente providencial na minha. Alguns anos após deixar uma igreja muito ligada ao movimento seeker-sensitive, do qual uma das características mais marcantes é a transformação do culto público em um grande espetáculo chamativo que atraia as pessoas mais pela forma do que pelo conteúdo, eu vinha refletindo sobre como essa prática destoa da vida normal, e a música de Úria foi muito útil nesse processo.

A maioria de nós vive vidas bem comuns e bem pouco espetaculares: trabalhamos duro para botar a comida na mesa, nos esforçamos para testemunhar o evangelho aos de fora da igreja e para cuidarmos uns dos outros dentro dela — nos esforçando para viver “a vida comum do lar”, como nos instrui o apóstolo Pedro. E é exatamente sobre isso que a música de Úria fala, e por isso ela foi tão providencial. Nela, o cantor lusitano expressa seu desejo por uma vida de sinceridade e franqueza em relação à nossa confusa situação atual, de justos, mas ainda pecadores, e o contraste entre a aflição quanto ao passado e o assombro de fazer cair o queixo ao imaginar o céu que nos foi prometido. As lutas nas “trincheiras cotidianas da existência adulta” por vezes nos distraem de tal forma que esquecemos do terror das trevas das quais fomos resgatados e da magnitude do céu que nos aguarda.

Precisamos da liberdade que só vem pela graça “comum” — não uma graça sensacional e fantástica, mas a graça de viver dia a dia perante o Senhor, vencendo as pequenas e ordinárias batalhas dessa vida: pecados confessados e perdoados, tentações vencidas, cada dia de trabalho maçante em honra a quem nos dá o pão de cada dia e cada oração em família agradecendo pela refeição que não vem de nossas mãos. Não precisamos de promessas grandiosas sobre como podemos mudar o mundo: precisamos aprender a amar a Deus acima das tentações de dinheiro fácil, mas sujo, e ao nosso próximo, por mais irritante que ele seja, como a nós mesmos. Precisamos de “mãos de mendigo a puxar para cá, e um senso de não merecer”, como Úria suplica em outro trecho da música. Precisamos de graça para as coisas pequenas do dia a dia. Precisamos de Karl Ove Knausgård.

Oi?

Das várias coisas boas que o Twitter (a melhor rede social de todas) me proporcionou, uma das melhores foi ouvir falar, lá, do escritor norueguês Karl Ove Knausgård, e sua obra-prima Minha luta. Entre um meme aqui e uma piada sobre política ali, algumas pessoas que eu sigo no Twitter começaram a falar sobre esse livro; um amigo meu que também frequenta esses mesmos círculos comprou (o primeiro da série), leu, gostou, recomendou e, pouco tempo depois, eu segui o mesmo rumo. Se você é dos que perde tempo em redes bem menos importantes (como o Facebook) e bem mais irritantes (como o WhatsApp), eu lhe trago um resumo do que é a obra e quem é seu autor. Minha luta é uma série de seis romances autobiográficos, publicados entre 2009 e 2011, tendo se tornado um fenômeno na Noruega, país de origem do autor, vendendo 500 mil cópias lá — em um país com pouco mais de 5 milhões de habitantes, é um livro para cada 10 noruegueses — e já traduzido para mais de 22 línguas. No Brasil, os cinco primeiros volumes já foram traduzidos e publicados pela Editora Companhia das Letras.

E sobre o que ele fala? Nas palavras do próprio autor, Karl Ove Knausgård, sobre “as banalidades e humilhações da minha vida, os momentos particulares de alegria e aqueles pensamentos obscuros que a maioria das pessoas não admite que os tem nem para si mesmos”. Um autor até então pouco conhecido leva cerca de 3.600 páginas para contar a história de sua vida, e o fato de não ser muito conhecido diz muito sobre essa vida por ele contada: não há nada de mais nela. São 3.600 páginas de vida ordinária. Os acontecimentos mais marcantes são justamente os mais comuns a qualquer um de seus leitores. Morte de familiares, nascimento de filhos. O primeiro grande amor, a primeira grande decepção amorosa. Casamento. Faxina. Amigos. Festas de criança. Não que essas sejam coisas pequenas ou desimportantes, mas são pontos altos e baixos comuns a todos nós. Karl Ove ficou conhecido por contar a história de um mero desconhecido.

Mas o que há de tão interessante assim na história de um notável desconhecido a ponto de fascinar 10% da população norueguesa e meia dúzia de brasileiros frequentadores do Twitter? Em uma época em que a vida das pessoas nunca foi tão exposta, inclusive pelo uso desmedido das redes sociais, em que todo mundo sabe tudo da vida de todo mundo, por que uma selfie literária nórdica de seis volumes se destaca?

Obviamente, muitos já tentaram responder, e dificilmente eu serei capaz de falar algo que já não tenha sido dito ou que revolucione todo o nascente campo da crítica literária knausgårdiana; mas, se o próprio autor sempre precisa repetir em suas entrevistas sobre essa obra que ele não tinha grandes aspirações ao escrevê-la além de simplesmente recontar para si sua própria história e “pensar bem devagar por meio de escrever”, eu não me proponho aqui a nada diferente disso: não sei por que o livro é tão importante para tantas pessoas, mas acho que sei o porquê para mim. Falemos um pouco disso.

“Todo mundo quer salvar o planeta, mas ninguém quer ajudar a mãe a lavar a louça”, disse P. J. O’Rourke. Trazendo isso para onde a conversa começou, para o descompasso entre a expectativa extraordinária que é lançada, infelizmente, sobre tantas pessoas em tantos cultos de tantas igrejas, de que devemos viver “nossa melhor vida agora”, e a realidade de que a maioria de nós mal consegue passar pela rotina de trabalhar para pagar impostos para poder trabalhar, a Minha luta de Karl Ove foi impactante exatamente por retratar… a nossa luta.

Explicando melhor do que eu, Michael Horton diz o seguinte: “Enfrentar mais um dia, com as labutas ordinárias de pessoas ordinárias, é muito mais difícil do que perseguir meus próprios sonhos sobre as grandes aspirações para minha vida”. Esse aspecto, esse conflito, de estarmos vivendo um cristianismo que projeta visões grandiosas sobre viver uma vida impactante, profunda e com significativos propósitos, foi o que levou Horton a escrever um livro inteiro sobre isso, com o sugestivo título de… Ordinary (“Simplesmente crente”, Editora Fiel).

E se Horton me ensinou a doutrina correta e Samuel Úria deu o tom e o ritmo, Karl Ove foi, de forma muito particular, um grande alívio. Suas digressões a respeito do significado da vida e da morte não surgem após grandes e marcantes acontecimentos surpreendentes e fantásticos, mas enquanto arruma a casa de sua avó em preparação para o velório de seu pai recém falecido — descrevendo por mais de 40 páginas todo o processo de limpeza da casa, dando nome a cada produto de limpeza utilizado, cada pano molhado, usado, torcido e usado novamente para limpar o corrimão da escada, o parapeito das janelas, a bancada sobre a lareira. Todo o peso e a importância de sua transformação de jovem solteiro e beberrão em pai de família diligente no cuidado dos filhos são narrados à sombra da festa de aniversário de uma amiga do jardim de infância de sua filha mais velha, cena que engloba quase todas as 600 páginas do segundo volume.

Como isso é diferente da espiritualidade de acampamento que, muitas vezes, é tudo que temos ao nosso alcance. Somos treinados nas nossas igrejas, desde pequenos, a buscar momentos sublimes de emoção e quebrantamento, as chamadas “experiências”. Perguntamos uns aos outros se “o culto foi bom?”, e a resposta positiva está normalmente condicionada a algum momento da liturgia, geralmente na música, em que nos perdemos em nossas emoções e só assim, supostamente, nos encontramos com Deus. Se a rotina de cultos “bons” (outros nem tanto) não for o suficiente, temos os retiros, os acampamentos, os congressos e conferências, dias inteiros dedicados exclusivamente a buscarmos as tais experiências. Não me entenda errado: emoções propriamente ditas são, sim, parte da vida cristã, e não há nada de errado em se emocionar, nem é pecado ir ao acampamento de carnaval, mas esse é um bom momento para se perguntar se a sua vida, a sua caminhada, não tem se resumido aos momentos de emoção e a busca constante por eles.

Sua festa de casamento dura uma noite, mas a luta por morrer para si mesmo em favor do cônjuge e amá-lo como Cristo ama a igreja dura a vida inteira, seja nas férias em família que não saem conforme o planejado, seja na pia de louça suja para lavar. O parto mais longo e mais difícil não dura mais que algumas horas, mas não tiramos foto nem filmamos os momentos difíceis e tão pouco recompensadores, na sua maior parte, em que nossos filhos não nos obedecem ou parecem fazer de propósito o contrário do que acabamos de ensinar. Fazemos e renovamos votos de fidelidade a Deus a cada acampamento de carnaval, prometendo, dali em diante, agora sim, glorificá-lo em tudo que fizermos, quer comamos ou bebamos, mas não nos lembramos desses votos na tarde de quinta-feira, no final do expediente, quando o chefe pede para o dia seguinte aquele extenso relatório na exata hora em que desligamos o computador e começamos a nos levantar para sair.

“Tudo na minha experiência imediata respalda a minha crença profunda de que sou o centro absoluto do universo; a pessoa mais real, fulgurante e essencial que existe”, nos diz David Foster Wallace a respeito de quem somos, e esses ritmos de picos de emoção intercalados por vales de tédio e vida comum só reforçam esse sentimento. É por isso que Karl Ove foi tão importante para mim — e para tantos outros, creio eu. Sua narrativa aparentemente lenta, entediante e sem sobressaltos me lembra de que a maior parte da minha vida ocorre precisamente nos intervalos entre os momentos marcantes. Sua honestidade brutal acerca de si mesmo, de seus acertos, mas especialmente de seus erros, sua franqueza ao dizer “fui eu”, nas palavras de Úria, me lembra que minha vida não é tão especial e diferente das outras vidas das outras pessoas como eu gostaria que fosse.

Evan Hughes, falando sobre como a experiência particularmente desinteressante de Karl Ove parece ressoar com todos que o lêem, diz que ler o norueguês é como “abrir o diário de outra pessoa e encontrar seus próprio segredos”. Se eu comecei falando de como a vida cristã pregada por certas igrejas não se parece em nada com a vida normal da maioria de seus membros, a revelação de nossos próprios segredos na leitura de Karl Ove me parece ser exatamente o que Paulo convoca seu jovem aprendiz Timóteo a fazer e, por consequência, o que todas as igrejas depois dele também deveriam: pregue a Palavra, pois só ela tem o poder de nos revelar quem nós realmente somos. É disso que precisamos.

É na labuta semanal de nos sentarmos sob o ensino da palavra, lida e aplicada, que eu começo a perceber que não sou o centro absoluto do universo, o protagonista da história do mundo. É quando pessoas ordinárias e desinteressantes abrem mão de seu conforto para servirem e cuidarem de outras pessoas ordinárias e desinteressantes que somos lembrados de que foi Deus quem providenciou esses meios de sermos servidos. Horton, novamente melhor do que eu: “A CNN não vai aparecer em uma igreja que simplesmente confia que Deus irá fazer coisas extraordinárias através dos meios de graça ministrados por servos ordinários. Mas Deus vai. Esses meios de graça e a comunhão ordinária dos santos que nos guiam e nos sustentam ao longo da vida podem parecer frágeis, mas são os vasos de barro que escondem um rico tesouro: Cristo e todos os benefícios da salvação por ele alcançada”.

Essa é a experiência de ler Karl Ove Knausgård e sua luta. Sua obra se baseia em descrever momentos e pensamentos pequenos e corriqueiros, como costumam ser os nossos cultos de Domingo e as vidas dos que os frequentam, mas são cheios de importância, pois são eles que vão se acumulando ao longo dos dias, semanas e anos, formando e reformando nossa própria história, e nós vamos contando cada um para alcançarmos sabedoria, enchendo uma vida comum e desinteressante como a minha e, admita, a sua, da divina graça comum — mas extraordinária — de ser só mais uma pedra que ele está trabalhando para a construção de um monumental edifício.

KNAUSGÅRD, Karl Ove. Minha luta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

📖 Livros citados:
Os livros do autor: http://amzn.to/2A0mp84

Se você ficou com vontade de adquirir o livro, considere comprar através do link acima. Assim você ajuda o Literatura & Redenção a continuar abençoando muita gente.

--

--

Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção

Isto é água e talvez esses esquimós sejam bem mais do que aparentam.