A ilusão do valor absoluto da literatura

Tarcizio F. Carvalho
Literatura e Redenção
9 min readJun 18, 2018

Mesmo ouvindo a história de Chapeuzinho a vida toda, tantas pessoas ainda se oferecem aos perigos e se entregam ao autoengano.

Quando falamos e escrevemos para um público, nos expomos. Isso é muito bom! É preciso uma dose de coragem para expressar pontos de vista, debatê-los e até apanhar por sua causa. Um bom exemplo de como a exposição pode ser provocativa é o texto de Millôr Fernandes reproduzido abaixo. Ao ler parte dele no blog “Como educar seus filhos”, em artigo de Marcela Saint Martin, fui logo verificar a fonte:

“Pensar é a todo o momento e a todo custo. Pensar dói, cansa e só traz aborrecimentos. Melhor é não pensar. Mas pensar não é facultativo. Se o cérebro, a mínima parte dele que seja, deixa de estar alerta por um momento, penetram lá, como parasitas difíceis de erradicar, ‘ideias’ vindas da imprensa, do rádio, da televisão, da propaganda geral, dos produtos em série, do consumo degenerado, dos doutores em lei, arte, literatura, ciência, política, sociologia. Essa massa de desinformação, não só inútil como nociva, nos é, aliás, imposta de maneira criminosa nos primeiros anos de nossa vida. E se, algum dia, chegamos a pensar no verdadeiro sentido do termo, todo o restante esforço da existência é para nos livrarmos de uma lamentável herança cultural. Pois, infelizmente, o cérebro humano é um dos poucos órgãos do corpo que não tem uma válvula excretora. E as fezes culturais ficam lá, nos envenenando pelo resto da vida, transformando o mais complexo e mais nobre órgão do corpo numa imensa fossa, imunda e fedorenta. Um lamentável erro da Criação.”

Eu não sabia se acionava a válvula e mandava pelo esgoto também as opiniões de Millôr, ou se me assentava à roda com ele e Otávio Morais, como nos idos de 1967, quando compartilhou essa perspicaz, porém amarga, reflexão sobre o pensar. Escolhi ficar na roda e aceitar a provocação. Apesar da divergência fundamental, temos um elemento em comum: a ideia da Criação. E ainda há outro aspecto que nos irmana: adotar uma postura ao ser informado de que o ser humano foi criado por Deus à sua imagem, postura de crença ou descrença — assumindo que, um dia, Millôr tenha lido todo o relato bíblico da criação do ser humano. Como no projeto do Criador não temos uma válvula excretora cerebral, vamos com contentamento conversar e avaliar.

É engraçado como gênios podem ser tão argutos na percepção e uso das palavras, e ao mesmo tempo tão tiranos e intolerantes. Se Millôr fosse o criador, teríamos sido excretados, por certo. Mas a sua ideia de baixar a guarda e entrarem parasitas é brilhante, combina bem com o nosso cotidiano. O farelo na mesa à noite, as formigas pela manhã. A comida fora da geladeira, as bactérias em ação no dia seguinte. Frustração em um dia, e uma possível gripe na semana. Vulneráveis, constatamos: “estou com a resistência baixa”. Isso significa que há sempre alguém, algum perigo à espreita.

Como bem lembrou Millôr em sua lista: a imprensa, o rádio, a TV, as propagandas, os produtos, os especialistas, os artistas, os literatos, os cientistas, os políticos, os sociólogos e tantos mais. E nem se pode deixar de fora o pai, a mãe, os irmãos, os amigos e, menos ainda, Deus e seus concorrentes — aqueles que desejam ser deus para nós (sem as credenciais: com as promessas, mas sem as recompensas). São inúmeros os riscos.

Entretanto, como um cérebro aprende deixando de estar alerta? Como ele saberia que deixou de estar alerta? Que informação inata existe ali para poder avaliar o que é perigoso, ou até mesmo problematizar as informações que recebe? Como alguém aprende sem que ideias já lhe tenham penetrado o cérebro? Será uma reedição de Mogli? Será que um ser humano que jamais tenha tido contato com outros consegue aprender por si só? Nem mesmo na ficção! Mogli e Tarzan ilustram isso muito bem.

Afinal, o que é o ser humano? Alguém que, deixado solto em sua própria biologia, fará todas as sinapses necessárias para vir a ser um homem superior? Um homem capaz de experimentar a vida com maior intensidade e profundidade do que a humanidade comum, um homem criador dos seus próprios valores, ao invés de aceitar os ensinos morais de outros, como o Übermensch nietzschiano?

Na Bíblia o poeta registra a resposta de Deus a essa pergunta: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites? Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de glória e de honra o coroaste” (Salmo 8, versos 3 a 5).

Por esta razão, todo aquele que tem a Bíblia como livro normativo para a sua vida precisa avaliar as vozes que está ouvindo, porque não somos gente sem importância!

Nesse sentido, gostaria de ter podido contar ao Millôr que, embora não haja válvula excretora no cérebro, temos o senso do Divino no coração, a semente da religião que Deus mesmo imprimiu em toda a natureza, e especialmente no ser humano. É isso que faz com que estejamos sempre alertas para decifrar o que outras vozes afirmam sobre o que é uma pessoa. Quando um autor emite opinião que tangencia ou atravessa o campo da antropologia, seja ela biológica ou social, imediatamente levamos até à malha do senso Divino e utilizamos as ferramentas analíticas para comparar. O que, para aquele autor, é o ser humano? Essa resposta, obtida facilmente ou por meio de uma tarrafa, é de suma importância. Pode ser que não peguemos os peixes desejados, pois a amostra de texto é pequena; mas um pescador faminto nunca despreza uma refeição.

Será que Millôr cria que o ser humano seria somente um arranjo bioquímico e que, como cantado em “Aquarela”, um dia apenas descolorirá? Pois somente crendo em um ser tão autonomamente determinado é que se poderia querer evitar as ideias vindas de fora. Só pode ter sido brincadeira dele! Caso contrário, sua opinião sobre o assunto seria mais uma massa de desinformação inútil, nociva e criminosa, usando suas próprias palavras.

Há tanta produção cultural interessante! — até mesmo os diálogos memoráveis de Millôr. E toda essa produção nos oferece uma perspectiva distinta de como olhar o mundo e suas manifestações. Não podemos jogá-la fora, mesmo que ela nos traga descontentamentos momentâneos ou oposições sinceras.

Ainda bem, por um lado, que o artigo de Marcela terminou com a citação de Orton Lowe: “dentre todas as possibilidades existentes na vida educacional de uma criança, nenhuma é mais promissora do que a possibilidade de auto aperfeiçoamento por meio da leitura de bons livros”, um caminho oposto ao de Millôr. Ora, se o aperfeiçoamento se dá por meio dos livros, já não é “auto” aperfeiçoamento. Passa a ser um aperfeiçoamento motivado pela voz, ou vozes, lidas ali, ou pelas vozes que medeiam as histórias, como as dos pais e professores. Esse é o caminho proposto por Orton. Ele relativiza essa autonomia do ser humano ao admitir que há uma multiplicidade de ideias, e dada a nossa limitação intrínseca, precisamos ouvir e interagir com muitas delas.

De fato, Orton sugere que as crianças, em seu tempo livre, incluam a prática da leitura: “decorar uma poesia pequena, aprender uma estória de conto de fadas e de mitos, ler e reler alguns livros muito interessantes, economizar dinheiro para organizar sua biblioteca, praticar a leitura em voz alta ao lado da lareira ou na sala de aula” (LOWE, 1914, vi)*. Entretanto, somente alguém desavisado come figo da índia sem se preocupar com os espinhos, apenas alguém imprudente fica de costas para as ondas do mar e só um louco puxa um cachorro pelas orelhas. As palavras não são neutras e, sem o devido cuidado, podem ferir sua alma.

Por outro lado, o trio Millôr, Marcela e Orton caminha junto na crença de um auto aperfeiçoamento e, em parte, na defesa de uma aproximação à leitura ingênua. Concordamos com a ideia da importância da leitura, afinal, as histórias nos ajudam a nos percebermos seres historicamente inseridos, repletos de signos imaginativos. Por exemplo, ao ouvir sobre as desventuras da Chapeuzinho Vermelho em uma fase da infância, podemos entender que o lobo, mais do que um animal selvagem, representa qualquer perigo a que nos expomos, e que para nos protegermos dele é importante ouvir aqueles que nos ensinam e nos amam, sendo obedientes. Em outra fase mais amadurecida, podemos refletir acerca do engano. Como a Chapeuzinho pôde ser enganada? Existe quem quer enganar, mas existe também quem se deixa ser enganado. Desse modo, assimilamos mais do que informações sobre uma estória; refletimos e amadurecemos ideias que podem mudar a nossa história.

Vemos, assim, que a partir de contos repensamos as convenções e papéis que desempenhamos, e chegamos a viver a vida com mais frugalidade. A literatura nos ajuda a estetizar nossa alma e até a refletir nas responsabilidades mútuas que temos, podendo nos fazer desaguar generosidade. Por tudo isso ela não pode ser ingênua. São muitos espinhos, ondas e mordidas que se apresentam quando um livro é aberto. Um livro aberto é um portal para um conjunto de ideias e pessoas, e precisamos ser equipados até mesmo para ler os tais “clássicos”! As leituras não são neutras e, em alguns casos, nem benignas. Por isso elas precisam ser sempre acompanhadas de conversa, mesmo quando se trata de livros aparentemente “ingênuos”. É por isso que um projeto humanista, mesmo bem-intencionado, não deve ser abraçado sem ser submetido a reflexão e a um olhar cuidadoso. Se ele acredita que as virtudes advindas da leitura de histórias é o resultado natural de uma mente analítica bem alimentada, então a náusea vem.

Sim, náusea, porque já vimos esse filme antes e, até agora, não funcionou no mundo inteiro. Mesmo ouvindo a história de Chapeuzinho a vida toda, lendo-a, contando-a a crianças, sabendo os detalhes de trás pra frente,tantas pessoas ainda sofrem caindo no mesmo erro da personagem: oferecendo-se aos perigos e se entregando ao autoengano.

Quem pode nos resgatar desse baú de histórias, as quais entendemos racionalmente, mas que desregradamente amamos? Amores desordenados não se encantam com a moral final, mas com o sorriso do lobo.

A Bíblia informa que é do coração que procedem as fontes da vida, e que somente Deus é capaz de orientar o ser humano perdido em suas razões. Por isso, ainda que concorde com Orton e Marcela quanto à importância da leitura, sinto falta do que vou chamar de “abordagem cárdica heterônoma” — algo maior que o primado da razão e da autonomia humana que está pressuposto na análise desses nossos interlocutores.

Apesar de seu olhar humanista, Orton abre o primeiro capítulo de seu livro com a passagem bíblica em que Paulo pede os livros a Timóteo! Orton não nos conta, em seu texto, um ponto muito importante dessa história. Você sabe que livros eram aqueles que o apóstolo pediu? Sabe que leitura Paulo tinha prazer em realizar? Qual era a fonte de sua vida? Era a Palavra de Deus. Os livros eram a voz de Deus escrita! Ele tinha mais prazer nisso do que em qualquer outra literatura, porque ali estava a história mãe de todas as outras. A única capaz de nos resgatar de um baú de histórias tão confuso. Não seria interessante achar um baú com um tesouro desses? Um livro que fosse responsável por todas as histórias, e que explicasse cada uma delas? Um livro que você lesse e se sentisse lido por ele todas as vezes… que visse o que há em seu coração e, ao mesmo tempo, falasse a ele, a ponto de, com o tempo, você já não mais saber quem estava lendo quem?

Uma abordagem cárdica heterônoma é o tipo de proposta que venho pensando para a literatura em geral e a infantil em particular — e que vai muito além de simplesmente dar atenção à própria voz. Uma abordagem que sabe sempre qual o ponto de partida, pois se depara com os significados da vida dados pelo Criador, e passa a internalizar a leitura de outro — a do Criador — de modo a construir os moldes para o nosso coração.

Os primeiros seres humanos nasceram com duas relações importantes: tinham um jardim ilustrado e um Criador que regulava tudo pela fala — aquela mesma palavra falada que formou o mundo. Por esta razão ficamos tão fascinados com o poder das histórias contadas: porque, com elas, imitamos a Deus. Como é bom criar mundos! E como é interessante cuidar dos seus desdobramentos à luz da orientação prévia dele!

*LOWE, Orton. Literature for children. New York: The Macmillan Company, 1914, p. vi)

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