Ensaio para um banquete

Débora Rosane
Literatura e Redenção
9 min readJun 9, 2020
Ilustração de Pedro dos Anjos

A brisa fresquinha do inverno ensaiava os seus movimentos neste mês de maio e movimentava os meus cabelos enquanto eu aproveitava uma agradável caminhada pelas ruas de São José dos Campos. Estou em férias na cidade para visitar a família e amigos que há muito não vejo. Embalada pelas canções de uma playlist diversificada que havia criado para utilizar nesses momentos de prazerosa reflexão enquanto mexia os músculos, fui surpreendida por um aroma muito familiar e delicioso que me fez parar diante de uma antiga casa.

Olhei para os lados, um tanto confusa, confesso que até me belisquei um pouco para verificar se aquilo era um sonho, pois o meu olfato foi tomado pelo cheiro do maravilhoso e inconfundível bife acebolado da vovó.

A casa encontra-se abandonada desde o ano passado após uma longa batalha judicial de herdeiros. Muitas vezes o amor ao dinheiro sufoca os afetos e o preço disso é muito alto. Mexi no portão e verifiquei que ele estava apenas encostado e, quando cheguei na entrada principal, percebi que um velho hábito havia sido mantido: a chave encontrava-se debaixo do tapete da porta. Entrar ali naquela casa era adentrar um portal de memórias afetivas da minha infância, “quando eu era feliz e não sabia”, como se costuma dizer por aí.

Os meus cômodos preferidos desse lugar eram a cozinha e a dispensa. Eu costumava pensar que eles eram irmãos gêmeos e tinham poderes mágicos. A minha avó costumava contar que a casa havia sido construída na década de 1940 e que tinha passado por uma reforma em 1975.

Entrei e fui direto até o meu cômodo preferido (previsível, não?). A cozinha já não era exatamente a mesma (obviamente, 26 anos haviam se passado), mas a atmosfera se mantivera; provavelmente pela minha memória afetiva do lugar. Andei até a despensa e, para a minha surpresa, ela estava intacta. Corri os olhos pelo espaço e tudo começou a voltar como se eu tivesse ali mesmo dado play para que o filme da minha vida iniciasse. Aquele espaço fora o laboratório de uma avó tipicamente avó, sabe como é? Aquelas cujos temperos, mesmo seguindo o passo a passo de uma receita do seu caderno escrito à mão, têm sabor, textura e aroma impossíveis de replicar. As avós são as melhores guardiãs dos segredos culinários de família e não há ninguém que consiga arrancar delas o mistério que envolve as suas receitas.

Naquela época, a minha imaginação de criança achava aquela cozinha imensa com todos aqueles armários grandes e lotados de grãos, temperos, utensílios e guloseimas que ficavam na dispensa que a vovó utilizava para guardar os doces fora do nosso alcance, pois, no manual das avós, a regra era clara: a sobremesa só pode ser comida após a refeição principal!

Aquela cozinha guardava memórias de cheiros, sabores e combinações; a mágica acontecia bem ali desde o primeiro raio de sol até o anoitecer, cotidianamente. A vovó mantinha o seu ritual gastronômico de preparar um delicioso pudim que levaria algumas horas de preparo, mas sumiria magicamente em minutos quando os visitantes diários apareciam por lá. O seu filho mais novo casara e tivera uma menina sorridente e tagarela: euzinha. Diariamente o seu filho, vulgo meu pai, a visitava e me levava para comer um delicioso jantar preparado por ela após a escola e antes de seguirmos para casa. Aquele era o momento mais esperado por mim todos os dias. Sempre que podia, eu passava um tempo com a avó cobrindo-a de perguntas infindáveis. Eu ficava pertinho da vovó esperando a sua autorização para lamber a bacia após a massa ter sido posta na forma que a assaria dentro do forno.

Ali, dentro da cozinha e olhando fixamente para a despensa, o cheiro daquele bife ficou ainda mais forte. Como isso era possível? Será que eu estava delirando? Mais um vez, belisquei o braço e, quando senti a dor dilacerante, constatei que estava muito bem acordada.

Movida por uma lembrança que me tomou por inteiro, corri até o supermercado para relembrar uma velha e conhecida brincadeira que a minha avó fazia comigo, que era comprar ingredientes para uma receita de acordo com a identificação de meu paladar e olfato após experimentar os pratos dela. Eu conseguia adivinhar a maior parte dos ingredientes e os que eu não identificava a vovó me apresentava.

Retornei para a antiga casa e fui tomada pela lembrança de que o livro de receitas da minha avó havia se perdido durante as confusões de família pelos bens que ela havia deixado. Como eles não entenderam que o tesouro mais precioso daquele lugar era o livro? Aquelas receitas tinham poderes mágicos, a capacidade de reunir todos em volta de uma grande mesa e fazê-los transbordar de amor uns pelos outros à medida que desfrutavam daquele banquete.

Enquanto pensava sobre isso, uma ideia brilhante se formou na minha cabeça: reunir a família na antiga casa oferecendo um banquete de reconciliação! Aquele cheiro do bife da minha avó que pairava pelo lugar só podia ser um sinal de que a nossa família precisava resgatar o que há muito havia sido perdido: o amor uns pelos outros. Não era à toa que eu estava visitando SJC e tivera aquela epifania.

Ingredientes:

Tia Paula, esposo e filhos.

Tio Marcelo, esposa e filhos.

Meus pais e meu irmão.

Tio Cláudio e filhos.

Argumentação.

Paciência.

Réplica.

Insistência.

Tréplica.

Persistência.

Tia Clara, marido e filhos.

Convite.

Aceitação.

Modo de preparo

Após muitas ligações, recusas, insistência e argumentações, todos toparam participar do evento. A tia Clara foi a que mais apresentou resistência em vir, pois há anos não falava com os irmãos. Ela carregava uma mágoa profunda por todas as desavenças que haviam acontecido. Todavia, durante a nossa conversa, ela deixou claro que abriria uma exceção para participar do evento porque o seu amor por mim era maior do que qualquer mágoa que ela sentia pelos irmãos. Uma pontinha de esperança fez o meu coração se alegrar e eu acabei agendando o evento para dali a uma semana, na hora do almoço. O meu desafio agora seria a elaboração do cardápio confiando na minha memória afetiva para desenvolver a receita do bife acebolado e os seus acompanhamentos.

Um dia antes do grande dia, entrei no supermercado e logo fui reconhecida pelo sr. Francisco, o dono do estabelecimento. Há muito tempo, aquele lugar era uma pequena mercearia que, com o passar dos anos e com a ajuda do filho administrador, havia se transformado em uma das maiores redes de supermercados da região. Instintivamente, coloquei os ingredientes no carrinho, pedi a ajuda do sr. Franscico para encontrar alguns produtos e gastei boa parte das minhas economias com eles. “Será um lindo investimento e valerá cada centavo”, pensei.

Voltei até a casa, que havia sido limpa por uma companhia de limpeza local que cuidou de tirar o pó e os lençóis sobre os antigos móveis, que permaneciam intactos mesmo depois de tanto tempo. Entrei na cozinha, organizei todos os ingredientes na despensa e no dia seguinte cuidei do mise en place. Mantive a porta principal da casa trancada durante toda a organização do evento e pedi que os convidados chegassem pontualmente ao meio-dia, nem mais, nem menos de um minuto.

A mágica, que há muitos anos não acontecia naquele lugar, ganhou vida novamente. Como se o livro de receitas da minha avó estivesse aberto diante de mim, executei todos os preparos com sucesso, pois aquilo estava saindo dos mais ternos afetos do meu coração. O bife acebolado, sem dúvida, foi o carro chefe daquela refeição.

Rendimento

No horário marcado, meus convidados chegaram. Todos eles estavam adornados pelas expectativas a respeito do que aquele dia havia reservado para todos nós. A presença mais temida era a da tia Clara, pois ela fora, repetidamente, mesmo enquanto a minha avó estava viva, a causadora de inúmeros conflitos do núcleo familiar e colecionadora de ressentimentos variados.

Para nossa surpresa, ela entrou na casa e fez um longo e reflexivo passeio pelos cômodos. Silenciosamente, todos a acompanhavam e um movimento antigo de liderança se reconfigurava, pois ela era a primogênita da família. Muitas histórias foram relembradas por ela, especialmente da travessura do tio Marcelo, o caçula, que teve a “brilhante” ideia de experimentar a sensação de passar Vick Vaporub nos olhos! Enquanto todos reviviam do episódio e choravam de rir, o tio ficou vermelho de vergonha e lembrou da refrescância que o produto provocara na ocasião. Comentaram também a respeito de uma mania que a tia Paula tinha de comer pequenas porções de páginas dos seus livros de histórias por acreditar que assim seria possível vivenciá-las na realidade. Além disso, não esqueceram também do dia em que a calça da minha mãe rasgou enquanto ela levantava a perna para subir o degrau do ônibus escolar. As famílias adoram recordar os fatos mais constrangedores da nossa vida, né? A essas alturas, o silêncio que se iniciara já havia sido dissipado quando um a um os irmãos rememoravam as travessuras e confusões da infância. O ar enchera-se de risos de doer a barriga e lacrimejar os olhos.

Um pouco depois, resolvemos adentrar a sala de jantar e nos reunirmos ao redor da mesa. Eu havia separado na mesa o lugar que antes era da vovó e o concedi a minha tia Clara, que relutou um pouco a aceitar, mas acabou cedendo, com lágrimas nos olhos. A minha mãe me ajudou a levar a comida para a mesa e, entre elogios e previsões de que os pratos pareciam saborosos, a tia Clara pediu a palavra:

— A nossa sobrinha Zoe é uma moça muito especial. Se não fosse por ela, esta reunião jamais aconteceria. O seu amor e persistência pela família me faz lembrar o tempo em que a nossa mãe estava viva e lutava para nos manter unidos. Infelizmente, movida por toda a ganância, muitas vezes causei sérios conflitos, inclusive judiciais, entre nós. Eu gostaria de ler o trecho de um livro que tenho lido e que me trouxe a percepção da minha própria realidade.

Ela ficou em pé e leu o seguinte trecho:

Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é o que venerar. E se existe uma ótima razão para talvez venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual — seja Jesus Cristo ou Alá, YHWH ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos — é que provavelmente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. […] Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisar de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.

Essas formas de venerar são traiçoeiras não por serem malignas ou pecaminosas, mas por serem inconscientes. São configurações padrão.*

— Essas são palavras proferidas por um escritor chamado David Foster Wallace, durante um discurso de paraninfo no Kenyon College. O que ele nos comunica? Durante muito tempo, fui movida pelo amor ao dinheiro e, por me deixar levar por isso, abri mão do meu tesouro que é a família. Peço perdão a todos que eu magoei ao longo desses anos, especialmente durante essa disputa estúpida por bens que um dia acabarão e que quando eu morrer não levarei junto comigo.

Naquele momento, todos se levantaram dos seus lugares e se uniram em um grande abraço coletivo. Eu poderia jurar que, se alguém pudesse registrar aquele momento em uma foto, não seria possível enxergar onde começava um integrante daquela família e onde terminava o outro.

Nesse dia memorável, eu pude aprender uma lição preciosa; as pessoas são como ingredientes do grande livro que é a vida. O modo de preparo se configura a partir das combinações dos afetos e também dos desafetos que se dão enquanto tudo é unido dentro de um grande recipiente que nos prepara para o dia do banquete perfeito. Nesse dia, o rendimento da receita será proporcional e na medida em que todos se sentirão plenamente saciados e felizes para sempre!

*WALLACE, David Foster. Isto é água. In: Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. Companhia das Letras, 2012, p. 273. Tradução: Daniel Galera e Daniel Pellizzari.

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