“Federer como experiência religiosa” como experiência religiosa

O apelo transcendente do maior autor de sua época escrevendo sobre o maior atleta de sua época.

Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção
9 min readJul 30, 2018

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“A primeira dose”, como se diz por aí, “é de graça”. O primeiro contato significativo que tive com a obra de David Foster Wallace, autor não inspirado que em breve se tornaria o meu preferido, foi, muito apropriadamente para os propósitos desse texto, em um sermão. Pregando no relato da transfiguração do nosso Senhor segundo Marcos, o pregador traçou um paralelo entre a experiência dos pobres João, Pedro e Tiago diante do Senhor do Universo em sua glória e de Wallace, escritor renomado e tenista amador, escrevendo sobre o maior tenista de todos os tempos, Roger Federer. Dessa ilustração ainda foi possível extrair um meta-paralelo: entre o próprio pregador, um humilde escritor de sermões, e a grandeza da literatura de Wallace. E esses paralelos recursivos apontavam para o fato de que, diante de grandeza, real grandeza, real e inimaginável grandeza, nos sentimos, ao mesmo tempo, humilhados e confortados: “o melhor tipo de gênio é aquele que inspira; ao mesmo tempo que te faz perceber que és pequeno, te faz ver que há muito mais”.

A fama das indicações literárias do Rev. Garofalo (em parte responsáveis até mesmo pela existência do Literatura & Redenção) me fizeram procurar o artigo. “Roger Federer como experiência religiosa” foi publicado originalmente em agosto de 2006 no New York Times e em português em 2012 na coletânea Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, pela Companhia das Letras. O que parece ser apenas o perfil de um grande atleta em seu auge esportivo logo se torna uma reflexão sobre a inspiração, o problema do mal, a beleza e a grandeza de variados tipos e, claro, a tal experiência. Para Wallace,

se você nunca viu esse rapaz jogar ao vivo e então o vê, em pessoa, sobre a grama sagrada de Wimbledon, enfrentando o calor literalmente destruidor seguido de vento e chuva de uma quinzena de 2006, você está apto a vivenciar o que um dos motoristas de ônibus a serviço da imprensa do torneio descreve como ‘uma experiência quase religiosa’. […] Porque ela existe. É difícil de descrever — é como um pensamento que é também um sentimento. Não seria correto extrapolar ou fingir que há nisso qualquer espécie de equilíbrio equitativo; seria grotesco. Mas a verdade é que a divindade, entidade, energia ou fluxo genético aleatório que gera crianças doentes também gerou Roger Federer, e olha ele ali. Olha só isso.

Uma pequena dose de graça foi o suficiente para viciar. Apesar de hoje me considerar um grande fã, e digo "grande" no sentido de gostar mais de ler Wallace do que a média das pessoas gosta e do que a média das coisas que eu gosto, diante dele me sinto muito pequeno. Por muito tempo quis escrever esse artigo, mas tudo que colocava no papel parecia pouco. Mas também me sinto inspirado. Eis alguém cuja escrita o faz querer escrever melhor, mesmo que você sinta lá no fundo que jamais escreverá tão bem. Dito isso, segue minha tentativa de relatar a experiência transcendente de ler David Wallace.

Charles Taylor, filósofo canadense, leva as novecentas páginas de sua obra A Secular Age (“Uma era secular”) para mostrar como o secularismo que caracteriza o pensamento de nossa época é mais do que se vê. O argumento-base de Taylor é que a vida na era secular não significa que ninguém crê mais em qualquer coisa, mas que todos creem de formas diferentes. O humanismo vem tentando, desde seus primórdios, nos envolver no que ele chama de “moldura imanente”, um “teto de bronze” que isola a experiência humana de qualquer referência e experiência de transcendência — o que você vê é tudo o que há. Se muitos acreditam que essa é a realidade da vida na era secular, Taylor sugere algo diferente. A verdade é que o desejo do ser humano pelo transcendente nunca deixou de existir, a eternidade foi plantada no coração do homem, e por mais que se tente suprimir, a verdade continua lá fora.

Dentre os muitos artefatos da cultura pop que poderiam ser usados como exemplo de como essa realidade permeia a vida no mundo real, escolhi um cujo nível de apreço rivaliza com o que tenho por Wallace. Lançada em 23 de agosto de 2017, The Sky Is a Neighborhood (“O céu é uma vizinhança”) é uma música da banda americana Foo Fighters do seu nono álbum, Concrete and Gold. Dave Grohl, vocalista da banda e compositor da letra, relata a inspiração para escrevê-la:

Eu estava deitado uma noite dessas, olhando as estrelas pela janela. Estava apenas imaginando a possibilidade de haver algum tipo de vida lá fora e decidi que o céu é uma vizinhança, que preciamos botar as coisas em ordem para sobreviver nesse universo cheio de vida. […] Estrelas se tornam instáveis, colapsam, explodem e espalham suas tripas, os mesmos ingredientes que formam a vida na terra e formam todo o universo, sistemas solares e planetas. Quando você olha para o céu, percebe que não só você é parte do universo, mas que o universo é parte de nós. Isso realmente mexe comigo.

A letra de The Sky Is a Neighborhood fala sobre tentar dormir à noite, mas o céu continua batendo no teto, e não há como abafar esse barulho; há alguma coisa lá fora insistindo em entrar, e nós tentamos não olhar, mas é impossível. Para tornar a mensagem mais clara e encaixar ainda melhor a ilustração para esse artigo, o videoclipe da música retrata a experiência de duas crianças que tentam dormir, mas um barulho lá fora (a banda, tocando sobre o teto da casa) as impede. O barulho vai aumentando, elas tentam entender o que está acontecendo, o teto vai rachando, a luz vai entrando e penetrando o teto de bronze. O céu está lá fora e não há mais como negar. Veja com seus próprios olhos:

(Não vou nem comentar a figura central do velho livro que parece ser o que revela às meninas a verdade sobre o que há acima do teto e acima do céu.)

Esse tipo de manifestação de um anseio por algo que vá além da moldura imanente está cada vez mais presente na cultura popular, e é apenas um reflexo da incapacidade do humanismo secular de suprimir a inquietude do coração humano por seu criador. Eu poderia listar diversos outros exemplos disso, mas vou usar só mais um, para voltar ao nosso tema central após esse breve desvio.

Tudo aquilo” é um conto de Wallace, publicado pela revista The New Yorker (um histórico bastião do secularismo, veja só). A história, relatada por um narrador adulto, diz respeito à sua experiência, quando criança, com um caminhão betoneira supostamente mágico recebido como presente de seus pais. Ao lhe darem o presente, seus pais lhe explicam a mágica: toda vez que ele puxasse o caminhão, o barril betoneira iria girar, mas só quando ele não estivesse olhando. E o que o narrador tentou fazer, como qualquer um de nós? “Como adulto, eu percebo que a razão pela qual passei tanto tempo tentando pegar o barril rodando é que eu queria me certificar de que não conseguiria. Se eu tivesse sucesso em ser mais esperto que a mágica, ficaria arrasado”. O relato de uma criança fascinada por mágica não faz de nenhum autor secular uma experiência religiosa, mas o que espanta nessa história, e ilustra a diferença entre Wallace e seus pares pós-modernos, é o que o narrador, já adulto, afirma:

O que se passa por ateísmo nos dias de hoje ainda é, em si, uma forma de adoração. Um tipo de religião antirreligiosa, que adora a razão, o ceticismo, o intelecto, provas empíricas, autonomia humana e autodeterminação. […] o fato de que as conexões mais significativas e poderosas de nossas vidas são, ao mesmo tempo, invisíveis para nós, me parece um argumento convincente da reverência religiosa, não do empirismo cético, como resposta para o sentido da vida.

Aquela experiência de infância com a mágica não foi deixada para trás como “coisa de criança”, mas é fundamento de uma vida adulta que reconhece não só os limites do secularismo humanista e a desnutrição existencial que resulta dele, mas também que a possibilidade de um mundo não mais limitado por ele explica melhor as realidades desta vida. E quando a New Yorker publica uma história sobre argumentos convincentes da reverência religiosa como resposta para o sentido da vida, você percebe que alguma coisa está errada.

Ou certa, nesse caso.

Graça Infinita. Um calhamaço de mais de mil e duzentas páginas — similar ao Secular Age de Taylor no tamanho e no conteúdo, mas diferente na forma — , a obra prima de Wallace narra em prosa o que Taylor descreve em filosofia e história. É difícil resumir a trama do livro (ou a falta dela), mas é possível afirmar com alguma dose de confiança que trata do anseio do ser humano na era secular por algo maior que si mesmo para dar significado à vida debaixo do sol e tudo o mais que estamos falando até agora. Sobre a escolha do título em português, o tradutor Caetano Galindo confirma:

Meu documento de word se chama Infinda graça. […] Eu gosto da ligeira dupla leitura fonética com “fim da graça” e gosto, sim, até da leve ressonância religiosa do termo graça. O livro tem ALTAS ressonâncias no mínimo místico-religiosas.

Uma boa parte do livro se passa em um casa de recuperação e acompanha alguns dos homens e mulheres nela residentes. Don Gately, um dos personagens principais do livro, é usado de forma autobiográfica por Wallace para retratar sua própria batalha contra os entorpecentes. Um tempo depois da publicação, o autor revelou que usou esse cenário, e o relacionamento de Gately com o Alcoólicos Anônimos em particular, para representar a experiência de uma comunidade religiosa. Para ele, era preciso um contexto de transcendente com um Poder Superior (na linguagem do AA) e de comunidade horizontal, de aliança e comunhão com outros, para resistir à tentação da Substância. Um personagem principal que busca isso na igreja e no cristianismo seria um ataque muito direto à sensibilidade intolerante pós-moderna da qual o autor fazia parte, mas queria alcançar e abrir os olhos, então vamos de AA.

De modo específico, a situação que Wallace mais usa para ilustrar esses anseios transcendentes (e a nossa dificuldade de lidar com eles por conta do secularismo) é a da oração. O dia no AA começa e termina de joelhos no chão, pedindo ao Poder Superior serenidade, coragem e sabedoria, e grande parte do livro relata a humilhação e o conforto envolvidos nesse processo:

Ele diz que, quando tenta orar, meio que tem essa imagem na cabeça, das ondas cerebrais ou seja lá o que for das suas orações indo e indo, sem nada para impedi-las, indo, indo, irradiando no espaço e ultrapassando seus limites, indo e nunca atingindo Alguma Coisa lá fora, muito menos Alguém com ouvidos para ouvir. Muito menos Alguém com ouvidos para se importar o mínimo que fosse. Ele está chateado e envergonhado de falar disso ao invés de simplesmente mencionar o quanto o programa é muito bom e te faz enfrentar o dia sem ingerir a Substância, mas essa é a verdade.

Sobre o período em que Wallace frequentou um grupo do AA que funcionava em uma igreja batista perto de sua casa e acabou se envolvendo em outras atividades dessa igreja, não existem provas concretas o suficiente para acreditar que tenha se tornado cristão. Mesmo que não seja o caso — embora minha esposa mantenha a firme convicção de que o encontraremos na Nova Jerusalém (“não é possível que um coração não regenerado escreva esse tipo de coisa!”, ela costuma repetir) — , Graça Infinita, e praticamente todas as suas outras obras, têm esse fundo transcendente que permeia toda sua forma de relatar, de forma ficcional ou jornalística, o que ele entendia ser a vida humana comum e ordinária. Se você abrir os olhos e olhar atentamente, olha ele ali, você talvez veja que há muito mais para se ver do que imaginava. Olha só isso.

A oração do AA ou o backhand de Roger Federer são esses pequenos furos na moldura imanente, no polido escudo de bronze no teto. A luz que vem de cima e invade o quarto são vislumbres de uma vida que pode, e deve, ser aberta para o transcendente, o religioso, o espiritual. “Nas trincheiras cotidianas da vida adulta”, como ele costumava dizer, “não existe isso de ateísmo”. Algo está lá fora, você só precisa atentar:

Olhe. Escute. Use os ouvidos que eu teria orgulho de chamar de meus. Ouça o silêncio por trás do barulho dos motores. Meu deus do céu, meu bem, apenas ouça. Você consegue escutar? É uma canção de amor.

Para quem?

Você é amado.

Durma com esse barulho.

Zadie Smith, escritora britânica muito amiga de (e muito influenciada por) Wallace, explica melhor do que eu jamais poderia a importância das experiências religiosas na obras de David:

Essa era sua preocupação literária: o momento em que o ego desaparece e você é capaz de oferecer seu amor como um presente sem expectativa de retorno. Nesse momento, o presente fica suspenso no ar, como um brilhante saque de Federer, entre o que envia e o que recebe, e se revela não pertencendo a nenhum dos dois. Nós quase não temos palavras para esse tipo de presente. A única que temos já foi muito descaracterizada por mau uso. Essa palavra é "oração".

Que Deus nos dê mais de sua graça por meio de experiências religiosas como ler David Foster Wallace.

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Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção

Isto é água e talvez esses esquimós sejam bem mais do que aparentam.