Marcas no quintal

Olhar para as ruínas nos faz lembrar dos monumentos.

Cauê Oliveira
Literatura e Redenção
15 min readMar 11, 2019

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Ilustração de Pedro dos Anjos

Este conto é parte de um projeto de escrita colaborativa de alguns dos autores do L&R. A ideia é termos diversas historietas que se passam em épocas diferentes e em cômodos diversos de uma mesma casa. A história de hoje se passa no quintal.

“A tristeza nem sempre é ruim. Ela caleja nosso coração… prepara para quando ele rola em direção ao abismo… Ninguém é cem por cento feliz” — suspirou. — “Às vezes só estamos tristes. Isso pode durar um bom tempo” — Dona Flora comentou. Sua voz era arrastada, lenta, com pausas que pareciam durar uma eternidade. Nunca me esqueci dessa frase, dessa fala, desse sentimento. Na medida em que cresci, e o mundo diminuiu, isso fez cada vez mais sentido. A voz de Dona Flora combinava com seu semblante, o atual pelo menos. Ainda que carregasse as velhas marcas da alegria, sua face fora remodelada pelo tempo, pela vida. Aquela casa sempre me chamou atenção, pois tinha um aspecto quase engraçado, não sei bem por qual motivo. Sei que ali demos boas risadas, num tempo que hoje parece parte de uma outra vida. Lá nos entristecemos também, quando vimos a melhor seleção da história perder e deixar para os italianos o até hoje tão sonhado tetra.

Mesmo uma década depois de ter me mudado, já estando casado, sempre que passo pela frente da casa só consigo divisar a mesma cena, a cena que mais vi pelo portão vazado, feito de metal pintado de preto, guardado pelo pesado cadeado que protegia para que ninguém abrisse o ferrolho inadvertidamente. O som do cadeado batendo no portão era a campainha da maior parte das casas do bairro. Três batidas seguidas, ligeiramente intervaladas. Era adolescente e passava em frente à casa da família a caminho da escola, andando no ritmo exato de quem oscila entre o desejo de ficar em casa e a vontade de não ir para a escola. Dia após dia, ele ficava no quintal, sentado exatamente no mesmo lugar, embaixo do sol ou embaixo da chuva, os pés descobertos. O silêncio era absoluto, não fosse a ocasional cotovia ou o som de dois gatos brigando no telhado vizinho. Por vezes, pensava que existia algo como uma bolha circundando aquela casa, impedindo qualquer ruído de entrar ou de sair. Pouco vi de grandes movimentações, no máximo notava o caminhar lento dos familiares ainda presentes. Ao lado do corpo sentado, geralmente via dois livros pretos, um mais grosso e menor, outro maior e mais fino. Exceto quando estava chovendo, eles estavam sempre ao alcance, apesar de nunca o ter visto segurando o livro menor. É engraçado pensar que, outrora, aquela era provavelmente a casa mais festejada de toda nossa rua, especialmente por estar construída em um terreno maior e por ter um quintal tão grande.

No meu incessante caminhar, olhando de soslaio, percebia sua magreza; algumas de suas cicatrizes eram visíveis. Não lembro de tê-lo visto de frente nessa época. Antes disso, não costumava ser dos mais sorridentes, nem dos mais sérios. Era apenas normal, um garoto regular, num bairro regular, de uma cidade regular, numa família que não chamava atenção e que parecia simplesmente… feliz. Ele ficava naquele mesmo lugar, no meio da grama do quintal, penso, durante todo o dia, todos os dias. Nas poucas vezes que me detive um pouco mais, chamei a infeliz atenção de seus pais, que costumavam vir à porta, conversar brevemente, e reportar, quase que de forma ensaiada, numa articulação dolorosa, precisa e afastada, revelando um interesse educado de manter a familiaridade: “Aos poucos, ele está se recuperando”. “Deus abençoe para que ele esteja bem novamente em breve”, era minha resposta padrão, copiada das vezes que vi meus pais respondendo a comentários dessa natureza. Tinha a impressão, em minha inocência, de que o passado não voltava, de fato, e de que ficar bem novamente nem sempre era possível… Suas memórias tinham sumido e, com isso, ele havia desaparecido. “Talvez isso fosse o melhor” era outro lugar comum. Bênçãos e maldições são facilmente confundidas e confundíveis quando lembramos de nossa contingência.

Lembro-me de uma vez que jogamos futebol no quintal e a bola caiu para o vizinho. Esse cenário era ordinário para nós. Assim como o era irmos até o portão, batermos, gritarmos insistentemente, até podermos retomar nossa pelada depois de um sorriso amarelo e um pedido de desculpas: “não vai acontecer novamente” — mentíamos. Nesse dia, entretanto, debaixo do sol escaldante, em meio aos gritos e com a meta claramente definida — pelos velhos calçados a demarcando — estávamos cientes de que a casa estava vazia. Um time de camisas e outro sem. Apesar da rivalidade com o Rio de Janeiro, em São José dos Campos (como no resto do Brasil), camisas do Zico imperavam, e a expectativa era alta sobre ele. Combinamos que teríamos um cuidado especial com aquela lateral, para que a bola não esfriasse. Os ânimos acalorados, entretanto, não permitiram cumprirmos nossas expectativas. Depois de alguns espantos seguidos de “graças a Deus”, “foi por pouco” e “desculpa, terei mais cuidado”, a bola quicou delicadamente em cima do muro e, como que em câmera lenta, matou nossa esperança ao cair para o lado que não deveria. “E agora?” Nosso amigo, hoje sentado, resolveu, sob protestos e incentivos, pular o muro. Com muita ajuda, conseguimos furtivamente adentrar na casa vizinha e voltar silenciosamente. Ninguém nos viu. Não teríamos broncas. O futebol foi retomado, sem novos incidentes. Valeu a pena! No dia seguinte, entretanto, descobrimos que nossa desatenção juvenil ignorou a perspicácia materna, que viu, quase imediatamente, a marca do pé preto na parede, ostentando toda nossa culpa. Disciplina. Ficamos sem futebol dias, vendo o vizinho entrar e sair normalmente… Bons tempos.

Após tanto ver o quintal por dentro, era saudoso vê-lo à distância, ainda mais com aquele totem à constante inconstância da vida. Olhar para as ruínas nos faz lembrar dos monumentos. Belas e maravilhosas, ainda que incompletas, imperfeitas e tristes, marcas de uma época que se foi, lembretes do que poderá vir a ser. Acalentam o coração e nos elevam. Nos trazem de volta à terra e à insuficiência. Era esse meu sentimento ao ver meu amigo sentado, no máximo com o caderno maior em suas mãos. É meu sentimento hoje, ainda, quando sou constrangido pelas memórias. Memórias de alguém que se movia não como um homem, mas quase como um fantasma, como alguém que havia perdido, em algum lugar, parte de sua existência. Ela era a parte mais bela. Para morrer basta estar vivo. Estar vivo sem viver também é uma forma da morte. Eu sei bem que lugar foi esse. O grito nunca saiu dos ouvidos daqueles que estavam presentes. O que aconteceu depois e o que acontecia agora, poucos sabiam. Até hoje não sei. Tudo que eu queria era entrar, tudo que eu queria era saber.

“Tudo que eu quero é sair dessa casa! Tudo que eu quero é esquecer!” — gritou Tomas, ao bater a porta com a ignorância típica de tempos recentes. Flora ficou em silêncio, mais uma vez. Mais uma vez, ficou simplesmente impassível. O pai pouco abandonava a cara emburrada, raivosa, irada. O rosto melancólico e as lágrimas reservava para si mesmo, para seu charuto, para suas revistas. Os raros momentos de prazer desfrutava sem grande pressa, enquanto se isolava no banheiro do quintal, próximo da área de serviço. Há alegria na tristeza, quando ela o desvia da raiva em direção à autoconsciência. Não precisamos entender isso para que seja verdade. Tomas não entendia. Ao entrar e ao sair divisava a mesma cena, seu filho sentado no mesmo lugar. Dois livros ao seu lado. Não conseguia olhar para o livro grosso como antes, nem entendia o motivo de ele estar ali. Sentia certa repulsa, como, na verdade, sempre sentira, apesar do que dizia à sua esposa. Os acontecimentos só extraem de nós o que está em nós. O que contamina vem de dentro para fora.

“Quando esse moleque vai se recuperar?”, murmurava quase que diariamente. “Já chega!”. “Nossa vida já foi destruída”, “minha felicidade já foi ceifada”, “não há nada mais a ser feito”, “ele só está piorando as coisas”, eram algumas das frases mais comuns que repetia à sua esposa e, muito mais, a quem pudesse ouvir os gritos de seu coração entre uma tragada e outra. Recolhia-se constantemente ao barulho da televisão, algo que sempre fizera, mas que se agravara depois do ocorrido. Todos os campeonatos de futebol, possíveis de acompanhar nos jornais, ele acompanhava. Nas notícias impressas, lia sobre o fim do período militar e acompanhava o processo de redemocratização, sem grandes esperanças. Saía cedo para trabalhar, voltava no horário de costume, preciso como um relógio suíço. A mesa estava sempre posta, a casa sempre arrumada, sua esposa sempre ali, com a mesma expressão. “Não entendo como ela suporta tudo isso”, pensava quase que diariamente, ao perceber mais uma vez sua roupa perfeitamente passada, a cama impecavelmente arrumada e seu filho surpreendentemente limpo e bem cuidado. “Deixe-me lavar essa louça, vá descansar, por favor” — insistia, ao que sempre ouvia: “Não estou cansada, mas obrigada pela oferta”. Isso não o ajudava! Na verdade, o irritava muito mais, pois não entendia tamanha resignação. Sem dúvidas, ela não era feliz, não estava satisfeita, sofria. Entretanto, isso parecia afetá-la tão pouco. “Por quê? Como ela permanece assim? Ando sempre tão cansado… de tudo, de mim mesmo. E ela continua servindo, continua fazendo, continua cuidando. Ah, malditas sejam todas as coisas!”

“Aquele rapaz de novo? O que ele faz olhando constantemente para cá?”. Enquanto limpava o quintal, viu o jovem, camisa do colegial, cabelo descuidado e rosto de palerma, que tinha por hábito passar lentamente observando alguma coisa, que Tomas não sabia o quê. “Isso são saudades… Como é o nome mesmo dele? Hmmm. Filipe. Também sinto saudades. Saudades de sentir raiva por motivos mais justos… Por razões mais nobres. Motivos naturais a todos os pais. Zelo, ciúmes.”

Aproveitando que seu filho descansava, liberando assim o gramado, Tomas foi capinar, arrancar o mato e cuidar daquele espaço. A marca no chão já era bem consolidada. “Acho que aqui não crescerá mais nada. Por que será que ele insiste em sentar exatamente nesse lugar?” Sentou-se. Olhou para o alto e viu a marca de um pé no muro. “Isso ainda está aí?” Seu olhar desviou mais para baixo e viu outra coisa que pensava ter resolvido. “Ando desatento demais. Não estou cuidando direito das coisas…” O canil, antes lar de muitos cachorros, estava bem manchado. Lembrou saudoso de como era ter cães brincando ali. Levantou-se lentamente para continuar o trabalho. Seus filhos sempre gostaram dos animais, como ele mesmo. Todo banho era uma alegria, misturada de leve irritação pela falta de objetividade e foco. Agora isso ficou para trás. O ferrolho do canil continuava com problemas. Nunca se deram ao trabalho de arrumar, pois ninguém realmente se importava se os cachorros estavam soltos ou não — exceto quando os garotos vinham jogar futebol. Alguns eram medrosos, tinham certos traumas. Por isso, ela sempre assistia aos jogos, sentada em frente ao portão, para evitar que os cachorros atrapalhassem, sorrindo largamente ao ver seu irmão perna de pau. “Era uma alegria”, suspirou enquanto descansava o gadanho.

O pequeno batente, que separava a grama do restante do quintal, estava com inúmeras rachaduras. Sua esposa foi contra essa divisão desde o início, mas Tomas era teimoso. Já cedia à sua esposa em tantas coisas, era o que pensava. Ele queria mesmo era que tudo fosse gramado, mas a grama sujava demais a casa, ela dizia, especialmente com as crianças e os cachorros. “Façamos tudo de cimento, então!”. Não, pois era muito cinza, sem cor e sem vida… “Onde iremos plantar o jardim? E quando eu quiser pisar no chão de verdade? ”. Ao cortar a grama baixinho, como havia muito tempo não fazia, uma das pequenas e perigosas frestas, esquecidas no que parecia outra dimensão, se revelou. Ele se agachou e sentiu-a com as pontas dos dedos. Seus joelhos quase falharam, pela idade e pela memória. “Foi aqui que ele perdeu a unha pela primeira vez”, sorriu carinhosamente. Sua esposa via toda a cena de longe, as lágrimas escorriam de seu rosto por perceber o imperceptível, um sorriso carregado da gritante tristeza. Só o futebol para explicar alguém não notar um pé tão sangrento e uma dor tão excruciante no dedão. “Sua mãe sempre insistiu que eu a consertasse. Muito trabalho por nada! Garotos precisam saber lidar com ferimentos e frustrações…”, a infelicidade o abateu, pesada e impiedosa, quase o convocando para mais uma rodada do seu cubano favorito ou para o ruído que abafa os gritos da alma. “Pelo visto não deu muito certa minha ideia… Talvez seja hora de arrumar isso. Talvez seja hora de arrumar tantas coisas… Até mesmo, quem sabe, nos mudarmos… ou sermos mudados… ser mudado”, um sentimento de falta o preencheu, lembrou-se do pesado livro e de sua esposa.

Pouco tempo depois, seu filho se aproximou. Tomas olhou para ele com certo carinho, mas logo com rancor. As coisas não estavam resolvidas. O amor era temperado com toques de amargura. O sal havia perdido um pouco do sabor, mas ele ainda estava ali, não tinha como sumir por inteiro, não queria sumir por inteiro. O ritual mais uma vez se repetiria… Entretanto, uma leve diferença foi notada. Seu filho fez uma pausa para observar aquela quina, um reflexo do garoto que passaria despercebido para qualquer um, mas não para quem estava acostumado com a religiosidade com a qual seu filho descalçava seus pés e sentava-se quieto. “No mesmo lugar de sempre, do mesmo jeito de sempre, com o mesmo olhar vazio de sempre”. Dessa vez uma fagulha se acendeu, mas logo em seguida pareceu ter se apagado. Seu pai se irou mais uma vez. Olhou para o alto sem esperanças. Ao mesmo tempo, lembrou-se do final de seu romance favorito. A última frase sempre o marcara, mas havia muito que não pensava nela. “‘Esperar e ter esperança’, Dantés!? Mas como, meu caro Conde? Onde está meu Monte Cristo?” A vida não é nada simples. “Eu só queria poder voltar no tempo”.

“Eu só queria que avançássemos para um momento em que as coisas estivessem melhores… Perdoa, Senhor, minha fraqueza, minha inconstância, minha insatisfação. Confesso o que tu já sabes. A irritação de Tomas para mim é quase um consolo, um tipo de conforto para minh’alma aflita. Ela me lembra que ele ainda sente, que ele ainda vive, que ele ainda está aqui comigo, longe, mas ao meu lado. O afastamento, a televisão, o tempo a sós com suas revistas, seus jornais e charutos, isso é o que me preocupa, isso é o que me dói. Sinto saudades de nossas conversas, de nossas brigas, das dores suportáveis que compartilhávamos, de suas reclamações constantes sobre o trabalho.

Ah, Senhor, vendo-o agora há pouco se abaixar, ainda forte, vendo-o sorrir, mesmo que triste, penso que devo ter menos a me preocupar com ele que comigo. Eu temo não sentir nada; na maioria das vezes esse é meu medo. Eu temo funcionar no automático, sem indignação, sem amor, sem dor, sem nada. As tarefas me consomem, me consolam, preenchem meu tempo, minha mente. O sol nasce e se põe diante de mim, apesar de mim, distante de mim. Os dias passam. Hoje se completa exatamente um ano que tudo aconteceu. O último ano foi o mais curto de nossas vidas, com os dias mais longos. O ano mais longo, com os dias mais curtos. Acho que Tomas não notou que faz pouco mais de um ano que ele não limpa o quintal adequadamente. A grama alta sempre me incomodava, mas não ultimamente. Nada tem me incomodado ultimamente.

Hoje, Senhor, estive mais uma vez com ele no quintal. Nem sempre ele lembra de levar as Sagradas Escrituras. Por isso, sempre coloco o livro ali ao seu lado, sem saber se ele ainda é capaz de ler. Lembro-me do dia do seu batizado. As mãos do pastor sobre sua cabeça, a água sendo derramada, as juras de que o criaríamos no teu caminho. Tentei fazê-lo, Senhor, tentei. Nem sempre sabia como agir, nem sempre soube o que fazer ou falar. O fardo parecia tão grande sobre meus ombros, exceto quando orava. Não foi nosso primeiro batizado, mas cada vez parece tão diferente da outra. As pessoas têm personalidades tão distintas, mesmo irmãos. Ela sempre pareceu mais calma, sempre esteve mais disposta, seu coração, desde muito nova, pareceu mais inclinado a ti. Meninos são tão diferentes. Claro que sei que é uma ilusão, Senhor, o que alimento em meu coração. Conheço tua lei. Sei que és tu que dás vida aos que estão mortos em pecados, és tu que faz com que o homem natural compreenda as coisas espirituais, és tu que nos dá um novo coração, que nos faz um novo ser, nascidos do Espírito. És tu, meu Pai. Tudo é para ti, vem de ti e volta para ti, tudo está debaixo do teu governo. Tu estás no controle de todas as coisas, todo o tempo, em todas as circunstâncias.

Em todas as circunstâncias… Como queria realmente crer nisso em todo tempo… Nem sempre creio, meu Pai. Estaria mentindo se dissesse o contrário. Estaria mentindo se dissesse que minha fé permanece inabalável diante de tudo que foi feito, diante de tudo que foi dito, diante de todo sofrimento. Tu conheces meu coração melhor que eu mesma, Senhor. Ainda que noite após noite, dia após dia, eu clame diante de ti, não poderia começar a expressar o que tu sabes ser verdade o tempo todo. A escuridão da alma me domina tão constantemente que parece que teu Espírito nada mais é que a chama de uma vela, se balançando perigosamente, como se a qualquer momento pudesse se apagar pela mais leve brisa. Ajuda-me na minha falta de fé.

Eu estou por um sopro, Senhor. E eu seria enterrada, então, nas mais densas trevas, de onde jamais saberia para onde ir, como sair, o que fazer. Tudo por uma leve brisa. Todo meu castelo aparentemente forte, toda essa fachada, todas as minhas orações, todos os meus domingos na igreja, minhas horas diante da Palavra… Tudo, Senhor, por nada. Fosse possível, já não estaria mais aqui. Fosse por mim, já haveria de ter amaldiçoado céus e terra. O luto, a dor, a miséria. Será que existe alguém em pior estado? Será que existe alguém sofrendo mais? Será que existe, fora daqui, tamanha dor? Qualquer dor há no mundo fora desses muros? Não conheço muito, nunca fui nada além de dona de casa, alguém que ignora a profundidade das coisas, que não domina os saberes, que não entende de muitos assuntos. Mas uma coisa eu conheço, Senhor. Eu sei o que é dor. Como queria ser ignorante nisso também. Sei que sou, mas me iludo, me engano em busca de consolo. Não fui eu a moída no madeiro. Abre meus olhos, Pai.

Hoje cedo, enquanto estendia as roupas no varal, lembrei-me do salmista. O dia estava claro e belo, mas eu caminhava pelo vale da sombra da morte. Ao sentar-me, cansada como tenho sempre me sentido, vaguei distante de mim. Repousava as mãos na mesa do quintal. Fizemos essa mesa para que muitos pudessem sentar ao seu redor, enquanto esperávamos a carne do churrasco. A churrasqueira não vê carvão há um bom tempo, Senhor. Lembrei-me também de quando líamos, todos juntos, o livro favorito de Tomas — o único que o vi realmente lendo nessa vida. Recordei-me de Edmond e de todo seu sofrimento. Oh, amarga e doce providência! Sentei-me junto com ele na masmorra, desesperançosa, aguardando que aparecesse diante de mim um fio qualquer no qual pudesse me agarrar. Será que virá? Será que existe? Já veio e ainda virá, Senhor! Não me deixa esquecer...

Aproveitei para folhear mais uma vez, enquanto meu querido filho dormia, o seu livro de desenhos. Não entendo bem, por mais que me esforce, o que ele tem feito ali. Sei que desde que ele se sentou naquele ponto, aquietou-se mais. Sua alma encontrou algo, seus olhos recuperaram alguma vida, suas mãos alguma atividade. Ele para e fica observando, Senhor, como tu bem sabes, tu que vês todas as coisas. Dignas a me ajudar entendê-lo? Talvez assim possa ser de mais serventia, não simplesmente permanecendo sentada inutilmente… Sou Marta. Os desenhos dele não fazem qualquer sentido para mim. São rabiscos confusos. Ele olha para o pé manchado na parede, para o ferrolho do canil, para a mesa imensa no quintal… E rabisca algo. Hoje ele ficou olhando para a rachadura recém-descoberta, ao lado de seu pai. Olha, olha mais um pouco, senta, cruza as pernas e risca seu caderno. Pelo menos está mais tranquilo. Obrigada pelo teu cuidado, Pai, obrigada.

No quintal, ao redor da grande mesa, nós comemoramos seu último aniversário. As coisas não foram bem como planejadas. Nunca gostei dessas brincadeiras de menino. Jogar ovos na cabeça? São ideias sem o menor sentido! Todos seus amigos estavam aqui, inclusive o Filipe. Espero que ele supere a perda. Todos estamos nessa luta, afinal. Acho que Tomas nunca percebeu o interesse dele, o que não faz a menor diferença agora. Como eu queria que fizesse… Tomas, com certeza, preferiria… e muito. Ele é quem mais sofre, eu acho. Não sei bem o que sentir, Senhor, nisso tudo. Não sei se choro, se rio, se fico ou fujo, se grito ou silencio. Não sei bem. Tomas me preocupa. Com quem ele tem conversado? Como será que estão as coisas no trabalho? Não sei como fazer tais perguntas. Diante da desgraça, tudo parece trivial, tudo parece pequeno em comparação, qualquer pergunta parece ofensiva e desnecessária, um escarnecer de nossa memória. Como discutir algo diante de tudo que aconteceu? Como? Há poesia depois do Holocausto, Senhor? Há verdadeiro regozijo para Jó? O abismo possui fundo? Quantas saudades da minha pequenina… Minha querida, amada, bela, minha menina… Tem misericórdia de mim, Senhor. Tem misericórdia da minha família. Tem misericórdia…”

Não disse Amém. Dormiu no meio da sentença, descansou no colo do seu Senhor, recostada na poltrona.

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Cauê Oliveira
Literatura e Redenção

Cristão. Esposo de Bia, pai de Carolina, Clarice, Caio e Ana.