Nem tudo é encantamento e a vida pode ser uma porcaria

Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção
9 min readDec 14, 2017

O sentido da vida sem sentido em Ardil-22

ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS

“Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come” poderia ser o resumo de Ardil-22, romance de Joseph Heller considerado por muitos um dos grandes clássicos da literatura do século XX. Após testemunhar a 2ª Guerra Mundial de uma posição privilegiada, a bordo de sessenta missões em um bombardeador B-25, Heller se dedicou a relatar um pouco do que viu e viveu em um livro de humor negro e irônico, uma tragicomédia sobre burocracia e violência, coincidência e aleatoriedade, vida e morte — e a ausência de sentido em tudo isso. Resumindo esse sentimento, “decidi viver para sempre, ou morrer tentando”, anuncia o Capitão John Yossarian, protagonista da obra. Yossarian sabia— como todos nós, que sabemos, mas constantemente esquecemos — que a morte era iminente e que seus esforços para adiá-la eventualmente falhariam. Embora não quisesse ficar para ser pego pelo famigerado bicho, seus esquemas e subterfúgios apenas adiavam um pouco o dia em que seria finalmente tragado.

Como toda boa literatura, Ardil-22 não é apenas a história de Yossarian, mas a minha, a sua e a de Salomão. Salomão? Já dizia o rei sábio, sobre vida e morte: “Pelo que disse eu comigo: como acontece ao estulto, assim me sucede a mim; por que, pois, busquei eu mais a sabedoria? Então, disse a mim mesmo que também isso era vaidade. Pois, tanto do sábio como do estulto, a memória não durará para sempre; pois, passados alguns dias, tudo cai no esquecimento. Ah! Morre o sábio, e da mesma sorte, o estulto!” (Eclesiastes 2.15–16). Joseph Heller percebeu o que o filho de Davi já havia percebido muito tempo antes dele — a morte chega para todos, independente da vida que se leva. Diz Heller: “No mundo inteiro, jovens estavam sacrificando a vida pelo seu país, como lhes haviam dito. E ninguém parecia importar-se com isso, muito menos os jovens que estavam arriscando suas jovens vidas. Não havia qualquer fim à vista”. No fim, todos nós seremos pegos pelo mesmo bicho, e ninguém parece se importar muito com isso — é tudo vaidade e correr atrás do vento.

Esse sentimento de inevitabilidade da morte é resumido pelo Ardil de número 22, que dá título à obra. No livro, o Ardil-22 é uma regra da burocracia militar, nunca enunciada formalmente, o que levanta a suspeita entre os soldados sobre sua própria existência. Pode ser resumida assim: se alguém está louco, não pode mais participar das missões de bombardeiro; mas só um louco é capaz de voar missões de bombardeiro. Assim, se alguém tenta conseguir uma licença para não voar mais, está comprovando sua própria sanidade — por se preocupar consigo mesmo, o que leva à negação da licença. Assim, é mandatório continuar voando, pois requisitar a licença implica em tê-la negada. O narrador explica:

Havia apenas um problema, um ardil, o Ardil-22, que especificava que a preocupação pela própria segurança em face dos perigos reais e imediatos era o processo de uma mente racional. Orr estava louco e poderia ser desculpado das missões. Bastava que ele pedisse; assim que ele o fizesse, ele não estaria mais louco e seria obrigado a voar mais missões. Orr estaria louco se voasse mais missões e são se não o fizesse, mas se estivesse são, teria que voar. Yossarian ficou profundamente comovido pela absoluta simplicidade da cláusula e deixou escapar um respeitoso suspiro.

Ao longo do livro, e pela ausência de definição formal, o ardil é invocado para justificar todo tipo de ação burocrática despropositada. Em certo ponto, vítimas de assédio por parte da polícia do exército explicam que “o Ardil-22 afirma que os agentes que estão aplicando o Ardil-22 não precisam provar que o Ardil-22 contém qualquer tipo de provisão a respeito do que o violador acusado está sendo acusado de violar”. Em outro, alguém explica: “o Ardil-22 diz que eles têm o direito de fazer qualquer coisa que nós não possamos impedi-los de fazer”. Em uma das minhas partes preferidas, um soldado raso batizado de forma megalomaníaca por seu pai de Major Major é promovido diretamente ao oficialato, deixando de ser o Cabo Major Major para se tornar o Major Major Major — um memorando baseado no Ardil-22 é usado como justificativa.

Em um momento em que o espanto e o extraordinário parecem estar em voga e tudo parece ser iluminado, o riso amarelo de tensão provocado pela sombra do Ardil-22 é um bom lembrete de que a vida desse lado da eternidade pode ser incrivelmente terrível. E se não fosse o suficiente, como um pastor que muito admiro gosta de lembrar, “a vida é difícil, e no final você morre”. Você, cristão. Eu estou falando de você. Sabemos que a vida debaixo do sol tem um propósito e um sentido, que nada que acontece é, em última instância, aleatório ou mera coincidência. Mas o Deus que governa o universo foi quem nos assegurou das aflições desta vida. “De contínuo sou afligido e cada manhã, castigado” (Salmo 73.14), afirma o salmista, “e todo dia traz um novo 7x1”, talvez ele completasse se tivesse vivido desse lado da copa de 2014.

O próprio Capitão Yossarian é assombrado por todo o livro por uma lembrança aterradora. A morte sangrenta, repentina e cruel de Snowden, um colega de batalhão, o sangue quente escorrendo e o corpo cada vez mais frio, levam Yossarian a concluir que “o homem era apenas matéria. Esse era o segredo de Snowden. Joguem-no por uma janela e ele cairá. Se lhe atearem fogo, ele queimará. Se o enterrarem, ele apodrecerá, como qualquer outra espécie de lixo. O espírito se vai, o homem é lixo”. A experiência da morte em combate de Snowden muda drasticamente a atitude de Yossarian perante a vida. Ele passa a se preocupar em proteger apenas a sua, em detrimento de seus amigos mais próximos; rebela-se contra o exército e se recusa até mesmo a vestir seu uniforme. Ao questionar o porquê de um dos soldados estar completamente nu na formação, é explicado ao General Dreedle que o episódio da morte de Snowden manchou o uniforme de Yossarian, e todas as suas outras roupas estariam na lavanderia. “Que porcaria de explicação”, responde Dreedle. “Realmente, tudo isso é uma grande porcaria, senhor”, responde Yossarian.

Semanalmente, quando passo pela Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional para ir à igreja, localizada nas redondezas, sou assombrado pela prosperidade dos ímpios, em forte contraste com o sofrimento de pessoas queridas que estão indo para a mesma igreja. Profissionais muito mais competentes do que eu perdem o emprego e temem pelo sustento dos seus. Casais amados, pais e mães espirituais para mim, não conseguem engravidar. Doenças degenerativas atacam décadas antes do normalmente esperado e devastam famílias inteiras. Falências de empresas e de sustentação na coluna vêm acompanhadas de dores indescritíveis no coração e na lombar. Restrições alimentícias estão a uma mordida de distância de interromper o funcionamento correto dos órgãos de algumas crianças ainda no berçário. A fragilidade da vida assalta você no diagnóstico de alergia respiratória da sua esposa: ela pode ter uma crise e parar de respirar a qualquer momento; a única solução 100% eficaz contra a alergia seria tapar o nariz e parar de respirar. Ardil-22. Que grande porcaria.

Ao final do livro, praticamente todos os membros conhecidos do esquadrão de Yossarian foram mortos ou desertaram, desapareceram ou “foram desaparecidos”. Se as únicas certezas da vida são a morte e os impostos, a morte e a burocracia tomaram para si o batalhão quase todo. Mas o livro termina com um frágil fio de esperança. Acamado em um hospital após ser esfaqueado por engano, ainda tentando bolar um último meio de fugir do Ardil-22, Yossarian recebe boas notícias. O capelão (quem mais seria?) anuncia que Orr, companheiro de quarto de Yossarian, dado como morto em ação, está vivo e bem, após fugir para a Suécia, neutra na guerra. Por todo o livro, Orr parecia ser a encarnação do azar: todas as suas missões terminavam com seu avião abatido sobre o mar e a tripulação remando de volta para a base em um bote salva-vidas. No fim das contas, a sina de azar era apenas um ensaio. Em sua última missão, Orr ficou para trás e remou sozinho no bote, não para a base, mas para uma terra onde a guerra não o alcançaria. É possível fugir. É possível escapar do maldito ardil. Yossarian é visto pela última vez pulando pela janela do hospital, correndo e pensando em seu próprio meio de chegar à Suécia.

Curiosamente, a resposta para o Ardil-22, para o absurdo da guerra pela sua vida nas trincheiras do vale da sombra da morte, também envolve um fim sangrento como o de Snowden e as mesmas boas notícias de que alguém que foi dado morto, como Orr, está vivo e passa bem. De forma mais curiosa ainda (coincidência, talvez?), a boa notícia do evangelho, de que há uma saída para o Ardil-22 e que um dia “toda bota com que anda o guerreiro no tumulto da batalha e toda veste revolvida em sangue serão queimadas”, vem por meio de um outro ardil.

Muitos já tentaram reduzir ao absurdo a ideia da existência de um Deus soberano com a pergunta: “Se Deus é todo-poderoso, ele é capaz de criar uma pedra tão pesada que nem ele mesmo seria capaz de levantar?”. Se Deus é poderoso, ele pode criar algo infinitamente pesado; se for capaz de levantar a pedra, é incapaz de criar qualquer coisa. Deus pode criar ou não a pedra? Deus existe ou não? Há alguém cuidando deste mundo, ou é tudo vaidade?

Em palavras melhores do que as minhas, Jared Wilson explica:

A verdade é que Deus já criou algo tão pesado que ele não poderia levantar. Ele o fez não por criar uma força impassível — nós fizemos isso com nosso pecado — mas ao encarnar em frágil humanidade e voluntariamente se submeter à força da morte. Como um de nós, mas ainda como Deus, ele criou o paradoxo do Deus encarnado, carregando a cruz que foi criada por ele, mas que não conseguiu carregar sozinho, sendo condenado, mas vitorioso, ao morrer. E assim Deus foi esmagado conforme o plano que ele mesmo projetou antes da fundação do mundo. Você me pergunta se Deus pode criar uma pedra tão pesada que nem ele seria capaz de levantar? Sim. E ele já o fez. Por três dias, uma pedra permaneceu impassível, até que ele se levantou e a lançou para longe da porta da tumba vazia.

O paradoxo da encarnação é a resposta para as perguntas sobre o sentido da vida (estou olhando para você, Douglas Adams). Ao nascer humilhado e sofrer as agruras da vida debaixo do sol que ele mesmo havia criado, o Deus-homem encarnado quebrou o ciclo inescapável de dor e confusão da vida deste lado da queda. Há sim um Deus, que orquestrou não só a minha vida, a sua, a de Salomão e a de Joseph Heller, mas a vida humana dele mesmo. Enfrentando vitorioso a morte inevitável, ele se identificou com todas as nossas dores e as levou consigo para o túmulo.

“Até que entrei no santuário de Deus e atinei com o fim deles”, nos diz o salmista. Todo domingo, quando vou ao “santuário” que fica no fim de um caminho cercado de ímpios que prosperam às custas dos meus impostos, sou lembrado por um capelão que alguém escapou. Sou animado pelas notícias de que a vida faz sentido porque existe alguém acima do sol, que já passou por muito mais do que eu passei, que me agraciou com um plano de fuga em que tudo o que era necessário fazer já foi providenciado, e que mesmo que um dia eu tropece na fuga do bicho e finalmente seja pego, ele irá me receber e eu estarei eternamente a salvo. Em resumo, sou lembrado do que, por vezes, é a única razão para sairmos da cama de manhã cedo como Yossarian saiu daquele hospital: “o viver é Cristo, e o morrer é lucro”. Viveremos para sempre, e morreremos para isso. Se ficar ele protege, se correr ele recebe.

HELLER, Joseph. Ardil-22. São Paulo: Edições BestBolso, 2010.

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Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção

Isto é água e talvez esses esquimós sejam bem mais do que aparentam.