O defeito ocular dos evangélicos

Norma Braga Venâncio
Literatura e Redenção
5 min readOct 31, 2017

Não sei se isso se deve mais aos tempos bicudos pós-modernos, à crise da educação brasileira ou à potencialização da bobagem pelas redes sociais. Talvez os três fatores contem igualmente. De todo jeito, parece que o fenômeno da má leitura salta mais aos olhos hoje que antes. (Somos todos Phoebe gritando: “My eyes! My eyes!”) Meu marido André postou uma vez em um grupo de discussão um texto divertido de Kolakowski chamado “Teoria geral da antijardinagem”, uma sátira a diversas escolas filosóficas. Uma arquiteta, indignada, rebateu com uma longa argumentação sobre a importância dos jardins e anexou à mensagem várias fotos para provar esteticamente seu ponto. (Há testemunhas do fato neste blog: pergunte ao Fernando Pasquini.) Completo o quadro contando que, mês passado, meu amigo Gustavo Nogy (autor de Saudades dos cigarros que nunca fumarei, que você deveria fumar, ops, ler) escreveu no Facebook contra a corrupção em Brasília, só para receber em resposta uma reclamação de que nem todo brasiliense era corrupto.

Nenhum desses maus interpretadores textuais era evangélico, vejam. Mas o problema foi manifestado de modo especial entre os evangélicos nos últimos dias, quando o jornalista J. R. Guzzo — um antigão da Veja, daqueles que escrevem impecavelmente e que fazem tanta falta hoje — publicou um artigo sobre nós chamado “Essa gente incômoda”. Era uma evidente ironia: o foco do autor não estava no quanto evangélicos são incômodos (e somos mesmo, em muitos aspectos, bons e ruins), mas apontar nos incomodados, “a gente bem do Brasil”, sua própria hipocrisia. Mantendo o olhar ao mesmo tempo reflexivo e divertido do cronista, o autor não escolhe nenhum dos lados: evangélicos são o povo que incomoda, seja porque vai na contramão do progressismo dos intelectuais, seja porque muitas de suas igrejas são desonestas mesmo; enquanto os orgulhosos membros das classes altas são os desprezadores preconceituosos que tentam, em vão, disfarçar seu horror ao povo, sem ousar escancará-lo para não macular a preciosa autoimagem, tão cuidadosamente impressa em seus coraçõezinhos rousseaunianos, de ícones da tolerância e da pluralidade. O desfecho — “para quem não gosta dessas realidades, é bom saber que os evangélicos, muito provavelmente, são um problema sem solução” — sugere certa ambiguidade (será que o autor se inclui entre os que não gostam?) e soa como uma constatação meio conformada, assim como Jesus falou sobre os pobres, “evangélicos, sempre os tereis entre vós”. Foi um final à la Zagalo: vocês vão ter que engolir esse povo… O que tornou tudo ainda mais divertido.

Quando avistei, em reação, as faíscas que começaram a voar para todo canto, o /facepalm foi inevitável. Houve quem atribuísse preconceito a Guzzo por causa do “tipo moreno”. Houve quem questionasse tanto a ausência da preposição em “gente bem” (ai meus sais) quanto a pertinência do termo, sem perceber seu parentesco com os “inteligentinhos” de Pondé. Houve quem se ofendesse porque achou que o autor não considerava os evangélicos gente (de) bem. Houve quem conclamasse os protestantes a um protesto… E alguns esmeraram-se em uma copiosa defesa, descrevendo o excelente trabalho social que as igrejas prestam ao país. Conclusão: não só vulneráveis a uma cultura avessa ao discernimento, mas sobretudo imersos em um gueto que cria suas próprias formas de expressão e desconhece muitas outras, os evangélicos passaram de bulldozer por cima de uma fina crítica que, na verdade, só os favoreceu.

Para mim, o artigo veio em boa hora. Em Recife, no Encontro Althusius, palestrei sobre René Girard e sua teoria do bode expiatório, e de passagem denunciei a unanimidade que se forma há algum tempo entre “os bem pensantes” (ou “os inteligentinhos”, ou “a gente bem”) de que os evangélicos são um perigo para o Brasil (e não Lula, não o PT, não os progressistas de sempre que destruíram o país, imaginem). E eis que um jornalista da Veja, que nem evangélico é, registra a mesma unanimidade — algo que tem um potencial perigo para nós, como pode atestar qualquer um que saiba o mínimo sobre a fase que antecedeu o pior do nazismo e do comunismo. Um representante da mídia apontando para um possível ovo de serpente? Deveria ser ovacionado nas igrejas. Carregado em praça pública. Afinal, Guzzo reconheceu que os influenciadores de opinião nos têm como alvos preferenciais de sacrifício simbólico. Isso é muito mais do que poderíamos pedir do jornalismo secular.

Alguns dos maus leitores pertencem a um grupo que nem gosta de aplicar a si mesmo o termo “evangélico”, mas sim “reformado”, por alinhar-se a uma tradição sólida desde Calvino e (sejamos honestos) por ver-se como uma espécie de elite intelectual nesse meio. Antes que me apedrejem (ou antes que me joguem mais pedras junto com as que jogaram no Guzzo), confesso: sou reformada também e não estou isenta nem dos privilégios auto-outorgados, nem do costume bem cristão da autocrítica. Foi nesse sentido que um dos colunistas deste blog, Allen Ribeiro Porto, declarou no ano passado que os reformados não têm o lado direito do cérebro, aquele que nos permite imaginação suficiente para compreender discursos diversos do nosso. Pois muitos reformados o confirmaram, alegando, por exemplo, que essa elucubração sobre os hemisférios cerebrais não tinha caráter científico. Quando penso, então, na vasta erudição humanista de Calvino e no saber literário de autores reformados mais recentes, como Herman Dooyeweerd, pergunto-me como chegamos a este ponto. A resposta é simples e direta: mundanismo. Se o establishment teológico reformado afirma não gostar de guetos, por que não lê literatura? Certamente porque comprou a divisão pecaminosa que se formou entre as duas culturas — de um lado, a ciência, de outro, as artes — e se encastelou na primeira, ainda que sem a menor ideia do que está fazendo. E a ausência de formação literária (ou, mais amplamente, de um investimento na imaginação) empurrará a teologia para um tratamento duro, de aplicações pobres e desconectadas da concretude da vida. Além de abrir a porteira para as más interpretações textuais, inclusive teológicas.

Assim, um grupo de outsiders que ama literatura — e que reconhece sua importância na formação cristã — resolveu colocar o bedelho nessa mixórdia. O resultado está aqui. Como o leitor agora pode perceber, o assunto que escolhi para estrear este blog não foi aleatório: pretendemos desafiar o gueto antiliterário em que os cristãos protestantes brasileiros estão enfronhados como se esse gueto fosse o próprio inferno. Exagero retórico? Não: o gueto é inferno na medida em que nos impede de ler adequadamente não só o mundo, mas também as pessoas e o próprio Deus que deveríamos amar. Se somos o povo da Bíblia, e a Bíblia lê o mundo maravilhosamente bem, a incompreensão textual é o mesmo defeito ocular que borrará a apologética, a pregação, a cosmovisão. Ficaremos felizes se este blog — sobre literatura! — ajudar o leitor a odiar tanto o pecado noético quanto o pecado sexual. E que ninguém nos acuse de espiritismo por estarmos em uma plataforma chamada Medium!

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