O poder das palavras na formação de mundos — parte 2

Os mundos criados por uma falsa linguagem são mundos falsos. A palavra verdadeira cria o mundo de verdade.

Cauê Oliveira
Literatura e Redenção
12 min readFeb 17, 2020

--

[Para ler a Parte 1, clique aqui]

“Ainulindalë”, de Anna Kulisz.

3) Importa ter as palavras certas com sentido certo — A ressignificação das palavras é a ressignificação do mundo (ainda em “1984”, de Orwell)

A Novilíngua consiste numa reconstrução das palavras, simplificando-as como vimos no exemplo do bom, “desbom”, “maisbom” e “duplimaisbom” com a finalidade de amarrar nossa mente pela desvirtuação da palavra. Entretanto, ela é também uma redefinição dos significados das palavras. Vemos isso logo no início de 1984, tanto nos três slogans do Partido como nos papéis dos seus quatro Ministérios:

Guerra é paz

Liberdade é escravidão

Ignorância é força

[…] O Ministério da Verdade, responsável por notícias, entretenimento, educação e belas-artes. O Ministério da Paz, responsável pela guerra. O Ministério do Amor, ao qual cabia manter a lei e a ordem. E o Ministério da Pujança, responsável pelas questões econômicas. Seus nomes, em Novafala: Miniver, Minipaz, Minamor e Minipuja.[10]

Os três slogans do partido distorcem os significados básicos de palavras comuns como paz, liberdade e força. As palavras usadas são as mesmas, mas o sentido não é o sentido real delas. Existe uma ressignificação, uma transformação do significado das palavras. Numa perspectiva dessas, sou capaz de chamar um escravo de livre, o que é uma flagrante contradição. Além disso, o Ministério da Verdade, em todo o livro, é marcado pelas mentiras contadas em favor do Partido, com o interesse de manter a população de Oceânia na ignorância. O Ministério do Amor é o mais violento de todos, e o Ministério da Pujança é o administrador da miséria, da pobreza e da desgraça promovidas pela gestão econômica centralizada do Partido.

Francis Schaeffer, no livro O Deus que intervém, identifica esse fenômeno no contexto especificamente cristão, denunciando o que ele chamou de misticismo semântico: o uso de linguagem tipicamente cristã, mas com um significado absolutamente diferente daquele que seria o originalmente atribuído ao texto. Ele afirma:

Na nova teologia, é feito o uso de determinadas palavras religiosas que possuem uma conotação de personalidade e significado para aqueles que as ouvem. Uma comunicação real não é estabelecida de verdade, mas uma ilusão de comunicação é dada através do emprego de palavras ricas em conotação. […] Existe certa memória em qualquer cultura, memória esta que é carregada em sua linguagem. Este tipo de memória relacionada a linguagem, eu sugiro, é uma explicação melhor daquilo que Jung chama de inconsciente coletivo.[11]

Há uma ilusão de comunicação causada pela distorção semântica das palavras. E essa ilusão faz com que, inocentemente, uma cultura assimile valores diversos daquele que ela crê serem os corretos. Importa ter as palavras certas com um sentido certo. Um exemplo dessa ideia impactando o contexto cultural e político nos é dado por Groen Van Prinsterer, no seu livro Incredulidade e Revolução, no qual ele discute as raízes religiosas dos movimentos revolucionários, especialmente da grande Revolução que ocorreu na França em 1789. Analisando o ambiente político daquela época e o fenômeno que ele chama de “Perversão do Direito Constitucional”, ele percebe o papel da linguagem como sendo central na mudança paradigmática que desencadeou a Revolução na França — Prinsterer (VI, item 125):

A língua. — O latim era o idioma universal único. Era a língua da aprendizagem e da cultura, da diplomacia e da correspondência; o veículo para o estado e a igreja, para tudo não vulgar ou banal. Para as Nações germânicas, que eram ignorantes de seus próprios tesouros, o latim era uma ferramenta indispensável. O tratamento do direito constitucional e internacional, também, era sempre em latim — uma circunstância não insignificante, uma vez que o caráter de uma expressão está intimamente ligada à formação do pensamento. […] Língua latina tinha evoluído sob influência republicana. Nesse sentido, para designar as várias formas de políticas havia uma escassez de expressões aplicáveis aos principados [às monarquias], mas uma abundância de locuções republicanas; e pouco a pouco, involuntariamente, como regra, a terminologia inteira, não importa quão inapropriado e alienígena, foi introduzida e naturalizada nos reinos europeus. O estado, que era uma monarquia, foi nomeado respublica ou civitas, uma comunidade ou estado civil. A população, que consistia em súditos, chamava-se fibra populus, um povo livre. […] Domínios do Príncipe foram referidos como patrimonium populi, o patrimônio nacional; seu dinheiro como erario publicum o tesouro público […]. Como Haller diz, “esta corrupção da língua foi e ainda é uma fonte infinita de erros”. Ideias erradas logo se apegaram ao nomes equivocadas, resultando, daí, que o significado etimológico gradualmente expulsasse o significado histórico.[12]

Segundo Groen, portanto, a linguagem política equivocada, trazida em virtude do idioma, provocou uma série de confusões históricas sobre a própria natureza do Direito Constitucional pré-Revolução na França, o que viria a ser um dos fatores que contribuiriam para a explosão da mentalidade revolucionária.

Não só as palavras importam, mas a carga semântica que elas trazem em si. E esse é nosso terceiro lado da moldura. Para fecharmos, precisamos ir um pouco além, focando no meio de transmissão, de divulgação, das palavras.

4) Importa ter as palavras certas com sentido certo do jeito certo — A forma de transmissão das palavras transmite algo sobre o mundo (“Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury)

A forma de transmissão das palavras é carregada de significado. Tomemos como exemplo inicial a citação de Prinsterer feita há pouco. Ele estabeleceu uma ligação entre o idioma, o latim, e as ideias republicanas, identificando que a própria construção do idioma é mais propícia à transmissão de uma dada visão política em detrimento de outra. Para a transmissão da mensagem, importa o meio usado. É diferente uma mensagem escrita em um livro, publicada em um jornal, mencionada na televisão, compartilhada por um meme ou exposta em uma palestra.

Veremos essa questão em dois livros. O primeiro é Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. O segundo é um livro de Neil Postman, chamado Amusing Ourselves to Death (em português seria algo como “Mortos de entretidos” ou “Mantendo-nos entretidos até a morte”). Nesse segundo livro, o autor trata sobre as mudanças no discurso público decorrentes da transição da Era da Tipografia, na qual a principal forma de comunicação e fonte de informação era a linguagem escrita (livros e jornais), para a Era do Show Business, com toda a revolução causada pela televisão. O livro foi escrito em 1985. Neil Postman explica:

Nossa atenção aqui é sobre como as formas de discurso público regulam e até mesmo ditam o tipo de conteúdo a ser transmitido.[13]

Esta passagem [da Era da Tipografia para a Era do Show Business] deslocou o conteúdo e o significado do discurso público dramática e irreversivelmente, desde que os dois meios tão vastamente diferentes não podem acomodar a mesma ideia. Como a diminuição da influência da mídia impressa, o conteúdo político, religioso, educacional e de qualquer outra área da vida pública deve mudar e ser reformulado em termos mais adequados para a televisão.[14]

O que Neil Postman defende ao longo de todo o livro, de forma bastante convincente, é a existência de um forte vínculo entre a forma de comunicar algo e a mensagem que se quer comunicar. Em todo o livro ele demonstra como o discurso público nos EUA foi alterado pelo domínio da televisão como meio prioritário de discussão da vida socialmente compartilhada. Portanto, a partir disso, o próprio ato de fazer política foi alterado significativamente.

No livro Fahrenheit 451 duas passagens se destacam no tocante ao lado da moldura que ora colocamos. O livro se passa em um futuro distópico, no qual é proibido ter livros. Os bombeiros dessa época — e percebam o esvaziamento e adulteração no uso da palavra bombeiro — não apagam incêndios, mas os iniciam. Eles são os responsáveis por queimar os livros eventualmente achados. Ninguém podia ter acesso aos livros impressos, pois eram considerados como perigosos, como subversivos da cultura de acomodação acrítica mantida naquela sociedade[15]. A primeira passagem ataca esse ponto diretamente:

Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. […] Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos.[16]

O que há por trás dessa declaração? A realidade de que os livros, os bons livros, têm como marca uma mensagem que aprofunda nosso senso da realidade. Certo escritor disse que depois da Bíblia nada nos revela tanto sobre a natureza humana quanto a boa literatura. Observem: livros! A leitura de livros exige uma atenção concentrada, uma disposição para o pensamento, uma entrega que tanto nos ensina como exige de nós. Diferente de memes, que vem com uma mensagem curta, uma imagem chamativa, que possuem uma relevância diretamente proporcional à sua profundidade, os livros, os bons livros, carregam em si mensagens que podem transformar a realidade, que podem incendiar sociedades, depor reis, destruir governos [17].

Novamente vejam o que Neil Postman diz acerca do vínculo entre o meio (livros, televisão, redes sociais) e a mensagem (o conteúdo a ser transmitido):

Cada meio, como a linguagem em si, torna possível um modo peculiar de discurso, fornecendo uma nova orientação de pensamento, de expressão, de sensibilidade.[18]

[…] um novo meio de comunicação principal altera a estrutura do discurso; ele faz isso ao estimular determinados usos do intelecto, ao favorecer determinadas definições de inteligência e sabedoria e ao exigir um certo tipo de conteúdo — em uma frase, ao criar novas formas de dizer a verdade.[19]

A forma como você conta uma história muda aquela história. Existem certos tipos de mensagens que se acomodam melhor a um formato do que a outro. Em um debate presidencial como vemos atualmente, é impossível esperar a mesma profundidade política que temos em um tratado, em uma dissertação, ou, até mesmo, em um documentário televisivo sobre dado tema. A finalidade do debate político televisionado e do tratado são diferentes, do mesmo modo o conteúdo difere, juntamente com o meio usado para o transmitir.

Em Fahrenheit 451 existe uma outra passagem que me chama atenção, pois ela reforça a noção de que a destruição dos livros era parte de uma destruição mais ampla, a destruição de todos os meios de comunicação, de todas as formas de pensar, de conversar e de discutir, que pudessem promover alguma visão de mundo distinta da dominante. A partir do que se defendeu, parece consistente afirmarmos que a restrição das possibilidades de comunicação a apenas determinado meio reduz a capacidade do homem de pensar e, assim, diminui a pluriformidade da própria vida do homem. No trecho abaixo, o personagem central da obra, o bombeiro Montag, estava se lembrando de uma conversa que havia tido com uma desconhecida (chamada Clarisse), que terminou virando sua amiga:

Do outro lado da rua, as casas continuavam com suas fachadas insípidas. O que foi que Clarisse havia dito naquela tarde? ‘Nenhum alpendre. Meu tio diz que geralmente existiam alpendres. E as pessoas às vezes se sentavam ali à noite, conversando quando queriam conversar; caladas nas cadeiras de balanço, só se balançando quando não queriam conversar. Às vezes simplesmente ficavam ali sentadas, pensando, refletindo. Meu tio diz que os arquitetos eliminaram os alpendres porque não tinham um bom aspecto. Mas meu tio diz que isso não passava de racionalização; o verdadeiro motivo, escondido por baixo, podia ser o de que não queriam as pessoas sentadas daquele jeito, sem fazer nada, balançando nas cadeiras, conversando; esse era o tipo errado de vida social. As pessoas conversavam demais. E tinham tempo para pensar. Por isso, acabaram com os alpendres. E com os jardins, também. Quase não há mais jardins nos quais sentar. E olhe para a mobília. Não há mais cadeiras de balanço. Elas são confortáveis demais. Vamos fazer as pessoas se levantarem e correrem. Meu tio diz… e… meu tio… e… meu tio…’ A voz dela sumia.[20]

O meio usado para a transmissão da mensagem não é neutro. Sentar em calçadas pode ser extremamente perigoso para aqueles que tentam impor um pensamento monolítico para a sociedade, pois nas calçadas o diálogo é livre, o silêncio é significativo e o compartilhamento de vida acontece entre pessoas que, a princípio, compartilham de pouco mais que uma proximidade geográfica. Não há controle governamental irrestrito sobre as calçadas. O fato é que o meio impacta a mensagem! Então, caso se deseje permitir que apenas determinadas mensagens sejam comunicadas, deve-se proibir os meios que sejam incompatíveis com estas. Não à toa em Fahrenheit 451 o meio mais usado para incentivar a distração constante e um prazer imediato eram grandes telas nas casas, televisões imensas, com um incessante ruído que impede qualquer tipo de pensamento mais aprofundado. Ray Bradbury entendia bem Pascal: “É o ruído [que procuramos], que nos desvia de pensar na nossa condição e nos diverte”.[21]

Assim, colocamos os quatro lados de nossa moldura:

1) Importa ter as palavras — A limitação do vocabulário é a limitação do mundo;

2) Importa ter as palavras certas — A destruição das palavras é a destruição do mundo;

3) Importa ter as palavras certas com sentido certo — A ressignificação das palavras é a ressignificação do mundo;

4) Importa ter as palavras certas com sentido certo do jeito certo — A forma de transmissão das palavras transmite algo sobre o mundo.

O quadro:

Toda essa moldura que foi colocada nos ajuda a perceber as consequências de ignorarmos o poder das palavras. Ela nos ajuda a ver que os quadros pintados em molduras distorcidas são em si distorcidos. Os mundos criados por uma falsa linguagem são mundos falsos. A palavra verdadeira cria o mundo de verdade.

A arte não é alheia ao formato. Na arte, o conteúdo e a forma estão estreitamente ligados, assim como na vida. As palavras usadas, a forma de organização das palavras, o veículo de comunicação e o conteúdo das palavras devem ser sempre construídos entendendo sua unidade em meio à diversidade. Você não consegue escrever sem carga de conteúdo. Da mesma forma, desde a tela escolhida, o tamanho da pintura, as cores, o estilo, tudo vem carregado de significado. O meio impacta a mensagem, o meio está ligado à mensagem e a mensagem não é comunicada sem o meio. Nada funciona no vácuo, muito menos a arte. Então, enquanto o artista escreve, pinta, produz, ele precisa ser intencional, entender o que está fazendo. A ingenuidade é uma marca daqueles que são carregados pelas formas, de tal maneira que o conteúdo produzido é comprometido por visões de mundo às quais o artista diz não aderir, mas acaba por transmitir em sua arte de maneira ingênua.

Por que as palavras importam? Para além da via negativa que abordamos, demonstrando as consequências da ignorância e do mau uso das palavras, precisamos concluir lembrando de uma verdade fundamental: o mundo foi criado pela palavra. Isso tudo que discutimos até aqui é um eco. Espero que esse eco tenha ficado menos distante, mais nítido. Espero que aqueles que ignoravam o eco, comecem agora a percebê-lo. Porém, nos cabe perguntar: qual o som ecoado? É o som do “Haja luz!” (Gn 1.1–3), da criativa voz divina. É o som de Cristo, o verbo encarnado, moldando toda a realidade (Jo 1.1–3). Mais que isso, é o som de todo o universo sendo sustentado diariamente pela poderosa palavra de Cristo (Hb 1.1–3). É o som da Palavra revelada por Deus, nos instruindo sobre como viver no mundo de Deus, na história de Deus, de acordo com a vontade do Deus. O eco que ouvimos é o eco da voz divina nos instruindo sobre a história, sobre a nossa história, sobre a história da criação. O roteirista deixou seu script escrito, em palavras.

A palavra tem pessoalidade, personalidade, ela não é neutra! A primeira vez que a palavra irrompeu o silêncio da existência, ela criou tudo o que há! A palavra bela fez o mundo belo. O pecado humano consistiu em ignorar as palavras ditas por Deus e ouvir as palavras ditas por Satanás. A palavra distorcida que fora ouvida e aceita distorceu toda realidade. E somente pela Palavra encarnada, Cristo, Deus-Homem, que toda nossa história é recontada. É ele que tem as palavras da vida (Jo 6.68). Nosso coração encheu-se de alegria quando ouvimos as belíssimas palavras: “Está consumado” (Jo 19.30). E caminhamos, todos os dias, nesse mundo falado por Deus, buscando viver de acordo com suas palavras. No fim das contas, é o amor pela palavra, por Cristo, que define se você tem vivido numa falsa história ou na história verdadeira. Sua narrativa pessoal depende da Palavra. Seu destino temporal e eterno dependem daquele que é a Palavra. As palavras importam, por não haver nada mais importante que a Palavra encarnada.

Notas:

[10] Ibid., p. 15.

[11] Schaeffer, O Deus que intervém, p. 92.

[12] Prinsterer, Unbelief and Revolution, VI (125).

[13] Neil Postman, Amusing Ourselves to death, p. 6.

[14] Ibid., p. 8.

[15] Uma obra da cultura pop que marcadamente trabalhou esse tema foi “O livro de Eli”, com a atuação marcante de Denzel Washington.

[16] Ray Bradbury, Fahrenheit 451, p. 108.

[17] “Aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas, sabem exatamente o que fazem. Seu poder é incalculável. Precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores. […] É sucumbir à hipocrisia liberal duvidar que certos textos, livros ou periódicos possam inflamar a sexualidade; que possam levar diretamente à mimese, à imitatio, chegando a dar a vagas pulsões masturbatórias uma terrível concretude e uma necessidade urgente de ser saciada. Como podem os libertários justificar o diluvio de erotismo sádico que hoje invade as livrarias, as bancas e a internet?” (George Steiner, Aqueles que queimam livros, p. 15–17).

[18] Postman, Ibid., p. 10.

[19] Ibid., p. 27.

[20] Bradbury, Ibid., p. 87.

[21] Pascal, Pensamentos, p. 84.

--

--

Cauê Oliveira
Literatura e Redenção

Cristão. Esposo de Bia, pai de Carolina, Clarice, Caio e Ana.