Refúgios de papel

Mesmo sem as coisas serem como a gente gostaria, elas podem ficar bem.

Ana Paula Nunes
Literatura e Redenção
11 min readMar 20, 2019

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Ilustração de Pedro dos Anjos

Este conto é parte de um projeto de escrita colaborativa de alguns dos autores do L&R. A ideia é termos diversas historietas que se passam em épocas diferentes e em cômodos diversos de uma mesma casa. A história de hoje se passa no escritório.

Esperando a porta abrir

Meus olhos estavam fixos na soleira da porta. Minha respiração parava a cada sombra de fora do escritório que a fresta mostrava. Embaixo da mesa do escritório não estava desconfortável, eu tinha bastante espaço e o tapete grosso deixava o chão quente e fofo. Ainda assim, a tensão que meu corpo estava segurando deixava cada pedaço de pele e osso doendo na ansiedade de que a porta de entrada do escritório abrisse e ele entrasse. A luz no escritório era apenas da vela que deixei, ficar totalmente no escuro já era uma tarefa impossível pra mim.

Levei quase um ano para entender o padrão e agora só faltava descobrir quem era ele e o que queria comigo. Eu ainda estava olhando fixamente para a pouca luz que entrava por debaixo da porta totalmente fechada quando o som veio do livro que deixei aberto em cima da poltrona do escritório, foi o som abafado do livro fechando, mas eu senti que o estrondo no barulho do encontro do peso das folhas estava me esmagando. Segurei a respiração. O crepúsculo da vela mostrou a sombra dele em pé ao meu lado no chão, ele estava atrás de mim. Fechei meus olhos, eu estava muito tonta e tremendo. Eu só conseguia pensar que a porta não abrira.

Portas fecham

A primeira porta que se fechou em minha vida foi a partida da minha mãe. Não posso descrever a dor dessa perda, mesmo hoje. Por causa disso, fui morar com meu pai em São José dos Campos. Cidade nova, casa nova, escola nova e família nova. A primeira coisa que me assustou foi a casa. Não só porque ela era muito antiga, apesar de bonita, mas também porque já tinha uma fama de assustadora pela cidade.

Só o que me assustava mais do que ela era mesmo o meu pai. Ele era meu pai, mas passei meus 13 anos de vida sem o conhecer. Como minha mãe não tinha mais ninguém da família, meu pai e sua família precisaram me receber. Apesar do meu pai ter se mudado para a casa com sua família há apenas 3 meses, já estava claro que não havia mais espaço pra mim e nenhuma boa vontade deles para que eu coubesse em algum cômodo da casa.

Em poucos dias percebi que eu nem mesmo teria oportunidade de conhecer meu pai. Ele nunca estava em casa, na maior parte do tempo estava viajando ou chegando tarde do trabalho. Minha madrasta raramente dirigia a palavra a mim, mas nunca me destratou, ela também trabalhava e só chegava em casa bem tarde quando eu já estava dormindo. As minhas 4 meia-irmãs já estavam no ensino médio e faculdade e, por causa da dor que meu pai causara à sua mãe com o caso que me concebeu, elas não conseguiam se esforçar para comigo. Em pouco tempo, a indiferença e exclusão delas e a saudade da minha mãe me causaram uma imensa solidão.

Cheguei no início do ano letivo. A minha escola era perto de casa, todo dia de manhã eu ia pra escola andando, tomava café no caminho na agradável barraquinha da Dona Rosa e voltava pra casa na hora do almoço. Eu também almoçava na barraca da Dona Rosa, a simpatia dela comigo e suas comidinhas tornavam a caminhada da minha nova fase um pouco mais amável, mas eu ainda precisava voltar para a casa e passar todas as tardes sozinha.

Portas abrem

Dediquei minhas tardes e solidão em casa à leitura. Cheguei com apenas um livro, foi um livro que minha mãe me dera alguns anos antes, e o único que eu pude salvar antes de ir embora correndo. Não tínhamos muitos livros em casa, apenas 13 livros, cada um deles minha mãe me entregava no Natal, um por ano. As minhas melhores lembranças são das noites de Natal em que íamos dormir lendo juntas entrando pela primeira de muitas vezes na história nova. O livro que eu consegui trazer era do autor Pedro Bandeira, chamado A marca de uma lágrima, do nosso último Natal juntas e o único que só lemos juntas uma vez.

Este era o livro que eu relia quando encontrei o escritório da casa nova, que ficava praticamente escondido no final de muitas portas. A porta do escritório tinha uma aparência mais antiga do que todas as outras, logo percebi que não havia passado pela mesma reforma do restante da casa. Mas o mais importante dessa porta é que dentro dela encontrei histórias, muitas. A primeira coisa que eu vi foi a parede inteira formada por livros. Era para ser o quarto de trabalho do meu pai, mas, como ele nunca estava em casa, vivia fechado, ninguém ia lá, apenas a moça da limpeza. Encontrei meu espaço. Era pra mim um universo paralelo daquela casa e era meu segredo.

A estante que ocupava todas as paredes do escritório era de uma madeira escura, antiga, mas perfeitamente polida, dessas madeiras tão lisinhas que era quase um espelho escuro. Os livros eram impressionantes, uma sequência perfeita de lombadas milimetricamente alinhadas e coloridas, indo desde muito antigas, mas extremamente bem cuidadas e conservadas, até lombadas mais novas de edições que eu até já reconhecia das livrarias. No fim dela encontrei alguns nichos vazios que pareciam gritar pedindo para serem ocupados. Foi onde deitei o meu A marca de uma lágrima e fui dormir sonhando com poder voltar no dia seguinte e escolher um novo livro para desbravar.

Muitas portas

No dia seguinte à minha descoberta, voltei muito empolgada e mais calma para me atentar aos móveis além da estante. A mesa que ficava bem de frente pra porta era grande e imponente, da mesma madeira da estante e atrás dela tinha uma poltrona marrom muito confortável. Sobre a mesa havia apenas um busto pesado que não consegui identificar de quem era, um porta canetas com cinco canetas caras e um bloco de notas com capa de couro. O piso de todo o escritório era forrado por um enorme e grosso tapete trabalhado com tons de vinho, bege e branco. Era um ambiente elegante e sóbrio, sem deixar de ser confortável. No outro canto ficavam duas enormes poltronas caramelo com pufe. Um grande relógio mecânico batia entre as duas poltronas e cada uma delas tinha uma mesinha comportando um candelabro com velas usadas. Esse canto do escritório sempre me fazia sorrir lembrando dos elementos de A Bela e a Fera. Infelizmente, nessa casa ninguém aparecia cantando “Seu jantar” e chamando para a diversão.

Era mesmo um lugar mágico. Eu só sentia falta de uma janela, mas tudo bem, na falta dela o lustre central parecia mesmo um sol brilhante e majestoso. Quanto ao clima, estava sempre fresco, com um surpreendente cheiro de flores, cheiro fresco de primavera em um cômodo sem nenhum verde.

Voltei para a estante, primeiro para o livro que deixei na noite anterior. Ele estava em pé, perfeitamente alinhado com todo o resto da estante, mesmo naquele nicho sozinho. Eu não sabia que a moça da limpeza estava em casa de manhã e nem que tinha TOC. Deixei como estava e fui procurar um novo livro para começar a ler. Impressionada com tantos títulos, peguei o primeiro livro da estante, que era claramente o mais velho de todos ali. Fiquei surpresa quando segurei nas mãos O pequeno príncipe, era uma edição em inglês de 1943, eu estava segurando sua primeira edição. Eu também tinha esse livro, foi um dos treze livros natalinos, mas minha edição era bem novinha. Na sequência haviam edições igualmente antigas de livros do George Orwell, Sartre, Veríssimo. Fui retirando da estante para conferir minha suspeita, coloquei aqueles primeiros livros na mesa e fui abrindo todos para ver as datas das edições e eram todos da década de 40 mesmo. Ergui os olhos, girei por toda a estante e contemplei todos aqueles livros, nunca havia me sentido com tantas possibilidades; cada livro era uma porta aberta me convidando para entrar. Eram muitas portas. A estante estava toda organizada pelas décadas das edições, alguns até repetidos, mas não iguais.

O tempo passou e eu não senti, estava extasiada colocando livros e mais livros na mesa para sentir a textura das folhas, sentir o cheiro de cada um, conhecer capas antigas de livros aclamados. Eu estava passando pelas folhas da edição em inglês de 1954 de Senhor das Moscas quando vi na sua última folha, uma lista de cinco nomes, cada nome estava escrito com letras diferentes e com canetas bem diferentes. Fui para a última página dos outros livros que espalhei na mesa e todos tinham esses mesmos nomes na última folha, a mesma sequência de assinaturas, a diferença era que nos primeiros livros da estante havia seis nomes e nos mais novos apenas um. O primeiro nome da lista nos primeiros livros era Henrique, esse primeiro nome não existia mais a partir de alguns livros da década de 50 e o último nome das listas, que estava em todas, e primeiro e único nome nos livros mais novos era Victor.

Estava passando os dedos no nome Victor, escrito com caneta azul em todas as folhas, quando ouvi minha madrasta gritando meu nome e só tive tempo de apagar as luzes e sair correndo. Lamentei ter deixado aquela bagunça na mesa, mas não podia voltar até o dia seguinte. Ao menos eu sabia que ninguém nunca abria aquela porta, ainda mais com meu pai viajando.

Na manhã seguinte, como de praxe, todos já haviam saído quando eu acordei. Eu deveria ir para a escola, mas precisava arrumar a bagunça que fiz antes da limpeza ser feita, ou seria descoberta. Não vou chamar de surpresa o que só pode ser expresso em palavras como um tremendo susto: quando entrei no escritório, todos o livros estavam de volta exatamente no lugar, alinhados como se eu nunca tivesse estado ali.

Sem saída

Nos dois meses que se seguiram minha rotina já estava bem estabelecida e tranquila, eu não tinha do que reclamar. Era mais do que eu havia sonhado. Eu ia para a escola todas as manhãs e passava o resto da tarde lendo no escritório e saía antes de qualquer morador chegar. Eu também tinha sempre algum lanche para as tardes de leitura, a Dona Rosa passou a me dar de presente todos os dias, ela dizia que era um agradecimento por eu compartilhar com ela toda manhã as surpresas do que li na tarde anterior. Nossas conversas eram as únicas que eu tinha, mesmo indo à escola. Devorei vinte títulos nesses dois meses. Continuei não vendo as pessoas da casa, mas todo dia eu estava com muitos personagens, eu nunca estava sozinha.

Mesmo que eu não terminasse a leitura, eu guardava os livros no mesmo lugar antes de sair do escritório. Não queria mais passar por aquele susto. Quando contei pra Dona Rosa, ela me convenceu de que foi apenas uma coincidência, mas que eu deveria respeitar a organização e deixar as coisas sempre como as encontrei. Assim, tive meus dias tranquilos nesses dois meses e fui crescendo com cada aventura que vivi, digo, que li.

Então, uma tarde eu estava lendo O sol é para todos quando ouvi minha madrasta gritando meu nome, tinha chegado mais cedo. Não tive tempo de terminar o capítulo, então escondi o livro debaixo da blusa e sai correndo. Ela não percebeu nada. Fui dormir na companhia do personagem Atticus Finch, meu sonho de pai, adormeci com o livro no colo.

Acordei. O livro não estava na cama, não estava no chão. Procurei por todo o quarto e não achei. Não consegui nem pensar se havia alguém em casa, corri pro escritório e Harper Lee estava exatamente no seu local na estante. Senti um arrepio nos pés à cabeça, essa casa era mal assombrada.

A porta que não abriu

Sabe quando vemos um filme de terror e pensamos “Não vá em direção ao barulho, fuja dele”? Eu descobri que na prática a gente vai mesmo lá. Eu estava com medo sim, mas eu queria confirmar se não era tudo coincidência e se não, quem era esse fantasma e o que ele queria.

Comecei a fazer testes. Troquei várias vezes os livros de lugar mas deixando alinhados, assim que eu voltava pro escritório tudo estava de volta ao seu lugar. Algumas vezes fui no meio da noite mesmo e tudo arrumado.

Eu só havia me esquecido de um detalhe: esqueci do Marca de uma lágrima. Planejei tantos truques e nem me lembrei do meu livro. Foi por um estalo que o peguei na estante e fui até a última folha. Lá estava, “Victor” em tinta azul. Coloquei várias últimas páginas juntas e era a mesma letra, com certeza. É claro que perguntei para o meu pai quem era Victor, ele não fazia a menor ideia e eu não queria contar tudo.

Então só me restava uma última armadilha, fechar a porta do escritório comigo dentro e muitas coisas fora do lugar. Deixei um livro aberto em cima de uma das poltronas, troquei vários livros de lugar e me escondi embaixo da mesa. Esperei por horas a porta abrir e ele entrar, mas você já sabe que ele entrou e a porta nunca abriu.

Victor era jovem e muito bonito para um fantasma. Ele me deu a mão para sair debaixo da mesa e eu aceitei. Seu olhar e sorriso me acalmaram, mesmo sem dizer uma palavra eu já sabia que não era um inimigo. Sentamos nas poltronas e ele começou a me contar uma linda história que merecia estar naquela estante.

De fato, aqueles livros nunca saíram daquele espaço, era um acordo contratual da casa e mesmo com esta passando por muitas famílias, o escritório pouco mudava. A história por detrás desse arranjo é impressionante e quase inacreditável, mas precisa ficar para ser contada em outra oportunidade. A regra era simples: livros entravam na estante, mas nunca saíam. Para tudo permanecer organizado, a cada dez anos eram designados guardiões dos livros e Victor era o atual. Foram horas de conversa, e a história do Victor e dos outros nomes da última página eu irei contar em outro conto. Agora eu preciso contar que a década dele havia acabado. E ele finalmente encontrara uma substituta.

Victor levantou, pegou o primeiro livro da estante e me entregou junto com uma caneta roxa. Abriu na última página e me perguntou se eu gostaria de colocar o meu nome. Escrevi: Aurora.

Porta para o paraíso

Levei vários dias para colocar meu nome em todos os livros e só quando terminei é que Victor me explicou como entrava e saía do escritório. Ele me entregou um cordão com uma chave antiga e me mostrou uma passagem secreta atrás da poltrona. Entramos por ela e depois de andar alguns minutos chegamos à porta trancada. Abri com minha chave e lá estava a razão do cheiro de flores e frescor, um pequeno e encantador jardim todo fechado por um muro de plantas. Na sombra de uma árvore grande havia uma senhora, me aproximei, era uma Rosa, Dona Rosa, a Rosália da lista de nomes nos livros. Ela estava lendo um dos livros da estante, que eu ainda não tinha capacidade de perceber que havia sumido de lá.

Uma cantiga que minha mãe cantava me vem ao coração. A música antiga dizia: “A minh’alma chorou tanto/ Que de pranto está vazia/ Desde que aqui fiquei/ Sem a tua companhia/ Não há pranto sem saudade…” Minha mãe se foi. E essa marca nunca vai parar de doer. Viver sem a companhia dela não será simples. Ao me fazer amar os livros, ela me deu algo dela. Ela me deu o dom das histórias. Como poderei viver sem a sua companhia? Há muito dela em mim. Não somente memórias e padrões, mas também o amor por devorar histórias. E como guardiã de uma biblioteca, eu me sinto continuando algo que ela fez. Plantando sementes de vida em forma de preservar histórias. Pois bem. Mesmo sem as coisas serem como a gente gostaria, elas podem ficar bem.

Eu encontrei o meu lar, minha missão e infinitas histórias.

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