Retrospectiva L&R 2017 (Parte II)

Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção
11 min readDec 27, 2017

Os destaques literários do Leonardo Galdino e do casal André e Norma Venâncio

Ao longo dessa semana, iremos postar algumas listas de livros destaque de 2017. Vale esclarecer que essa é uma lista de “leituras preferidas”, já que listamos livros de outros anos, não só os publicados em 2017. Além disso, esses não são necessariamente os melhores livros, mas aquelas leituras que destacaram pelos mais diversos motivos.

Leonardo Galdino

Este ano foi pródigo de boas leituras infantis. E o autor de histórias infantis que mais li em 2017 foi o britânico (ah, os britânicos!) Roald Dahl (1916–1990). Confesso que não o conhecia até pouco tempo, mas quem tem amigos não morre de fome. Um texto (maravilhoso, diga-se) que o Tiago Cavaco escreveu sobre O BGA foi que me apresentou ao mundo do criador de A girafa, o pelicano e eu, O fantástico senhor Raposo, Matilda, As bruxas (box “O mundo de Roald Dahl”, da Editora Martins Fontes) e O BGA (Editora 34), que são os livros sobre os quais comento em seguida.

A girafa, o pelicano e euToda criança tem um desejo maluco. Um dos meus era dormir dentro de um supermercado apenas para comer todo o estoque de biscoitos. Aliás, era esse o meu plano quando o mundo tivesse acabando. Por falta de correligionários e alguns detalhes escatológicos, porém, acabei desistindo (ao menos por enquanto).

A girafa, o pelicano e eu fala de um menino que sonhava ser dono da antiga confeitaria — agora, uma casa abandonada — do bairro. O problema é que agora tem gente morando lá. Gente não, bichos. Mais especificamente, uma girafa, um pelicano e um macaco, que a transformaram na Companhia de Limpeza de Janelas sem Escada. Surge, então, uma amizade improvável entre o menino e os bichos-empresários, que vão ajudá-lo a recuperar a sua tão sonhada confeitaria. A girafa, o pelicano e eu é uma história sobre companheirismo, amizade e sacrifício, temperada de nostalgia e magia. Eu já contratei a Companhia de Limpeza de Janelas sem Escada para limpar as minhas janelas. Agora é torcer para que ela realize o meu antigo sonho de criança.

O fantástico senhor RaposoA principal lição de O fantástico senhor Raposo é que, enquanto uns estão cegos pelo desejo de vingança, outros aproveitam a cegueira destes uns e lhes subtraem ainda mais galinhas. Simples assim. O final ecoa a sentença bíblica: “A fartura do rico não o deixa dormir” (Eclesiastes 5.12). (Aliás, o livro todo parece ecoar o capítulo 5 de Eclesiastes, especialmente os versos de 10 a 20.)

MatildaAssisti ao filme quando criança na Sessão da Tarde, no tempo em que passavam filmes como Te pego lá fora, Conta comigo e outros um tanto impensáveis para os padrões de hoje. A história da menina-prodígio Matilda é muito divertida, apesar de, no fundo, melancólica. Os pais dela, por exemplo, são o pior exemplo de pais que uma criança pode ter: omissos e absolutamente desencorajadores do desenvolvimento intelectual de sua filha. A diretora da escola — a Sra. Taurina (“Trunchbull”, no filme) — , por seu turno, é o pior exemplo possível de educadora: estúpida e autoritária. Mas o livro mostra que nenhum pecado fica oculto por muito tempo, e é muito interessante que os poderes telecinéticos de Matilda só durem até o momento em que os “podres” sejam revelados e punidos.

As bruxas Sabe aquela imagem das bruxas como velhas carcomidas e narigudas que usam um chapéu pontudo e voam em vassouras ao som de gargalhadas horripilantes? Esqueça. “Bruxa de verdade”, diz Dahl, “não dá paulada na cabeça, não enfia faca na barriga e nem dá tiro de revólver em criança. Gente que faz isso a polícia prende.” Pelo contrário, bruxas de verdade estão metidas com projetos nobres tais como a Real Sociedade para a Prevenção da Crueldade com Crianças. Com que objetivo?, alguém pode perguntar. Muito simples: triturar e trucidar crianças (uma por semana, se possível), mas sem, evidentemente, deixar vestígios de que foram as responsáveis pelo crime. Para isso, elas precisarão da ajudinha da escola e dos próprios pais das crianças. Muito espertas, as bruxas de verdade.

Só que elas não contavam com a astúcia da avó do protagonista, profunda conhecedora dos estratagemas do mal e, como se não bastasse, algo politicamente incorreta — um perfil ideal para ensinar uma criança a lidar com as bruxas do mundo real, digamos.

As bruxas é um livro magnificamente urdido com uma das verdades mais básicas (e mais ignoradas) em relação ao mal: a de quão sutil ele é (cf. 2Coríntios 11.4). Tudo de que as crianças precisam é de adultos que lhes ensinem isso. (Curiosamente, em momento algum somos informados do nome do protagonista. Como o autor é britânico, suponho que ele tenha feito isso para ressaltar a importância do homem comum.)

O BGA (O Bom Gigante Amigo) — Como o Tiago Cavaco já escreveu tudo o que eu gostaria de ter escrito sobre O BGA, serei breve. Assim como em As bruxas, a mensagem que perpassa O BGA é a de que, efetivamente, as coisas fracas desse mundo foram escolhidas para envergonhar as fortes, e que a salvação vem dos lugares mais inesperados. Um dos pontos que mais me chamou a atenção foi a referência a João e o pé de feijão. A confissão de temor do gigante Comecarnecrua enquanto sonhava (“João, por favor, não mata eu! Não machuca eu, João!”) foi, para mim, uma forma genial que o autor encontrou de dizer que gigante algum resiste diante de uma imaginação bem cultivada.

André Venâncio

O vermelho e o negro, Stendhal — Este é um romance clássico da literatura francesa, ambientado no período da Restauração. Revela muito dos valores, costumes e contradições desse interessante momento histórico francês: tensões entre a metrópole e a província, entre a nobreza e a burguesia, entre jesuítas e jansenistas etc. Mais que isso, é uma reflexão sobre os frutos trágicos da vaidade, da ambição e do orgulho; ou, melhor dizendo, do que acontece quando cada um busca no olhar aprovador dos outros sua própria fonte de valor. Trata das motivações profundas do coração, em um sentido que transcende em muito os ídolos mais superficiais do dinheiro, do poder e do sexo, que surgem apenas como consequências das relações profundamente ambíguas de adoração e desprezo entre os seres humanos. Agradeço à Norma, minha esposa, pelo ótimo presente.

Fausto, Johann Wolfgang von Goethe — Esta peça de teatro escrita em verso é um clássico da literatura alemã. Muitos momentos de grande beleza, e outros tantos de verdades preciosas e de humor de qualidade. É repleta de cristianismo, mas em uma versão fortemente romântica. Ensina muito sobre o clima intelectual e cultural alemão da virada do século XVIII para o XIX, mas traz lições que transcendem em muito esse contexto, pois trata das idolatrias do poder e do conhecimento, tão em alta nos dias de hoje, e das decepções que elas inevitavelmente trazem. Quem tenta domesticar o mal acaba corrompido, manipulado e escravizado por ele, e tanto mais quanto mais poderoso se julgue. É uma tragédia que pode ser descrita como uma espécie de Livro de Jó, mas com vitória do demônio. Apesar disso, a graça não deixa de ocupar um papel importante.

O último suspiro do mouro, Salman Rushdie — Com um estilo narrativo bastante criativo e uma história cheia de inverossimilhanças cuidadosamente planejadas, o célebre escritor indiano nos oferece várias coisas ao mesmo tempo. É a história de uma família ao longo de várias gerações, com seus padrões permanentemente ambíguos de amor e ódio, carinho e ressentimento, lealdade e rivalidade, tréguas e conflitos dos mais variados tipos. É um retrato da Índia moderna, com toda a sua diversidade política, étnica, cultural, religiosa e axiológica; muitos projetos de nação que nunca se concretizam de fato, enquanto o país real é uma confusa mistura de todos eles. Apesar de todas as diferenças, há muitas lições que se aplicam a nós, brasileiros, com nosso estetismo e autoritarismo instintivos. Rushdie compreende que não há saídas fáceis, e sabe que o homem autoritário, justamente por não entender isso, torna-se parte do problema. O livro é uma lição vívida sobre os efeitos do pecado, tanto na intimidade quanto no plano público e coletivo.

O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, Miguel de Cervantes Saavedra — Descobri que o maluco mais carismático da literatura universal merece toda a fama que tem. Os diálogos entre Dom Quixote e Sancho são as coisas mais engraçadas que já li; e olhem que já li Monteiro Lobato e Nelson Rodrigues. Mas, embora isso já faça compensar a leitura, ela tem muito mais a oferecer, e quem não extrair dali nada além dos risos terá sido enganado por uma superficialidade simulada. Por baixo dela há uma seriedade impressionante, para muito além da crítica dos romances de cavalaria. É um livro sobre os efeitos noéticos do pecado. Sobre a natureza moral da loucura. Sobre o coração como fábrica de ilusões persistentes e suas consequências desastrosas. Sobre como essa loucura se torna altamente contagiosa, socialmente compartilhada. E sobre como o antídoto é eminentemente espiritual e divino, e nada menos que isso.

Norma Braga Venâncio

Deuses americanos, de Neil Gaiman, foi lido como parte de um costume bem meu: buscar momentos de verdade na literatura, que muitas vezes traz insights mais preciosos sobre certos temas que as teorias em torno deles (Girard que o diga!). Meu assunto do momento ainda é René Girard e a idolatria, já que estou terminando de escrever a dissertação de mestrado para o Jumper (muitos perguntam: mas você não é doutora? por que não fez outro doutorado? Por enquanto não é oferecido no CPAJ, só por isso). Pois para mim Deuses americanos foi como uma pedra preciosa que, a cada giro nos dedos, brilhou com uma verdade diferente aprendida nesse tempo de pesquisa sobre os ídolos: estão ali a imitação, a autoilusão, a fragmentação, a indiferenciação, a duplicidade, a troca de identidade, a instabilidade e provavelmente outras que não captei. Como se ecoasse a teoria mimética, Gaiman mostra que percebe a grande questão envolvida na idolatria — ser deus para os outros — ao colocar na boca de um personagem: “Você precisa entender essa coisa de deus. Não se trata de magia. Não exatamente. […] É preciso ser você mesmo, mas o você em que as pessoas acreditam.” E a idolatria do eu, a mais central segundo o meio reformado, também está presente: “Os deuses são grandiosos. […] Mas o coração é ainda mais grandioso. Pois é de nossos corações que eles nascem, e aos nosso corações hão de voltar.” É quase inacreditável ler isso tudo, se pensarmos que Gaiman não é cristão. Mas, se nossos olhos forem generosos para a arte — não como um simulacro de amor, mas sim o amor verdadeiro, inspirado por Deus –, a graça comum brilhará, sobretudo na melhor literatura.

Li Aventuras de Hans Staden na versão recontada para crianças de Monteiro Lobato, junto com André, e nos divertimos muito. Trata-se da história verídica de um mercenário alemão especialista em artilharia que, no século XVI, foi duas vezes ao Brasil. Na segunda, capturado pelos tupinambás em 1553, esteve a ponto de ser devorado, e não lhe pouparam nem bons sopapos, nem a horripilante visão de crianças dando dentadas em membros humanos. Além dos pontos fortes da aventura, ficou patente para nós o quanto a visão dualista “opressor versus oprimido” se desmancha ao menor contato com a realidade: ali não se tratava das imposições do colonizador sobre as pobres tribos do litoral do Rio de Janeiro, mas sim de uma rede complexa de alianças com o objetivo de prevalecer pela força e pela esperteza. O estrangeiro já chegou a um ambiente de rivalidade tribal por todo lado. Os portugueses haviam se aliado aos tupinambás, e os franceses, aos inimigos dos tupinambás, e nisso Hans ficou em um vácuo que quase lhe custou a vida, pois foi confundido com um francês. Vale a pena, inclusive na versão adulta, uma bela edição da Dantes.

Até que tenhamos rostos, de C. S. Lewis, é mais um romance que tem a idolatria como um dos temas principais. Emocionou-me em vários momentos. Creio que toda mulher cristã que for minimamente sincera consigo mesma não deixará de identificar-se com a personagem principal em suas contradições, sua tendência para o mal, seu ceder progressivo a desejos que contrariam a consciência. (Não contarei se houve redenção, pois seria spoiler!) Para esta girardiana obsessiva, foi impossível deixar de perceber a ambiguidade inerente ao mecanismo do bode expiatório quando decidem justamente sacrificar, como Grande Oferenda, a Amaldiçoada. Em A violência e o sagrado, Girard já havia chamado a atenção para essa característica tão central dos sacrifícios, a visão do sacrificado imersa em profunda ambiguidade, como atesta esse canto de investidura do Moro-Naba, na tribo dos Mossi em Uagadugu: Tu és um excremento,/ Tu és um monte de lixo,/ Tu vens nos matar,/ Tu vens nos salvar.

Essa visão tão distorcida do outro — que em uma hora é o pior dos piores, e em outra, é posto sem cerimônia alguma no pódio dos deuses — é, para mim, uma das marcas mais impressionantes do pecado original nas nossas relações pessoais e no modo com que vemos a nós mesmos. Não há equilíbrio, nem senso de realidade, nas relações idolátricas — que são o que nos resta quando não temos Jesus. “Entendi bem por que os deuses não falam conosco abertamente, nem nos dão respostas”, diz a personagem principal. “Até que as palavras sejam arrancadas de nós, por que é que eles vão ouvir o murmúrio daquilo que pensamos querer dizer? Como eles podem olhar bem dentro de nossos olhos, se não tivermos rostos?” Rebaixar-nos e rebaixar o outro; elevar-nos ou elevar excessivamente o outro até torná-lo um deus: eis os extremos para onde o pecado que trabalha em nós nos joga, incessantemente, despedaçando as identidades humanas.

Embora não pregue a Jesus de modo manifesto nesse livro, habilmente Lewis nos guia por uma história de pagãos em que a graça de Deus se deixa entrever.

Os Buddenbrook: decadência de uma família, de Thomas Mann, é um calhamaço de 679 páginas que li com grande prazer, acompanhando a vida da família burguesa na Alemanha através de várias gerações. Ao longo do tempo, a família perde dinheiro, fama, prestígio, vigor. A fragilidade de nossos ídolos — não tem jeito, é minha obsessão atual — é exposta a nossos olhos sob a escrita vigorosa de Mann, que, embora elegante e implacável em sua exibição da condição patética de nossos desejos, não prescinde de boa dose de empatia: cada personagem nos desperta compaixão, mesmo o mais medíocre, desastrado e tolo, ou até o pior antagonista. Há uma tristeza especial, para nós, quando entendemos que nessa família o luteranismo dos mais velhos em nada concorreu para uma visão mais saudável da vida e das realizações: todos buscam sua própria vontade, não a de Deus, e as menções específicas à religião não soam muito bíblicas. Um exemplo disso é o culto familiar: “Muitas vezes, a Bíblia foi substituída por um dos sermonários ou livros edificantes de encadernação preta e bordas douradas que existiam em abundância na casa; desses tesouros, Saltérios, Horas Sagradas, Sinos da Manhã e Bordões, cuja constante ternura, devotada ao Menino Jesus, doce e delicioso, parecia um tanto nauseante.” Nesse trecho, não pude deixar de pensar no pietismo alemão, que submergiu a fé nas emoções e isolou-a do real: é precisamente isso que se entrevê em todo o romance, sustentando para os leitores cristãos, ainda que não em consonância com a intenção do autor, a tese muito verdadeira de que, sem a presença do Deus vivo, toda família está fadada à decadência.

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Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção

Isto é água e talvez esses esquimós sejam bem mais do que aparentam.