Retrospectiva L&R 2017 (Parte III)

Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção
7 min readDec 28, 2017

Os destaques literários da Ana Paula Nunes e do Fernando Pasquini

Ao longo dessa semana, iremos postar algumas listas de livros destaque de 2017. Vale esclarecer que essa é uma lista de “leituras preferidas”, já que listamos livros de outros anos, não só os publicados em 2017. Além disso, esses não são necessariamente os melhores livros, mas aquelas leituras que destacaram pelos mais diversos motivos.

Ana Paula Nunes

Notas da Xícara Maluca, N. D. Wilson — Eu não posso deixar de colocar este livro como um dos melhores que eu li este ano, simplesmente porque foi o melhor. Estou certa de que ler este livro faz até todas as outras literaturas que eu li se tornarem mais prazerosas ainda. O que N. D. Wilson faz neste livro é poesia, é abrir nossos olhos para a beleza de toda criação de Deus, é remoldar nossos olhos e nossos sentidos para um maior deleite nas coisas da terra. Não há uma pessoa sequer no mundo para quem eu não indicaria ler esse livro agora mesmo. Se você enxerga e sabe ler, leia.

Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma apresentação, J. D. Salinger — Este foi o primeiro livro que eu li em 2017 justamente pra já começar bem, confiante depois de O apanhador no campo de centeio, que é um favorito da vida. Esse livro tem duas histórias com pouco cenário, uma narrativa digna de Salinger e um personagem que não aparece, mas tudo é sobre ele e você vai amá-lo. Além de ser, o que amo demais, um livro que fala sobre narrativas, críticas literárias irônicas e mais um pouco. Preste atenção e see more: “Levantem bem alto a cumeeira. Tal como Ares, aqui vem o noivo, muito mais alto que o mais alto dos homens.”

Agência de investigações holísticas Dirk Gently, Douglas Adams — Começo a perceber que todo ano eu preciso ler Douglas Adams para o bem das minhas gargalhadas. Não foi fácil ler este livro em público e conter a risada. São várias histórias tão confusas quanto só Douglas Adams poderia imaginar, mas que num determinado momento se interconectam e se entrelaçam ao todo sem trivialidades, ou com ótimas trivialidades. Ficou confuso? Apenas leia e se divirta com esse gênio.

O Senhor das moscas, William Golding — Li livros divertidos e românticos, mas eu também li um pouco de terror escrito no pós-guerra (calma, ele é classificado como drama. Terror sou só eu que estou dizendo). Meninos perdidos numa ilha deserta sem nenhum adulto, será que a civilidade e “ingenuidade” deles dura muito tempo? Este é um livro pra ficar martelando a mente enquanto lê e muito depois. Muitas alegorias, muito de disputa de poder e uma noção, pela graça comum, de que já nascemos pecadores sim.

Mary Poppins, P. L. Travers — Foi assim: Um dia eu acordei dizendo “quero ler Mary Poppins pra ficar feliz”, sem nem saber do que se tratava, já que nem o filme eu vi. E foi exatamente isso que essa leitura fez, me deixou feliz a cada página, feliz mesmo de sorrir e aquecer o coração. Simples e encantadora, é assim a imaginação da autora e o dia-a-dia dessas crianças com a babá mágica e teimosinha. Coloca aí na sua lista de livros pra ler em clima de Natal, na lista dos livros que viraram musical, na lista de clássicos e na lista de livros para te fazer feliz. Aproveita o encanto e já lê também a história original de A Bela e a Fera de Madame de Villeneuve (ops! Este foi outro queridinho de 2017).

Fernando Pasquini

Duna, Frank Herbert — Enfim, li o livro de ficção científica mais vendido de todos os tempos. Alguém poderia esperar que gostei do livro devido aos temas filosóficos e relacionados a ciência e tecnologia, mas não é só isso, caso contrário, teria citado Bruno Latour ou Albert Borgmann, autores teóricos que me ensinaram mais sobre isso neste ano. As discussões filosóficas têm o seu lugar, mas, acima de tudo, o livro me encantou, e Herbert foi muito bem sucedido nisso, ao conseguir criar um livro épico, aos moldes da literatura antiga, em um cenário futurista de colonização do espaço. Desconfio que ele consegue isso por causa de sua capacidade de imaginar novas tecnologias e configurações que tornam outras tecnologias obsoletas e que trariam as complicações e o tédio do mundo moderno — como os escudos de força que obrigam que as pessoas lutem com espadas, um “jihad butleriano” que eliminou todos os robôs e agora deve treinar seres humanos para fazer processamentos (os mentats); e toda organização em um império feudal, com seus dramas de nobreza e lutas de poder. O livro tem cenas belíssimas e épicas, chegando a retratar, de uma forma muito dramática e que me tocou, as condições extremas e até mesmo uma “privação estética” que a família Atreides experimenta ao se mudar de um planeta paradisíaco, Caladan, para Arrakis, um planeta desértico habitado por vermes gigantes. Já na parte filosófica, um dia ainda pretendo explorar a forma bem interessante com que o livro trata os temas manipulação genética, positivismo lógico e ecologia, sem contar as questões religiosas e o messianismo, no qual a série inteira de livros parece girar em torno. (Nota: nem ligue para o filme de 1984. Ele é grotesco e bastante infiel ao livro, e tem mais a ver com as excentricidades dos anos 80 do que com ele.)

Frankenstein, Mary Shelley — Não comentarei muito sobre esse livro uma vez que será o assunto do meu próximo texto aqui no blog. E, se a ideia neste ano era ler livros de ficção científica importantes e bastante conhecidos, este não poderia ficar de fora. Fui lê-lo com a consciência de que este talvez seja um dos primeiros romances a tratar de ciência e tecnologia, e, de fato, não me decepcionei. Ele tem muitas falhas, é claro, como filho de sua época romântica, mas é neste aspecto que também se torna interessante, ao discutir bastante as aspirações humanas e seus dilemas no desenvolvimento cultural, ao lado da presença do sublime na natureza “intocada”. A presença do pecado, desenvolvendo-se em uma busca por autonomia e poder, e culminando em fragmentação, isolamento, obsessões descontroladas e autocomiseração, só pode ter um resultado: o horror. E isto não se aplica apenas a Victor, mas também ao monstro, cuja parte da narrativa é bastante ignorada, mas que achei mais interessante. Falo mais sobre isso em breve.

Notas da Xícara-Maluca, N. D. Wilson — Também não vou comentar muito sobre este, porque tenho certeza de que também estará na lista de outros escritores deste blog. É um daqueles livros que você nunca mais é o mesmo depois que lê. Mudou minha forma de encarar a teologia e a vida cristã, chamando-me a atenção para a importância da criação e do prazer em Deus por meio dela de uma forma que um livro puramente teórico dificilmente conseguiria fazer. A parte que mais me tocou inspirou meu último texto do blog, “Olhai os sapinhos”, que inclusive tem um estilo parecido (copiado?) do livro.

Gilead, Marilynne Robinson — Eu amo fantasia, e queria falar sobre três livros de fantasia que me abençoaram muito neste ano: James e o pêssego gigante, de Roald Dahl, The Story of King Arthur and His Knights, de Howard Pyle, e Um conto de Natal, de Charles Dickens. Vejo que, em todos eles, o papel da graça é sempre muito claro e presente; um remédio para nossa época ativista que quer conquistar tudo por seu próprio esforço ou piedade. Mas por indicação de amigos — membros deste blog — fui ler este romance realista, esperando coisa boa, é claro, mas sem imaginar que minha empolgação seria como a que experimento na fantasia. O que descobri é que a escrita de Marilynne Robinson me provoca uma sensação parecida da de um livro de fantasia, mas com a “realidade” — são tremendas trivialidades, como diria Chesterton, onde a graça está sempre presente, apesar de lutas e sofrimento. Gilead é, para mim, um livro épico que se passa na vida de um pastor comum, escrevendo uma carta para seu filho, relatando suas lutas, alegrias, prazeres, esperanças e até pecados. Talvez não precise dizer que mudou muito a minha forma de entender o ministério pastoral, o aconselhamento e a apologética, fazendo-me um bem enorme até na forma de lidar com eles e outros membros na minha igreja local.

O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Oliver Sacks — Ganhei este livro do André Venâncio, membro deste blog, e foi um daqueles livros por que você naturalmente não se interessaria, mas que, depois de ler, descobre que era o que mais precisava ler no momento. Já faz algum tempo que tenho buscado refletir sobre o papel e natureza da medicina, e este livro, ao lado de Naming the Silences: God, Medicine and the Problem of Suffering, lançou uma luz tremenda nestes assuntos. Aliás, o próprio Stanley Hauerwas, como um teólogo narrativo, cita bastante Oliver Sacks ao alegar que a doença e a enfermidade sempre ganham sentido e propósito à luz de narrativas pessoais, não podendo ser reduzidas a mecanismos puramente biológicos ou instrumentais. Este é um livro com várias narrativas pessoais — algumas belas, outras perturbadoras — que desafiam visões médicas comuns, mostrando que as enfermidades são excelentes professores de antropologia e que, muitas vezes, a própria fronteira entre uma doença e uma bênção não é muito discernível. A maioria das doenças relatadas ali não tem cura, mas, ao contrário do que aspira a “antropodiceia”, ou teodiceia secular, que é a medicina moderna, o objetivo do médico não precisa ser sempre o de curar, mas o de cuidar. E, neste sentido, o livro de Sacks mostra um lado extremamente humano — e literário! — do cuidado com pessoas.

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Filipe Schulz dos Santos
Literatura e Redenção

Isto é água e talvez esses esquimós sejam bem mais do que aparentam.