Rouxinóis, cães raivosos e a justiça que vem do Alto

Romance de Harper Lee nos convida a olhar para as pessoas da perspectiva daquele que nos olha da janela

Leonardo Bruno Galdino
Literatura e Redenção
10 min readNov 19, 2018

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Dos muitos juramentos que fiz ao longo da vida, um em especial me marcou. Foi na infância, e dizia respeito a matar passarinhos. Como qualquer menino no início da década de 90, eu ficava muito animado quando chegava a época do estilingue. Era uma de minhas brincadeiras favoritas (jogar bola não conta, pois sempre era época de bola). Uma vez, empolgado com um estilingue novo, resolvi testá-lo num jambeiro. Atirei ao acaso, e acabei acertando um passarinho. O coitado já caiu defunto. Era um sebito. Um amigo, mais velho que eu, disse que eu ia para o inferno. Não lembro que argumento ele usou (talvez estivesse apenas caçoando de mim), mas acreditei piamente naquilo. A partir dali, somente lagartixas e ratos entrariam na minha alça de mira. Passarinhos, nunca mais.

A verdade é que eu nunca encontrei uma explicação para não matar passarinhos que não fosse afetiva. Embora por vezes sentisse uma ponta de inveja dos meus amigos pela naturalidade com que matavam bem-te-vis como quem matavam lagartixas, no fim eu acabava com a consciência tranquila por seguir fiel em minha decisão. Se eles não tinham o mesmo escrúpulo que eu, paciência. Só juramos fidelidade àquilo que nos marca. O que eu não sabia era que, por trás daquela simples e infantil resolução (como talvez de toda simples e infantil resolução), escondiam-se conceitos tão fundamentais para a vida, como a justiça, com seu caráter retributivo — e O Sol é para todos (To Kill a Mockingbird), de Harper Lee, tornou-a mais nítida para mim.

Como se trata de obra bastante famosa, especialmente pela magnífica adaptação para filme de Robert Mulligan, de 1962, estrelada por Gregory Peck, cabe um comentário preliminar: O Sol é para todos, ao contrário do que o título sugere, é muito mais que uma simples “história de um advogado que defende um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca nos Estados Unidos dos anos 1930 e enfrenta represálias da comunidade racista”. Embora a temática do racismo ocupe parte considerável da narrativa, este é apenas um aspecto de algo maior: a visão sempre fragmentada que temos das pessoas e que determina nossos relacionamentos. “Você só consegue entender uma pessoa de verdade quando vê as coisas do ponto de vista dela”, diz Atticus Finch naquela que talvez seja a frase que melhor resume o espírito da obra.

[Spoilers daqui em diante]

Ajustando a perspectiva

Atticus é um advogado viúvo que vive com seu casal de filhos e a governanta negra no pacato condado fictício de Maycomb, no Alabama, sul dos Estados Unidos. Sua vida é pautada por vários princípios: não se pode ser uma pessoa na cidade e outra em casa; “a única coisa que não deve se curvar ao julgamento da maioria é a consciência de uma pessoa”; e, como já foi dito, a empatia é a única maneira de entender realmente o outro. Embora ele possua uma visão por vezes um tanto romântica do homem, não é isso o que acaba predominando. O livro é narrado por Jean Louise “Scout” Finch, sua adorável filha, numa tentativa de reconstituir os fatos que levaram ao acidente que culminou na fratura do cotovelo de seu irmão Jem.

As reminiscências de Scout incluíram especialmente as férias de verão com seu irmão e o melhor amigo de ambos, Dill, suas inúmeras tentativas de espiar dentro da misteriosa casa dos Radley, as confusões na escola e, como não poderia deixar de ser, a escapulida para assistir ao evento catalisador do romance: o júri de Tom Robinson, o homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. O fato de o livro ser narrado em primeira pessoa, e essa pessoinha ser uma criança, torna a história ainda mais interessante (e emocionante). Afinal, Scout, dada a sua pouca idade (seis, quando começa o livro), ainda não tem uma percepção exata do que ocorre ao seu redor, exceto pelas brigas compradas na escola devido às chacotas que sofria pelo fato de seu pai, um homem branco, defender um negro. Era o despertar dela para o problema da (in)justiça.

Embora esse termo possua uma conotação estrita em certos pontos do livro (afinal, temos um júri aqui), a forma com que a autora trabalha a ideia é, de modo geral, mais ampla. O tempo todo exercemos “justiça” sobre as pessoas, pois o tempo todo somos guiados pelos preconceitos — bons ou maus — que nutrimos sobre elas. A governanta Calpúrnia, que no livro sempre é retratada de maneira positiva, considerava o Sr. Radley “o pior homem que Deus já botou no mundo”, embora tudo de ruim que saibamos sobre ele viesse da Srta. Stephanie Crawford, que no livro é retratada como “uma vizinha megera”. Já a Srta. Maudie, mais ponderada, limita-se a dizer que “nunca sabemos como realmente vivem as pessoas”, quando Scout lhe pergunta se o filho do Sr. Radley, Arthur “Boo” Radley, é louco. A própria Scout é recriminada pela tia (outra megera) por vestir macacão, ser briguenta e chamar o pai pelo nome. Mas existem, também, os bons preconceitos. O rouxinol e o cão raivoso talvez sejam os exemplos mais eloquentes.

É pecado matar um rouxinol

Uma digressão: se por um lado eu não acho que o título da edição em português seja dos mais felizes, por outro também não consigo vislumbrar uma alternativa totalmente satisfatória em termos comerciais (não podemos esquecer disso) e literários. A dificuldade começa com o fato de que mockingbirds (lit. “pássaro zombeteiro”) não existem por estas bandas. Trata-se de um pássaro canoro que imita os sons de outros pássaros. Então mockingbird virou rouxinol. Não que isso seja determinante para entender o livro, mas em todo caso é bom o leitor ficar atento (ainda bem que colocaram o título original entre parêntesis na capa!).

Mas por que, enfim, não se deve matar rouxinóis? Talvez C. S. Lewis nos ajude aqui.

Em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, na cena em que as crianças estão à procura do lugar para onde a Feiticeira Branca teria levado Sr. Tumnus, o fauno, elas deparam com um pintarroxo “com cara de quem quer[ia] falar alguma coisa”. Lúcia (tinha que ser ela!) acha que o passarinho queria que elas o seguissem. Edmundo (tinha que ser ele!) chama Pedro de canto, para “não assustar as meninas”, e fala sobre o risco de ir atrás de um guia que não se sabe quem é. “Quem pode dizer se ele não está levando a gente para alguma armadilha?”, pergunta. A resposta de Pedro é bastante instrutiva:

— Que ideia boba! Além disso, você está vendo, trata-se de um pintarroxo. Em todas as histórias que li, os pintarroxos são sempre bons sujeitos. Ele nunca ficaria do lado errado.

Comentando essa passagem, no livro O que aprendi em Nárnia (Monergismo, 2018), Douglas Wilson diz que “embeber-se no tipo certo de histórias ajudará você a identificar os bons ou os maus personagens quando você os encontrar na vida real”. Se se tratasse de um urubu, por exemplo, a conclusão de Pedro poderia ser outra. Mas tratava-se de um pintarroxo, e nas histórias, “os pintarroxos são sempre bons sujeitos”. Essa identificação é uma das lições mais marcantes de Nárnia e é, de certa forma, a moldura moral que Atticus Finch usa em sua conduta.

Quando presenteou seus filhos com rifles de ar comprimido, por exemplo, Atticus disse a Jem que preferia vê-lo atirando em latas no quintal, embora soubesse que o menino ia atrás dos passarinhos. Diante disso, explica ao menino que ele poderia atirar em todos os gaios que quisesse, mas que era pecado matar um rouxinol. Scout diz que essa foi a única vez que ouviu seu pai dizer que alguma coisa era pecado, e comenta o fato com a Srta. Maudie. Esta responde que Atticus tinha razão, pois “o rouxinol não faz nada além de cantar para o nosso deleite. Não destrói jardins, não faz ninho nos milharais, ele só canta”.

Quando, porém, um cachorro raivoso aparece na rua, a coisa muda de figura. Seu nome era Tim Johnson. Esse detalhe aparentemente banal (o de que o cachorro tinha nome) na verdade é muito eloquente, pois diz respeito ao que devemos fazer diante de um mal tão bem identificado. E Atticus sabia. Ele, então, chama o xerife da cidade para dar um fim àquela ameaça. O xerife, por sua vez, alega que não é bom atirador e delega a missão a Atticus. Conquanto não gostasse de armas e há trinta anos não pegava em uma, Atticus, diante da urgência do momento, apoia o rifle no ombro, coça os olhos e o queixo, aguça a vista e atira. A cena é literalmente visceral: o corpo do cachorro “deu um solavanco, se revirou e caiu na calçada, um monte de carne marrom e branca”. Como se vê, o bem e o mal estão cuidadosamente delineados aqui. É preciso separar rouxinóis de cachorros loucos. Dispensar-lhes o mesmo tratamento seria ferir a justiça, da qual Atticus, por dever moral e de ofício, era um guardião. Isso nos leva ao julgamento de Tom Robinson.

O rouxinol silenciado

Em sua defesa de Tom, Atticus, de forma brilhante e com provas cabais (ao menos para o leitor), tenta levar o júri a concluir que quem atacou a moça foi, na verdade, o próprio pai dela, o Sr. Bob Ewell. No fundo, Atticus estava apelando tacitamente para o princípio de C. S. Lewis que vimos acima, uma vez que nem Bob nem sua família gozavam de boa reputação na cidade: ele era violento e alcoólatra, e sua família se resumia a um bando de desocupados que viviam da assistência social do condado havia três gerações. “Atticus disse que os Elwell são pessoas horríveis… Nunca vi Atticus falar assim de ninguém”, revela Scout a Calpúrnia. Esse discernimento deveria bastar ao júri, mas o esforço de Atticus, infelizmente, não logra êxito, e Tom é condenado. Convém notar que Atticus desde o início sabia que a causa estava perdida. Bem antes do julgamento, quando Scout lhe pergunta por que ele mesmo assim ia prosseguir na defesa de Tom, ele responde: “Ainda que tenhamos perdido antes mesmo de começar, não significa que não devamos tentar”. Isso parece ter entrado nos ossos de Scout, pois no momento em que os jurados voltam para entregar seus votos ao juiz, ela diz ter visto “algo que só a filha de um advogado poderia ter visto”, numa evocação magistral da cena do cachorro raivoso:

…e foi como observar Atticus ir até a rua, apoiar o rifle no ombro e puxar o gatilho, mas observar sabendo o tempo todo que a arma estava descarregada.

Essa percepção infantil dos grandes dramas humanos é algo realmente notável na obra. Georges Bernanos, num de seus romances, declara que, quando os sábios estão no limite de sua sabedoria, convém escutar as crianças. Essa verdade se traduz de maneira espetacular numa cena anterior ao julgamento de Tom.

Quando um grupo de homens armados tenta invadir a cela onde está o réu, a fim de matá-lo, é Scout quem impede a ação. Ela reconhece um dos homens e lembra-o de uma ocasião em que ele foi até à casa dela para entregar a Atticus um saco de nozes, que na verdade era o pagamento de uma dívida. Seu nome era Walter Cunningham. Ele era o pai de um colega de sala de Scout, e morava num morgadio. Sem querer Scout o lembra de que ele também era um devedor. Seu convite implícito para que aqueles homens atirassem a primeira pedra é recusado (ainda bem), e eles vão embora. É uma das cenas mais memoráveis, emocionantes e notadamente bíblicas do livro.

Outra cena que capta bem a mesma verdade é quando Atticus vê seu filho Jem chorar diante da injustiça daquele julgamento: “Quando uma coisa assim acontece… parece que só as crianças choram”. Os rouxinóis, que curiosamente haviam parado de cantar quando saiu a sentença — a injustiça afeta a ordem criada — , foram silenciados. O cachorro raivoso, por sua vez, foi deixado à solta. Mas ele não perdia por esperar.

O salvador mora ao lado

O julgamento termina, mas a sede de vingança não. O alvo do Sr. Ewell não era mais Tom Robinson, que a essa altura já havia caído no esquecimento, mas Atticus, o “defensor de pretos”. Ele trama uma vingança, e então entra em cena o personagem mais emblemático do livro: Arthur “Boo” Radley.

A história de Boo é cercada de mistérios e fatos mal contados. Segundo se dizia pela cidade, ele fora um delinquente juvenil trancafiado em casa pelo próprio pai a fim de evitar que ele parasse num manicômio. Para Scout, Boo era um “fantasma do mal”, pois, embora as pessoas garantissem que existia, nem ela nem Jem o tinham visto. Acontece que Boo era, na verdade, alguém com uma visão muito privilegiada das coisas, como Scout veio a descobrir no final.

Embora nunca tivesse aparecido às crianças, Boo não se deixava ficar sem testemunho de si mesmo. Numa cena em que Jem volta para buscar a calça que havia ficado presa algumas horas antes no arame farpado da cerca dos Radley, por exemplo, ele a encontra costurada — o que o enche de espanto. Outro exemplo ainda mais notável eram os presentinhos que Boo deixava para as crianças no buraco da árvore. Entre eles havia dois bonecos de sabão em barra, esculpidos por ele. Os bonecos, Scout percebe depois, eram nada menos que ela e Jem. Enquanto as crianças tentavam perscrutar o misterioso Boo Radley, ele as esculpia. E no momento mais crucial de suas vidas ele se revelou. Quando, enfim, conhece Boo pessoalmente, Scout reflete: “Eu estava tão acostumada com a ausência dele que achei incrível que estivesse sentado ao meu lado o tempo todo, presente. Em absoluto silêncio”. Mais adiante ela diz, após se despedir dele para nunca mais o ver:

As pessoas levam flores quando alguém morre e comida quando alguém adoece, e pequenos presentes em outras ocasiões. Boo era nosso vizinho. Ele nos deu dois bonecos esculpidos em sabão, um relógio quebrado com a corrente, duas moedas da sorte e nossas vidas. Mas os vizinhos retribuem. Nós nunca colocamos de volta na árvore o que tínhamos tirado de lá: não demos nada para ele em troca, e isso me entristecia.

Ela conclui essas lembranças com uma profunda reflexão sobre a necessidade de empatia:

Atticus tinha razão quando disse que a gente só conhece uma pessoa de verdade quando se coloca no lugar dela e fica lá um tempo. Ficar parada na varanda dos Radley foi o suficiente.

Creio que Nelson Rodrigues também tinha razão quando disse que “uma impressão infantil pode perdurar até o fim dos tempos”. Não sei como Scout está hoje (espero que bem), mas torço para que essa sua última impressão de Boo seja a que tenha ficado. De forma brilhante, esse romance de Harper Lee (a verdadeira Scout) nos convida a olhar para as pessoas da perspectiva daquele que nos olha da janela, embora não atinemos para a sua existência e cuidado e nunca lhe rendamos a gratidão devida. Ele nos julga não por quem somos — pó— , mas por quem ele é: um Deus de justiça e misericórdia, que nos ama bem mais que aos passarinhos.

Soli Deo Gloria!

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