Uma leitura cosmológica de “O gerânio”, de Flannery O’Connor

Fernando Pasquini
Literatura e Redenção
10 min readFeb 4, 2019
Frame capturado do filmete “The Geranium”, de Josiah Renken (aqui).

Desculpem-me os amigos paulistanos, mas eu odeio São Paulo. Sim, para mim bastam três dias nessa capital para eu começar a me sentir mal. Não sei exatamente o que acontece. A vida ali parece sem cor, sem profundidade, uma correria atrás do vento. Sim, estou consciente de que é uma impressão profundamente subjetiva. Você poderia falar para eu parar de frescura e aprender a ver a graça de Deus ali. E eu concordaria: sim, Deus está ali tanto quanto em qualquer outro lugar. Mas é difícil para quem não está acostumado. Sinto o nó na garganta do velho Dudley, no conto O gerânio, de Flannery O’Connor. Ah, esse conto me acertou em cheio.

À semelhança do último texto do blog, sobre O Sol é para todos, falaremos aqui de um conto que é muito mais do que uma história sobre racismo e que tem como pano de fundo a cultura do sul dos Estados Unidos. Focalizar apenas nesse aspecto é perder todo o alcance de sentido a que a obra de Flannery O’Connor nos expõe. O conto fala profundamente ao nosso senso de pertencimento, previsibilidade, controle e, creio eu, expõe algo da própria cosmologia bíblica. Já vou explicar porque. Mas antes, preciso fazer alguns comentários sobre a autora (que, aliás, é muito admirada por muitos de nós aqui do blog).

Se você ainda não conhece Flannery O’Connor, está perdendo tempo. Na falta de uma habilidade melhor de expor no que consiste toda a sua genialidade, me limito àquilo que já temos o hábito de dizer entre nós aqui do blog: cada conto de Flannery é um “soco no estômago”. Cada palavra, expressão e frase parece meticulosamente escolhida para estar em uma narrativa que prende o leitor, e que só parece tornar-se compreensível quando chega a seu final completamente inesperado, que o faz olhar para cima, com os olhos arregalados, dizendo “uau!”. São histórias muitas vezes violentas, grotescas, cheias de sofrimento, conflito e morte, mas onde, ainda assim, o leitor atento pode notar uma enorme sensibilidade para com a condição humana e a presença da Graça.

Vamos à história (você pode lê-la em inglês gratuitamente na internet, ou pode comprar a tradução em português). Trata-se da história de um senhor de idade que é levado a Nova York para morar com a filha. Seu mundo desmorona: tudo o que era previsível e estava sob controle desaparece, restando apenas um simples gerânio, colocado em uma janela à sua vista em determinadas horas do dia. A história é cheia de detalhes riquíssimos, os quais não temos muito espaço aqui para explorar. Cada situação e pensamento do velho Dudley o faz lembrar dos bons tempos em que morava numa pensão ao sul dos Estados Unidos, bem como suas caçadas e pescarias com Rabie, o “seu” negro. Mas a vida em Nova York o deixa desorientado. Em certo momento, andando pela rua, sua filha lhe diz: “Calma. Em casa o senhor vai se sentir melhor”. E sua resposta é: “Em casa?”. Nova York é um não-lugar, como diria Marc Augé. São Paulo também, eu diria.

Fervilhava de gente que saía dos trens e subia escadarias para desembocar nas ruas, ou que das ruas mergulhava para descer correndo e embarcar — e todo mundo misturado, negros e brancos e amarelos, como os legumes de uma sopa. Tudo fervilhava. Os trens zuniam pelos túneis, subiam atravessando canais e de repente paravam. Quem saltava empurrava quem vinha entrando e um apito tocava e logo o trem já disparava outra vez. O velho Dudley e a filha tiveram de tomar três diferentes para poderem chegar aonde queriam. Bem que ele gostaria de saber qual o motivo que tirava tanta gente de casa, mas a sensação de que sua língua tinha enrolado para dentro do corpo o possuiu nesse instante. Ela o pegara pela manga e assim o levava, em meio à multidão, a reboque (p. 13–14).

Você não precisa ligar isso necessariamente à questão da vida em uma cidade grande, mas o que isso me faz pensar é que sempre fará parte da vida do cristão a sensação de inadequação e até mesmo desorientação em um mundo onde tudo o que é sólido desmancha no ar. Nossa sociedade niilista e pós-moderna abandonou qualquer noção de ordem e sentido na natureza e a trocou por infraestruturas burocráticas, técnicas e vazias. O mundo ficou desencantado, e cristãos são hoje como o velho Dudley com seu nó na garganta. Como Agostinho disse há muito tempo, nós sentimos nostalgia pelo reino onde somos cidadãos:

Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos os seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia (Confissões, Livro XII, cap. XVI).

Nova York também é séria demais para o velho Dudley. Ele se sente humilhado ao, de repente, perceber que alguém o observava e ria enquanto ele gritava “Bum!”, brincando com sua arma invisível na escadaria do prédio e lembrando-se de suas caçadas com Rabie. Dizem-lhe: “O que é que está caçando aí, vovô? […] É melhor ter cuidado. Podia ter se machucado”. Ele tem que se lembrar que está em uma cidade de “gente grande”. Como ressalta Johan Huizinga em sua análise histórica do elemento lúdico nas culturas, ele está numa sociedade herdeira daqueles primeiros burgueses que trocaram a peruca pela cartola. Caçar é coisa de gente primitiva e incivilizada. Dudley é um “old-timer”.

Aspirar pelo reino de Deus também nos faz parecer infantis diante desse mundo sério, como a Feiticeira acusa Brejeiro em A cadeira de prata. Uma igreja ou família que se reúne em uma noite para cantar músicas tradicionais de Natal soa “besta”, para não dizer até algo falso aos olhos de alguns. Cantar melodias como “Oh vinde adoremos” ou “Eis dos anjos a harmonia” é como usar perucas na era das cartolas (ou, como Dalrymple ressalta, na era dos “f*** you” tatuados no punho). Orar e adorar em família e comunidade são coisas cafonas demais para nosso cinismo, que se julga forte e acima de todas as ingenuidades.

Mas é aqui que alguém que leu o conto me questionaria com muita razão: “Ei! Não se esqueça que Dudley é racista, e sente saudades de sua sociedade racista!”. Sim, até então eu abstraí, de propósito, esse detalhe do conto. Mas é aqui que Flannery também revela sua genialidade. Nem sempre o bem e o mal estão separados da forma que queremos. A forma em que a autora expõe o tema do racismo passa longe de uma pieguice, de um sentimentalismo kitsch que permeiam a maioria das abordagens mainstream de hoje, no cinema e na literatura. Tendo vivido no próprio contexto do sul dos Estados Unidos, a autora demonstra a sensibilidade de enxergar e mostrar que a questão do racismo é muito mais complexa e multifacetada do que um observador externo poderia dizer. Em vários momentos da história podemos muito bem nos compadecer do velho Dudley e desejar que ele volte ao sul, continuando viver como vivia antes. Mesmo em uma sociedade escravagista, onde a injustiça está claramente presente e até vista como normal, o que encontramos não são demônios brancos escravizando anjos negros. Dudley ama Rabie e lembra-se com muita alegria de suas caçadas e pescarias. Uma sociedade caída ainda tem brechas para a graça de Deus.

Ainda assim, também está claro que o choque que Dudley tem, por exemplo, ao ser ajudado por um negro a subir a escada de seu prédio, surge de uma concepção errônea da realidade. Talvez ele não devesse se sentir mal por isso, não é? Sim, e é por isso que creio que, neste conto, encontramos fundamentalmente um conflito entre duas cosmologias, duas formas de entender e lidar com o sentido do universo. Dudley parece viver em um universo aristotélico, onde tudo está (e deve estar) fixo em seu lugar para funcionar — brancos e negros têm cada um o seu lugar na ordem geral das coisas (aliás, não é à toa que Aristóteles também defendia a escravidão). Em contraste, ele se encontra em uma cidade cuja cosmologia é, na verdade, uma anticosmologia: não há sentido nenhum na realidade; tudo é transitório e sai de lugar nenhum em direção a lugar nenhum. Ali, não há realidade objetiva; cada um é livre para determinar por si mesmo qual o sentido do mundo.

Nova York, que num minuto zunia e engarrafava, no momento seguinte se mostrava inanimada e imunda. Sua filha nem mesmo morava numa casa. Morava num prédio — o do meio da fila de prédios todos iguais, todos de um vermelho e um cinza enegrecidos, com pessoas facilmente irritáveis que se debruçavam sobre suas janelas para olhar para outras janelas, e outras pessoas, das quais lhe vinham de volta iguais olhares. Por dentro, era um tal de andar sem fim, para cima e para baixo, pois só havia corredores que mais lembravam fitas métricas, com uma porta de tantos centímetros. O prédio, na primeira semana, o deixara aturdido. Ele acordava na expectativa de que os corredores tivessem se modificado no transcurso da noite, mas que nada! Quando olhava pela porta, ei-los que ainda lá se estendiam, como raias de corridas de cães. O mesmo acontecia com as ruas. Intrigava-o saber aonde ele iria dar se andasse até o final de uma delas. Uma noite sonhou que o tinha feito e terminou no fim do prédio — ou seja, em lugar nenhum (p. 12–13).

Murray Jardine, em seu livro The Making and Unmaking of Technological Society: How Christianity Can Save Modernity from Itself, argumenta que a cosmovisão cristã nos oferece uma verdadeira revolução cosmológica e antropológica ao situar-se exatamente no meio dessas duas cosmologias opostas. Por um lado, ao afirmar que o Universo foi criado pela Palavra de Deus e é sustentado a cada momento por ela, a Bíblia rejeita qualquer metáfora de fertilidade para a realidade — ou seja, uma base imanentista na qual o Universo se autoproduz conforme uma forma fixa e discernível por meio da razão humana. O universo é dinâmico e mutável à medida em que um Deus pessoal está num diálogo constante com sua criação. Assim, nosso senso de ordem e propósito não dependem das próprias coisas, mas de nossa fé na fidelidade à aliança livremente estabelecida entre Deus e sua criação. Abandonar a fé nesse Deus significa entrar em um mundo caótico — o mundo que a pós-modernidade acabou descobrindo. Jardine mostra que, ao abandonar o sentido como algo imanente, o cristianismo ofereceu dois caminhos: ou o sentido pleno e verdadeiro por meio da Palavra, ou o niilismo pós-moderno. O evangelho trouxe bênção e julgamento a nossa cultura.

O velho Dudley se apega a uma ordem imanente das coisas e, assim, quando vê tudo se dissolvendo, entra em choque. Aristóteles se encontra com Nietzsche. Resta-lhe apenas o gerânio na janela como uma garantia de que o mundo ainda não enlouqueceu. O gerânio acaba sendo seu Cristo: suas primícias; aquilo para o que ele ainda pode olhar e encontrar alguma beleza e sentido.

[Spoilers daqui em diante]

Que choque ainda maior não surge quando ele mesmo olha pela janela e descobre que seu querido gerânio caiu da janela e se espatifou na calçada! E pior: no lugar dele ainda encontra-se um homem reclamando e criticando o velho por seu intrometimento. Dudley fica desesperado, e aqui surge uma frase recorrente, que talvez sugira muito mais do que a descrição do simples gerânio: “Estava lá no fundo do beco, de raízes para o ar”. A frase também parece se aplicar a Dudley, e é possível até mesmo pensar se ele mesmo não se jogou da janela junto com o próprio gerânio!

O Cristo de Dudley encontrou sua cruz. Suas raízes, ansiosas por um lugar de onde retirar água, nutrientes, sentido, agora estavam expostas no ar.

O gerânio: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mateus 27:46).

Estava lá no fundo do beco, de raízes para o ar.

O velho Dudley: “Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel; mas, depois de tudo isto, é já este o terceiro dia desde que tais coisas sucederam” (Lucas 24.21).

Estava lá no fundo do beco, de raízes para o ar.

Dudley olhava para a janela de Deus, onde tudo é misterioso, inesperado; um Deus que parece indiferente a todo o caos e sofrimento. “‘Eu só aviso uma vez’, o homem disse e saiu da janela”.

É assim que muitas vezes nos sentimos ao viver em um cosmos ordenado pela Palavra de Deus. O universo muitas vezes parece envolto em caos. “Salva-me, ó Deus, pois as águas subiram até meu pescoço” (Salmo 69.1). Mas ele se cala, e não basta, como os amigos de Jó, dizer que as águas do sofrimento são previsíveis, pertencentes a uma ordem natural discernível pela razão. Não, não estamos no controle — seja por força ou por razão. Resta-nos apenas a fé de que nosso Redentor vive, e que Deus será fiel à sua aliança. Cristo ressuscitou, Cristo voltará, e o gerânios serão replantados na terra onde brancos e negros poderão caçar e pescar por toda a eternidade.

Nota: agradeço ao Leonardo Galdino pelas citações em português, retiradas da edição dos Contos Completos pela Cosac Naify (2008). Só tenho a versão em inglês e estava em apuros ao não saber se colocava as citações diretamente em inglês ou como traduções livres.

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Fernando Pasquini
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