O que nos resta e o que nos falta…

Beatriz Misaki
Restos de Amor
Published in
4 min readApr 19, 2023

Te conheci num chat de uma live da Twitch. Eu passava tempo demais naquela rede e, aparentemente, você também. Sabendo que estávamos os dois solteiros, o streammer fez a gracinha de tentar nos juntar. Ele gostava de bancar o cupido, tinha até um quadro que as pessoas competiam por um webbeijo de outra (e eu amava assistir aquilo).

Aquela era uma live de jogo, sem propósitos de juntar ninguém. Mas você foi chamado para participar e decidiu que me recitaria uma poesia ao vivo. Não tinha visto ainda meu rosto ou ouvido a minha voz. Tinha o nome de um usuário naquela rede imensa e só. Ainda assim, arriscou-se na brincadeira. Talvez mais pelo meme que pela sedução em si.

E eu fiquei encantada. O jeito que você falava, a escolha que fez, tudo formava uma composição belíssima.

Na mesma noite, começamos a trocar mensagens.

Além de assistirmos aos mesmos streammers e jogarmos o mesmo jogo, você parecia obcecado por assuntos muito próximos às minhas obsessões. Enquanto eu fazia pós em Direito Digital, você se dedicava a um trabalho de conclusão de curso na mesma área.

Eu tinha um fascínio muito maior pela parte de proteção de dados, enquanto você buscava saber mais sobre toda a questão envolvendo e-sports. Me chamou para uma chamada de vídeo e me deu uma aula sobre contratos, campeonatos e direito internacional.

Você acumulou um conhecimento absurdo sobre o assunto e parecia poder falar sobre isso por horas. Eu gostava tanto do brilho que surgia nos seus olhos enquanto falava quanto das coisas que conseguia aprender quando se empolgava na conversa.

Com o tempo, aprendemos um sobre a rotina do outro.

Você auxiliava na alfabetização de crianças na sua cidade, enquanto eu tentava alfabetizar a minha em casa, isolados por causa da pandemia. Gastávamos o tempo livre estudando, jogando ou conversando.

Eu tinha a sensação de que podia conversar sobre qualquer coisa com você. Que todas as coisas que eu gostava fazia também parte dos seus gostos. E era um alívio, para mim, perceber que não era só eu que me encantava por aquelas loucuras.

Criávamos uma rotina juntos de compartilhar pequenos pedaços do nosso dia e de nos ver (online porque a distância não permitia) quase todas as noites. Dávamos risada das mesmas bobagens, mas sabíamos ser incrivelmente sérios.

Em algumas noites, os encontros se resumiam em fazermos splits de produtividade. 25 minutos de foco. 5 minutos de conversa a toa. Em outras, jogávamos juntos. Às vezes, eu te assistia jogar. Tínhamos esse tempo diário e eu me sentia bem dentro dele.

Isso, bom, até você conseguir uma grande conquista: entrar para um time para jogar profissionalmente. Ou algo assim.

E falhamos em definir uma rotina nova juntos. Talvez pela premissa de que o que nós tínhamos não era sério. Talvez por acreditar que as coisas iam acabar se adaptando com o tempo. Nenhum de nós ousou propor uma conversa para alinhar nossas expectativas frente às mudanças.

Fiquei com a sensação de ter sido deixada de lado. Você dava aulas de manhã, treinava durante as tardes e participava de competições (amistosas ou valendo prêmios) durante a noite. As conversas passaram a ser predominantemente sobre o seu time. Por que não tinham te escalado para aquele campeonato. Como aquele jogador se comportou.

Eu tinha saudades do que tínhamos antes. Por vezes, pedia um pouco mais de atenção. Uma conversa sobre algum outro assunto… Tínhamos tanto em comum, não tínhamos?

Você ficou com a impressão de que eu não apoiava a sua jornada nova. Que aquele era um sonho já muito antigo e que você queria lutar com todas as suas forças para conseguir conquistá-lo. E esperava que eu pudesse estar do seu lado para ouvir de cada frustração que tivesse na sua jornada.

Terminamos machucados. Cada um pro seu lado, segurando sua própria versão da história com teimosia.

Dia desses você me aparece de novo. Diz que saiu do time. Que eles acharam que o jogo que gostávamos não dava lucro. Que agora quer ir atrás de tudo que deixou por conta do jogo. Parece que me envolve, mas eu não tenho certeza. Não ficou claro. Eu não sei dizer.

Hoje me manda uma poesia lindíssima sobre o amor. Confesso que me causa arrepios. Você logo emenda: fiz há dez anos, refiz por esses dias. Parece que com a ajuda da sua tia.

Paro para pensar na conversa. Me pergunto se o comentário foi proposital para evitar algum tipo de ilusão. Você parece ainda machucado pelo jeito que as coisas foram. Então, faria sentido.

Penso mais um pouco. Para eu me perguntar uma coisa dessas, acho que eu também. Eu também…

E, então, eu te pergunto se podemos não repetir os erros de antes. Se podemos traçar rotas alternativas, considerando que nos ferimos não por serem malvados ou cruéis, mas por sermos humanos.

Quero saber de verdade se você acha imperdoável o fato de eu ter sentido a sua falta. Porque eu, pessoalmente, não vejo como imperdoável o fato de você querer com tanto afinco perseguir o seu sonho.

Nenhum dos nossos desejos era destrutivo ou brutal. Você deve saber disso tanto quanto eu. Faltou, bom, vermos um jeito de entender o cenário e buscarmos uma solução funcional.

Talvez agora nos falte também.

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Beatriz Misaki
Restos de Amor

Escrevo sobre amor, literatura e música. IG @biamisaki