À moda de Tchitchikof, crônica de Machado de Assis de 26.06.1888

César Marins
Literatura Russa
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4 min readAug 5, 2021

Bons dias!
Eu, se tivesse crédito na praça, pedia emprestados a casamento uns vinte contos de réis, e ia comprar libertos. Comprar libertos não é expressão clara; por isso continuo.
Conhece o leitor um livro do célebre Gógol, romancista russo, intitulado Almas Mortas? Suponhamos que não conhece, que é para eu poder expor a semente da minha ideia. Lá vai em duas palavras.
Chamam-se almas os campônios que lavram as terras de um proprietário, e pelos quais, conforme o número, paga este uma taxa ao Estado. No intervalo do lançamento do imposto, morrem alguns campônios e nascem outros. Quando há déficit, como o proprietário tem de pagar o número registrado, primeiro que se faça outro recenseamento, chamam-se almas mortas os campônios que faltam.
Tchitchikof, um espertalhão da minha marca, ou talvez maior, lembra-se de comprar as almas mortas de vários proprietários. Bom negócio para os proprietários, que vendiam defuntos ou simples nomes, por dez-réis de mel coado. Tchitchikof, logo que arranjou umas mil almas mortas, registrou-as como vivas; pegou dos títulos do registro, e foi ter a um Monte de Socorro, que, à vista dos papéis legais, adiantou ao suposto proprietário uns 200.000 rublos; Tchitchikof meteu-os na mala e fugiu para onde a polícia russa o não pudesse alcançar.
Creio que entenderam; vejam agora o meu plano, que é tão fino como esse, e muito mais honesto. Sabem que a honestidade é como a chita; há de todo o preço, desde meia pataca.
Suponha o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio, e que os perdeu com a Lei de 13 de Maio. Chegava eu ao seu estabelecimento, e perguntava-lhe:
— Os seus libertos ficaram todos?
— Metade só; ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.
— Quer o senhor vender-mos?
Espanto do leitor; eu, explicando:
— Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram. O leitor assombrado:
— Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor…
— Não lhe importe isso. Vende-mos?
— Libertos não se vendem.
— É verdade, mas a escritura de venda terá a data de 29 de abril; nesse caso, não foi o senhor que perdeu os escravos, fui eu. Os preços marcados na escritura serão os da tabela da lei de 1885; mas eu realmente não dou mais de dez mil-réis por cada um.
Calcula o leitor:
— Duzentas cabeças a dez mil-réis são dois contos. Dois contos por sujeitos que não valem nada, porque já estão livres, é um bom negócio. Depois refletindo:
— Mas, perdão, o senhor leva-os consigo?
— Não, senhor: ficam trabalhando para o senhor; eu só levo escritura.
— Que salário pede por eles?
— Nenhum, pela minha parte, ficam trabalhando de graça. O senhor pagar-lhes-á o que já paga. Naturalmente, o leitor, à força de não entender, aceitava o negócio. Eu ia a outro, depois a outro, depois a outro, até arranjar quinhentos libertos, que é até onde podiam ir os cinco contos emprestados; recolhia-me à casa, e ficava esperando.
Esperando o quê? Esperando a indenização, com todos os diabos! Quinhentos libertos, a trezentos mil-réis, termo médio, eram cento e cinquenta contos; lucro certo: cento e quarenta e cinco.
Porquanto, isto de indenização, dizem uns que pode ser que sim, outros que pode ser que não: é por isso que eu pedia o dinheiro casamento. Dado que sim, paga e casava (com a leitora, por exemplo); dado que não, ficava solteiro e não perdia nada, porque o dinheiro era de outro. Confessem que era um bom negócio.
Eu até desconfio que há já quem faça isto mesmo, com a diferença de ficar com os libertos. Sabem que no tempo da escravidão, os escravos eram anunciados com muitos qualificativos honrosos, perfeito cozinheiros, ótimos copeiros, etc. Era, com outra fazenda, o mesmo que fazem os vendedores, em geral: superiores morins, lindas chitas, soberbos cretones. Se os cretones, as chitas e os escravos se anunciassem, não poderiam fazer essa justiça a si mesmos.
Ora, li ontem um anúncio em que se oferece a aluguel, não me lembra em que rua, — creio que na do Senhor dos Passos, — uma insigne engomadeira. Se é falta de modéstia, eis aí um dos tristes frutos da liberdade; mas se é algum sujeito que já se me antecipou… Larga Tchitchikof de meia tigela! Ou então vamos fazer o negócio a meias.

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