A confissão de Stavróguin”, Lukács, 1922

César Marins
Literatura Russa
Published in
6 min readAug 3, 2021

O tão nocivo “barbarismo” do governo Soviético finalmente tornou acessíveis as obras póstumas de Dostoiévski. Baús inteiros de manuscritos foram descobertos, e é provável que logo possamos ler na íntegra o trabalho literário do maior escritor russo, um escritor que começa a exercer uma influência cada vez mais crescente na vida intelectual europeia. A primeira amostra a surgir foi “A confissão de Stavrogin”, capítulo até então inédito do romance Os Demônios, que Dostoiévski escreveu quase ao estilo de panfleto, se opondo aos primeiros movimentos revolucionários da Rússia.

O romance em si, considerado num todo, não é uma das maiores realizações de Dostoiévski: seu viés o desfigura. E isso não é porque Dostoiévski se opõe à revolução, mas porque a obra em si se torna ambivalente e contraditória como resultado desta postura, sobretudo pela maneira que ele a representa. O político e o panfletário em Dostoiévski não estavam em perfeito acordo com a posição de autor imaginativo que Dostoiévski costumava assumir. Pelo contrário, a natureza honesta e destemida do autor, perseguindo os problemas que animavam seus personagens à conclusão o forçou à coisas que contradizem fortemente os alvos do panfletário. O grande autor criou personagens que evocam o lívido pano de fundo da revolução russa, seu ambiente social e intelectual (e por isso sua “justificação”) mais do que o panfletário gostaria. Então não restava nada a não ser cobrir as frestas com artifícios panfletários, tornando as frestas mais profundas e visíveis — do ponto de vista artístico. Dostoiévski, como disse Górki assertivamente, difama seus próprios personagens.

Apesar disto, ou por esta razão, Os demônios é um dos trabalhos mais interessantes de Dostoiévski. Aqui a dicotomia interna de sua natureza, à qual os destinos individuais moldados perfeitamente em sua obra impedem de emergir, é trazida à tona de maneira clara e visível pela contradição entre preconceito político e visão poética. A grandeza de Dostoiévski como escritor está em sua particular habilidade de despir sem esforço, por uma visão espontânea, todo personagem, relação humana e conflito de sua concha reificada na qual eles se apresentam hoje, e descascá-los, reduzindo-os ao seu puro núcleo espiritual. Assim ele descreve um mundo no qual todo elemento desumanamente mecânico, sem alma e reificado da sociedade capitalista não está mais presente, mas que ainda contém os conflitos internos de nosso tempo. Esta é também a fonte de sua visão utópica, a visão de que o princípio salvador para todas as adversidades podem ser encontradas nas relações humanas puras, reconhecendo e amando o coração de cada ser humano, com amor e bondade. Essa saída puramente individual e individualista, entretanto, passa por uma mudança — de um modo que é imperceptível até ao autor — e aparece como a mensagem Cristã de amor, na verdade como a mensagem da Igreja Ortodoxa Russa. Mas isso dá origem a muitas complicações e contradições. Em primeiro lugar, força Dostoiévski a igualar ao Cristianismo sua própria religiosidade, que vem da cisma cristã, em oposição à influência de Feuerbach — forçando-o a falsificar ambas as posições. Em segundo lugar, ele não pode deixar de apresentar todos os tormentos e problemas de seus personagens, cujas raízes sociais ele sempre reconhece claramente, como manifestações puramente patológicas dos indivíduos. E, além disso, ele é obrigado a propor uma solução supra-individual para eles, ou seja, o cristianismo. Assim, uma atmosfera de contradições internas surge em torno das pessoas modeladas em seus romances, observadas de maneira maravilhosamente clara e profunda. Notoriamente, onde os padrões traçados pelo destino podem ser inteiramente derivados puramente das relações humanas de indivíduos, essa atmosfera não turva seus contornos. Mas enquanto essa redução não seja inteiramente alcançável ou, como em Os Demônios, nem mesmo procurada, ela joga uma pesada nuvem sobre as obras como um todo.

O fragmento de Os demônios ora publicado mostra a grandeza do autor mais forte que suas contradições interiores; ao menos elas estão menos evidentes que no romance em si. Os dois pólos do mundo de Dostoiévski, o homem doente da sociedade contemporânea que é devorado por suas questões internas e o pregador da mensagem cristã de amor, confrontam um ao outro neste fragmento em um solitário diálogo noturno — e reconhecem-se como irmãos. E não somente no sentido de que, para um homem de boa vontade, todo homem há de ser um irmão, mas também no sentido mais íntimo e autêntico, de suas afinidades internas que surge e se torna consciente para ambos. Isto, então, expressa claramente a tese frequentemente repetida da genuína (não adquirida dogmaticamente) religiosidade de Dostoiévski, a tese de que o “completo ateísta está no degrau mais alto, exceto um”, de que ninguém chega mais perto da fé real do que o real ateísta. Mas ao mesmo tempo, isto também mostra que o cristianismo não tem praticamente parte alguma na significância na prática do amor ativo “cristão” de Dostoiévski. Amor e bondade assumem a forma de uma apreensão intuitiva do coração do próximo. E a ajuda que isso fornece é que o andarilho sem rumo tem seu caminho claramente mapeado em sua alma (Sônia em Crime e castigo, o Príncipe Míchkin em O idiota). Aqui, entretanto — nas ações mais essenciais do tipo humano em que culmina o mundo de Dostoiévski — se manifestam mais claramente as profundas contradições interiores em sua imagem de mundo. Enquanto esta agora bondade clarividente pode iluminar a obscura base vital para o desespero, enquanto eleva à luz a consciência da escuridão no interior humano, o sofrimento, os erros e aberrações, ela é incapaz de transformar esse conhecimento em um ato salvador. Sónia pode guiar Raskolnikov para fora de seu labirinto de pecado abstrato, que lhe separou de toda a sociedade humana e lhe tornou impossível viver entre os homens. Mas o elemento positivo, a nova vida que agora deveria se abrir para ele, continua um mero programa. E em suas obras tardias, onde Dostoiévski procurou retratar essa mesma conversão, sua honestidade artística o obrigou repetidas vezes a retratar o fracaso de seu tipo humano supremo no exato momento em que se depara com uma decisão real (o fim de O idiota).

Essa falta de fé por parte de Dostoiévski, o autor imaginativo, em relação aos princípios e exigências de sua própria teologia, indicam o abismo — que ele nunca admitiu — dividindo ele do cristianismo, mesmo dos renascimentos cismáticos do antigo cristianismo. Pois este cristianismo se funda na onipotência do amor: a alma se volta para o amor, o reconhecimento amoroso desnuda o sofrimento e indica o caminho correto; embora causas sociais podem estar por trás da aberração, a salvação disto ocorre independentemente de todas as restrições não espirituais. Mas aqui Dostoiévski é — inconscientemente — incrédulo. Sua bondade clarividente ilumina o sofrimento — e assume a forma de uma espécie de cinismo que impiedosamente declara fraqueza, impureza, depravação, reconhecendo e pressupondo o pior do ser humano. O amor, embora perceba o sofrimento e a aberração, é incapaz de ajudar, porque ambos são profundamente enraizados na existência dos seres sofredores para serem removidos pelo poder do reconhecimento, o poder das relações humanas de amor. Isso ocorre porque a aberração está enraizada na situação social dos homens, da qual eles não podem se separar.

Dostoiévski, então, estava fadado ao fracasso em sua luta desesperada para converter o elemento social da existência humana em puro espírito. Mas seu fracasso se tornou um avassalador triunfo artístico, pois nunca antes dele as raízes sociais da tragédia foram tão precisamente buscadas até nas suas declarações espirituais, descobertas e trazidas à luz.

É aí também que reside o grande valor artístico deste fragmento. Stavróguin, o herói de Os demônios, ocasionalmente faz um tipo de Liérmontov exageradamente romântico no romance. Aqui, na confissão cristã e oral de seus atos mais depravados, ele primeiro se mostra plenamente como a pessoa que é: como o maior representante da transição do tipo russo também retratado pelo “homem supérfluo” em suas várias formas por Turguêniev, Gontchárov e Tolstói. Ele é o intelectual russo que possui força e habilidades (que ascendem Stavróguin ao brilho demoníaco), mas que é incapaz de fazer uso delas na realidade russa. Portanto, essas qualidades, se não terminam em fumaça, como nos heróis de Turguêniev e Gontcharov, levam a crimes sem objetivo, sem sentido, indignos e até ridículos. Agora se abre todo o abismo de desespero e falta de objetivo, o qual tornou uma honesta parte da intelligentsia russa em revolucionários tão cedo. Vemos em choque que não havia mais nada para essas pessoas, se eles honestamente buscassem um objetivo na vida, exceto por suicídio, depravação ou revolução. (Stavróguin escolhe o primeiro curso.) E por mais que Dostoiévski tenha resistido apaixonadamente à revolução como um panfletário, com qualquer convicção que tenha pregado uma solução religiosa para esses sofrimentos, ele é a pessoa que mais claramente convence da necessidade de uma revolução. Sua execração — política — da revolução inesperadamente se transforma em uma glorificação artística de sua necessidade espiritual absoluta.

Tradução de César Marins. Lukács, Georg. “Stavrogin’s Confession” (1922), in Reviews and Articles from Die rote Fahne, translated by Peter Palmer (London: The Merlin Press, 1983), pp. 44–48. Aqui.

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