Meu primeiro Tolstói, de Teffi

César Marins
Literatura Russa
Published in
6 min readMay 18, 2021
Teffi em 1915, durante a 1ª Guerra

Teffi, pseudônimo de Nadejda Alexandróvna Lokhvitskaia (1872–1952), escritora famosa por sua pena satírica que deixou a União Soviética e foi para Paris em 1920 assim que percebeu que “qualquer satirista na URSS atenta contra a estrutura soviética”, algo que Bulgákov percebeu 10 anos depois, ao se encontrar no ostracismo.

Teffi é praticamente inédita no Brasil. “Praticamente” pois com exceção de alguns contos em antologias de autores e autoras diversos, ainda espera uma reunião só sua em português.

O texto que ora traduzimos tem como base a publicação no jornal de expatriados russos em Paris, “Últimas Notícias” («Последние новости»), de 21/11/1920. As três partes que compõe “Meu primeiro Tolstói” saíram em diversas publicações russas, espécies de rodapé, na década de 1910, mas só foram reunidas por Teffi sob este título em 20. A tradução foi feita no âmbito dos debates da leitura guiada de Guerra e paz, e é dedicada às alunas e aos alunos que possibilitam meu trabalho, em especial à memória de Mônica Dias.

Eu me lembro. Tinha nove anos.

Lia “Infância e adolescência” de Tolstói. Lia e relia.

Tudo me era caro naquele livro.

Volódia, Nikolienka, Liubotchka — todos eles vivem comigo, todos eles se parecem comigo, como irmãs e irmãos. E a casa da avó deles em Moscou se parece com a nossa casa moscovita, e quando leio sobre a sala, o sofá ou a sala de aula, eu nem tenho que imaginar nada — são todos os nossos quartos.

Natalia Savvichna — eu também a conheço bem — é a nossa velha Avdótia Matvievna, antiga serva de minha avó. Ela também tem um baú com fotos coladas na tampa. Ela só não é tão doce quanto Natália Savvichna. Ela é rabugenta. Sobre ela meu irmão até recitava: “E, olhando altivo, com profundo desprezo, a vida, ele não quis abençoar nada em todo o mundo.”*

Mas apesar de tudo a semelhança é maior, pois, lendo as linhas sobre Natália Savvichna, vejo claramente a figura de Avdótia Matvievna.

Tudo tão meu, tudo tão amado.

E até minha avó, com seu olhar inquisidor e severo por debaixo de seu chapéu plissado, e seu frasco de água de colônia na mesa, ao lado de sua cadeira, — tudo é igual, tudo tão amado.

Só o tutor St-Jerome me é estranho, eu o odeio como Nikolienka. Como odeio! Parece que o odeio mais e há mais tempo que Nikolienka, até porque Nikolienka se reconcilia e o perdoa no final, enquanto eu sigo assim minha por toda a vida.

“Infância e adolescência” entrou na minha infância e adolescência e se fundiu organicamente, como se eu não tivesse lido, mas simplesmente vivido.

Mas na história de minha alma, em seu primeiro florescer, ela foi perpassada por uma flecha vermelha, uma outra obra de Tolstói — “Guerra e paz”.

Eu me lembro.

* * *

Tinha treze anos.

Toda tarde, em detrimento das lições de casa, eu leio e releio o mesmo livro — “Guerra e paz”.

Estou apaixonada pelo Príncipe Andrei Bolkónski. Odeio Natacha, primeiro porque tenho ciúmes, e segundo, porque ela traiu ele.

— Sabe, — falo pra minha irmã, — na minha opinião, Tolstói escreveu ela errado. Ninguém pode gostar dela. Julgue você — sua trança não era “nem grossa nem longa”, seus lábios inchados. Não, na minha opinião não se pode gostar dela. E ele ia se casar com ela por dó.

Além disso, não gosto que o príncipe Andrei grite quando está irritado. Acho que o Tolstói também escreveu isso errado. Sei com certeza que o príncipe não grita.

Toda tarde eu leio “Guerra e paz”.

Foram agonizantes as horas nas quais me aproximava da morte do Príncipe Andrei.

Acho que sempre fiquei esperando um milagre. Devo ter esperado, porque toda vez que ele morria, ficava coberta de desespero.

De noite, deitada na cama, eu salvei ele. Fiz ele se jogar no chão com os outros quando a granada explodiu. Porque nenhum soldado teve a ideia de empurrar ele? Eu teria, eu o empurraria.

Então mandaria os melhores médicos e cirurgiões pra ele.

Toda semana leio sobre a morte dele, e esperava, e acreditava que por um milagre dessa vez, quem sabe, ele não morreria.

Não. Morto! Morto!

Uma pessoa só morre uma vez, mas ele morre pra sempre, pra sempre.

E meu coração gemia, e eu não conseguia fazer minhas lições. E pela manhã… Sabemos o que acontece com quem não faz as lições!

Então eu finalmente entendi. Decidi ir até Tolstói e pedir para ele salvar o Príncipe Andrei. Mesmo que ele se case com Natacha, mesmo assim, eu vou tentar! — qualquer coisa pra ele não morrer!

Perguntei à governanta se o autor pode mudar o que já está impresso. Ela disse que podiam, que às vezes os autores fazem revisões para novas edições.

Me aconselhei com minha irmã. Ela disse que era absolutamente necessário ir falar com ele levando sua foto e pedir para assinar nela, ou ele nem falaria comigo, e que em geral eles nem falam com crianças.

Foi muito assustador.

Gradualmente descobri onde Tolstói morava. Disseram várias coisas, um me disse que ele morava em Khamovniki, outro que ele tinha saído de Moscou, e ainda outro que ele estava pronto para sair.

Comprei o retrato. Comecei a pensar no que falaria. Estava com medo de começar a chorar. Contei meus planos em casa, e eles riram.

Finalmente decidi. Apareceram alguns parentes e a casa estava uma bagunça, o momento era propício. Falei para a velha babá me levar até “a casa de uma amiga para fazer a lição”, e fui.

Tolstói estava em casa. Aqueles minutos nos quais fiquei esperando na frente foram muito pouco para eu planejar uma fuga, e com a babá lá isso seria estranho.

Lembro de uma senhora roliça passando, ruminando algo. Isso me confundiu completamente. Ia tão leve, e até fazia barulho sem medo. Eu achava que na casa de Tolstói todos andavam na ponta dos pés e falavam sussurrando.

Finalmente ele. Era menor do que eu esperava. Olhou para a babá, então para mim. Entreguei a foto e com medo pronunciei o “l” no lugar do “r”, balbuciando:

— Aqui, podelia assinar a fotoglafia.

Na hora ele pegou de minha mão e foi para outro quarto.

Ali eu entendi, que não poderia perguntar nada para ele, não ousaria dizer nada, estava tão desgraçada, perdida para sempre aos seus olhos, com meu “podelia” e “fotoglafia”, que só Deus poderia me tirar dali.

Ele voltou e me devolveu o cartão. Fiz reverência.

— E então, e a senhora? — perguntou à babá.

— Nada, estou com a senhorinha. É isso.

Me lembrava de “podelia” e “fotoglafia” na cama e chorava no travesseiro.

* * *

Na minha classe eu tinha uma rival, Iulenka Archeva. Ela também era apaixonada pelo Príncipe Andrei, só que de uma maneira tão violenta que a classe toda sabia. Ela também desdenhava Natacha Rostova e também não acreditava que o príncipe havia gritado.

Eu escondia meus sentimentos, e quando Archeva perdia o controle, eu tentava me segurar e não escutar, para não me entregar.

E uma vez, durante a aula de literatura, enquanto analisávamos alguns tipos literários, o professor mencionou o Príncipe Bolkônski. A classe toda, como uma pessoa só, se virou para Archeva. Ela estava sentada ali, ruborizada, com um sorriso tenso, e suas orelhas estavam tão vermelhas que incharam.

Seus nomes estavam ligados, seu romance marcado pelo ridículo, pela curiosidade, pela condenação, pelo interesse — todas as atitudes com as quais a sociedade reage a todo romance.

E eu, sozinha, com meu sentimento secreto “proibido”, só eu não sorri, nem encorajei, nem sequer olhei para Archeva.

À tarde me sentei para ler sobre sua morte. Lia e não mais esperava, não mais acreditava em um milagre.

Lia ansiosa e sôfrega, mas não reclamava. Abaixei a cabeça obedientemente, beijei o livro e o fechei.

— Houve uma vida, ela foi vivida e se encerrou.

*Do poema O demônio, de Púchkin. Verso traduzido por Bóris Schnaiderman e Nelson Ascher.

Tradução de César Marins

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