Tchernóbil e o lugar do trauma

César Marins
Literatura Russa
Published in
4 min readAug 30, 2020
Cena de Stalker, de Tarkovski: O mundo à parte.

O leitor de “Vozes de Tchernóbil” logo se habitua ao ritmo de seus personagens e ao lugar de onde vêm essas vozes. A zona, área que encerra promessas de futuros maravilhosos, dá uma fisionomia fragmentária a face de todos que a encaram. Os relatos, em sua maioria elípticos, tratam de um passado por vezes heroico e fatídico, que não pode ser recuperado integralmente pela fala no presente, dando um tom embotado ao heroísmo dos que ali se aventuraram sem ideia do que os esperava. Os afetos também se embotam: as esposas que não deixam de encontrar seus maridos, os bebês que nascem doentes. A descrição é mais atual do que o leitor gostaria de admitir para além da denúncia dos crimes da União Soviética, e dialoga com nosso trauma, e a impossibilidade de narrar.

Aleksiévitch tem forma própria, passando a fala aos seus entrevistados e se escondendo em breves parêntesis, um humanismo sem confiança no futuro, mas que reitera o sujeito. A tradição é a da Casa dos mortos, da Ilha Sacalina, da literatura de gulag, relatos que dão conta da experiência de vida danificada. Documentário literário, ou como nomeou a autora, “romance de vozes”, Tchernóbil parece muito uma sessão de terapia, com grandes parágrafos fragmentários. O bloqueio narrativo que permeia o livro é externado em alguns momentos, como na fala do Professor Nikolai Prókhorovitch Járkov:

“Recebi uma carta de Leningrado. Desculpe, mas o nome Petersburgo não me entra na cabeça, porque foi em Leningrado que eu quase morri. Então… recebi uma carta me convidando para o encontro “Crianças do bloqueio de Leningrado”. Fui ao encontro, mas não consegui pronunciar nem uma palavra. Narrar simplesmente o medo? É pouco. Simplesmente o medo. O que o medo fez comigo? Eu até hoje não sei. Em casa, nunca recordávamos o bloqueio, a minha mãe não queria. Mas de Tchernóbil, falamos. Ainda que não… (Cala-se.) Entre nós não falávamos, era uma conversa que acontecia quando alguém vinha nos ver: estrangeiros, jornalistas, familiares que não vivem aqui. Por que não falávamos sobre Tchernóbil? Esse tema não se discutia nem na escola. Nem com alunos. Nem em casa. Estava bloqueado, trancado. Na Áustria, na França, na Alemanha, nos lugares que recebem as crianças para tratamento, conversam com elas sobre o assunto. E eu pergunto às crianças que indagações lhes fazem, o que querem saber. Mas elas geralmente não se lembram nem das cidades, nem das vilas, nem do nome das famílias que as alojaram.”

O que nos parece claro pela fala de Nikolai é o bloqueio da catástrofe, a impossibilidade de se comunicar a experiência do trauma. Daí o caráter fragmentário do livro, que ao cabo parece representar não a verdade dos acontecimentos, mas um retrato do trauma daqueles entrevistados por Aleksiévitch, que incorrem de mitos e inverdades que permanecem sem correção, não por negligência da entrevistadora, mas para representar a permanência desse estado traumático nas pessoas que viveram Tchernóbil de perto.

Estas pequenas notas de leitura obviamente se ampararam nas considerações de Benjamin em “O narrador”, que percebe o desaparecimento da arte de narrar, e constata na experiência da guerra a razão desse desaparecimento:

“Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca.
Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.” [grifo nosso]

Benjamin pode ser justaposto à Svetlana, em texto que faz as vezes de prefácio ao livro, no qual esboça um percurso geracional dos indivíduos que Benjamin parecia ter em mente:

“A zona é um mundo à parte. Outro mundo em meio ao restante da Terra. Primeiro foi inventada pelos escritores de ficção científica, mas a literatura cedeu o passo à realidade. Agora já não podemos mais crer, como os heróis de Tchékhov, que dentro de cem anos o ser humano será maravilhoso. Que a vida será maravilhosa! Esse futuro nós já perdemos. Nesses cem anos houve o gulag de Stálin, Auschwitz, Tchernóbil. O onze de setembro de Nova York. É incompreensível como se sucederam tantos fatos, como couberam na vida de uma geração, nas suas proporções. Na vida de meu pai, por exemplo, que está com 83 anos. E o homem sobreviveu!”

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