Tolstói e Dostoiévski: notas sobre desencontros

Literatura Russa
Literatura Russa
Published in
2 min readJun 3, 2020
Tolstói e Dostoiévski por Rebecca Green.

Tolstói e Dostoiévski não se conheceram. Estiveram no mesmo ambiente uma única vez, em uma palestra pública, mas não foram apresentados. Porém, a grande oportunidade perdida de fato dos dois autores se conhecerem se deu em 1880, quando Tolstói recusou o convite de participar das celebrações em memória de Púchkin, em Moscou, das quais tomaram parte quase toda a intelligentsia russa, incluindo Dostoiévski e Turguêniev.

Dostoiévski, que já se encontrava gravemente doente na época, parou a escrita dos ‘Irmãos Karamázov’ em sua casa de campo para ir até Moscou e discursar sobre Púchkin, em um texto que ficaria famoso por coroar sua carreira de escritor, seis meses antes de seu falecimento, acontecimento que tomou Tolstói de assalto, relatado por Rosamund Bartlett em “Tolstói: a biografia”, a quem recorremos:

“A ausência de Tolstói nas celebrações de Moscou foi muito comentada. Circularam boatos de que o conde estava doente, enlouquecendo, ou que já tinha enlouquecido. Dostoiévski sentiu o ímpeto de viajar a Iásnaia Poliana para finalmente se encontrar pessoalmente com Tolstói, mas mudou de ideia. Menos de seis meses depois o autor de Crime e castigo estaria morto, e foi somente então que, sentado sozinho à mesa do jantar, depois de voltar tarde para casa em uma fria e escura noite de fevereiro, Tolstói chorou diante do prato e se deu conta do quanto estimava Dostoiévski. O conde adoecera em setembro do ano anterior, ocasião em que relera Recordações da casa dos mortos, o livro que alegoriza o renascimento espiritual de Dostoiévski durante seus anos de trabalhos forçados em uma prisão siberiana, e ficara maravilhado com seu “sincero e natural ponto de vista cristão”. Tolstói pedira a Strákhov que transmitisse seus afetuosos cumprimentos a Dostoiévski, que ficou tremendamente contente, mas nada contente com a falta de reverência de Tolstói por Púchkin. Strákhov tentou apaziguar as coisas alegando que Tolstói tinha se tornado um “livre-pensador” de postura ainda mais independente que antes. A tardia apreciação de Tolstói por Dostoiévski é reveladora de seu sentimentalismo, pois a verdade é que o conde odiava com todas as forças a mistura de piedade e patriotismo de Dostoiévski em seus últimos anos de vida. O sentimento era recíproco. Pouco antes de morrer, Dostoiévski tinha ficado muito próximo de Alexandrine, e o escritor se indignou quando ela lhe mostrou algumas das cartas recentes de Tolstói tratando de religião.” (p. 355–6)

Também é notório que Tolstói leu ‘Os Irmãos Karamázov’, livro inspirado “pelo encontro do escritor com os anciãos de Optina Pustin”. O momento coincide com a ocorrência da fuga de sua casa para “fazer a última das suas muitas visitas ao mosteiro, lugar pelo qual aparentemente sentia ao mesmo tempo atração e repulsa” (p. 484), fato que sabidamente custou a vida do autor.

--

--