Antropologia Visual Desenhada — reflexões metodológicas na história da disciplina

BIEV UFRGS
Livro do Etnógrafo
12 min readMar 22, 2018

Escrito por: Matheus Cervo

O desenho como ferramenta metodológica esquecida

Arte produzida pela técnica de Rotoscopia por Matthias Brown.

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Este post fala especificamente sobre tentativas de reconstrução histórica do desenho na Antropologia enquanto uma metodologia. Para ver trabalhos contemporâneos acerca do tema, clique aqui.

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S egundo Philip Cabau, os desenhos feitos por antropólogos têm uma história passada e atual pouco conhecida na antropologia. Na maior parte das vezes, a menção ao assunto é prontamente mal interpretada como uma variação de interesses relacionados a tudo (cultura visual, grafismo indígena, pintura corporal, pintura rupestre, grafite, antropologia visual, etc.), menos aos desenhos feitos por antropólogos (CABAU, 2016, pg. 37). Como técnica visual esquecida mas há muito tempo praticada, como podemos pensar na história da nossa disciplina ao explicitar outras ferramentas visuais que acompanharam a escrita etnográfica desde seus primórdios?

Importante salientar, junto com as autoras Grimshaw e Ravetz, que existiu uma grande dificuldade até mesmo da antropologia visual se firmar como um campo no espaço acadêmico. Destacam que foi somente a partir da década de 70 que a antropologia visual se firmou como uma sub-disciplina no cenário norte-americano, tendo como marco a publicação de “Principles of Visual Anthropology” de Paul Hocking in 1975. Compreendendo a dificuldade de sairmos do espaço livresco purificado de imagens através da história da Antropologia Visual, podemos entender o quão difícil pode ser o processo de institucionalização de uma ferramenta metodológica que parece anacrônica aos olhos da contemporaneidade pós revolução digital . Mesmo com a institucionalização de práticas antropológicas que não utilizam somente o texto enquanto processo de produção de conhecimento, percebemos que os regimes de visualidade, citando Aina Azevedo, ainda são compostos essencialmente pela fotografia e o audiovisual.

Arte produzida pela técnica de Rotoscopia por Matthias Brown.

O desenho não foi totalmente desenvolvido como um método específico da etnologia. […] Ficavam a cargo de um conhecimento pré-existente e oriundo de outras tradições, tais como a botânica, a arqueologia ou a ilustração de viagem (AZEVEDO, Aina. 2016)

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Nos primórdios do trabalho etnográfico, o desenho conheceu muitas vezes uma espécie de lugar essencial na sua articulação com a escrita e também com o registro fotográfico. De acordo com Geismar, durante o trabalho de campo, etnógrafos necessitavam continuamente processar o que viam e traduzir suas experiências para diferentes tipos de mídias — que compunham uma grande bricolagem em diários de campo, gravações de áudio, questionários, colagens. Por este motivo, a autora nos questiona: o quão sério levamos estes espaços fabricados e desenhados enquanto um processo de pensamento na história da nossa disciplina? Que reflexões podemos tirar de esboços— desenhos informais, muitas vezes não polidos, muitas vezes rápidos, frequentemente feitos na frente de seu assunto — em nossa compreensão de como os antropólogos “vêem” o mundo durante o trabalho de campo?

Uma breve introdução à história do desenho na disciplina

Nikolai Miklouho-Maclay através de Ballard (2013)

Ballard (2013) dedicou-se aos desenhos do antropólogo russo do século XIX, Nikolai Miklouho-Maclay, que também fez pesquisa em Vanuatu, na Melanésia — assim como o próprio Ballard. Neste caso, o autor contemporâneo interessou-se pelos desenhos de Miklouho-Maclay como uma forma de comunicação importante empregada pelo antropólogo na Oceania, na falta, inclusive, de uma língua comum. Não só enquanto uma forma comunicativa, Nikolai utiliza o desenho enquanto uma forma de registrar visualmente sua etnografia em um momento em que não existiam câmeras fotográficas.

Apesar da dificuldade do olhar contemporâneo de compreender todas as motivações que levaram ao antropólogo russo a dialogar com a alteridade através da arte figurativa, algumas motivações iniciais podem ser traçadas através de um processo indutivo de olhar as imagens. Observando que não se tratam somente de figuras soltas fora de um diário de campo, podemos perceber que a bricolagem constitutiva do projeto antropológico aparece na sua artesanalidade de construção da cultura do outro através de técnicas mistas que levam a reflexões posteriores. A escrita acadêmica, purificada dos ruídos produzidos em campo, só é consagrada através do poder observar o próprio pensamento se pensando enquanto se expressa em diferentes suportes materiais na construção anárquica que tenta registrar a vida cotidiana que se desenrola aos olhos do observador. O que interessa, neste escrito, é pensar que a cronologia da constituição do pensamento acadêmico é precedida por várias outras formas de ver que só são possíveis através de técnicas de expressão diversas em processos de hibridização possibilitados pela tecnologia do diário de campo.

Será que Nikolai, nos termos utilizados na história da Antropologia Visual, utilizava os desenhos como forma de registrar com uma intuição de realidade assim como fazia Malinowski nas suas primeiras etnografias visuais? Acredito que as etnografias anteriores a maior participação do registro fotográfico utilizaram o desenho dentro do que poderíamos considerar como o “paradigma realista”. Mas esta concepção é longe de ser hegemônica.

Bernard Deacon através de Geismar (2014)

Desenhos retirados de (GEISMAR, 2014)

“Os esboços de Deacon nos ensinam não apenas sobre aquilo que ele estava vendo, e talvez pensando, mas também sobre como ele foi treinado a ver e pensar, tanto pelos seus professores em Cambridge quanto pelos seus interlocutores Malakulan.” (Geismar 2014: 98)

Se Nikolai utilizava seus desenhos com uma expressão “realista”, não é o que podemos observar com a arte de Deacon. O olhar contemporâneo lançado por Geismar sobre os arquivos deixados pelo antropólogo pretendem mostrar que o desenho aqui é utilizado, em muitos momentos, enquanto processo de uma observação diferenciada. Trabalho realizado conjuntamente com o povo Malekula onde hoje conhecemos como a região de Vanuatu, a etnografia de Deacon contava também com auxílio da máquina fotografia para processo de registro do outro — o que o motivava, então, a utilizar o desenho apesar de ser tão mais custoso seu desenvolvimento em comparação com o clique fotográfico?

Geismar observa, através das chaves conceituais de John Berger em Ways of Seeing, que possivelmente existia uma vontade de treinar o “como ver” através do processo de perceber sua própria imaginação sendo construída através dos rabiscos em grafite. Não priorizando desenhos finalizados com fins de registrar cenas do cotidiano em sua totalidade com pretensões realistas, percebemos uma diversidade de fragmentos desenhados a fim de ver determinadas formas da cultura do outro (como as formas da arquitetura totêmica neste caso) através de um momento prolongado que pode ser alcançado, com minuciosidade, através da técnica do desenhar. É replicando o processo dos “desenhos na areia” do povo estudado que Deacon pôde, provavelmente, compreender o que o processo de criação de certas formas representava, simbolicamente, para o ritual em questão.

Já neste momento podemos compreender a diferença fundamental da dialogicidade da Antropologia Visual com a câmera fotográfica e com o lápis que expressa o próprio imaginário do pesquisador nas formas desenhadas. Longe de entender o registro fotográfico enquanto uma “captura do real”, o que salienta Geismar no seu artigo é que o desenho permite uma expressão criativa através de formas concebidas pelo imaginário do pesquisador a fim de treinar, ao observar o desenrolar do desenho etnográfico, a forma como se vê. Percebi como o uso da técnica por Deacon muda ao decorrer do trabalho de campo: o que inicialmente era registrado pelo cogito com uma intenção cartesiana de registro do real acaba por se tornar uma aventura etnográfica no desenhar junto com o outro nas suas próprias concepções simbólicas expressadas em formas múltiplas.

Os dois exemplos que vimos até o momento são explorações dos diários de campo de outros intelectuais, mas o desenho etnográfico também encontra suas formas trabalhadas e purificadas de ruído. É o que percebi em Os Nuer.

Evans Pritchard em “Os Nuer” — entre desenhos figurativos e diagramas

Todas as imagens foram retiradas do Livro “Os Nuer” de Evans Pritchard.

Evans-Pritchard adaptou a metáfora visual da árvore para explicar tais noções de escala nas inter-relações entre clãs e linhagens Nuer. Ele também fez tentativas de representar descrições e representações dessas inter-relações. Nessas tentativas, Evans-Pritchard afirma que “[os nuer] não apresentam [linhagens] a maneira como nós as imaginamos a partir de uma série de bifurcações de descendência, de uma árvore de descendência ou de uma série de triângulos de ascensão, mas como um número de linhas que correm em ângulos a partir de um ponto comum … eles vêem [o sistema] como relações reais entre grupos de parentes dentro das comunidades locais e não como uma árvore de descendência, pois as pessoas a quem as linhagens são chamadas não procedem de um único indivíduo ”(Evans-Pritchard 1940: 202).

Percebemos como Evans Pritchard coloca a problemática dos tipos de desenhos e suas finalidades metodológicas no campo etnográfico. A inserção de diversos tipos de diagramas possibilita ao autor não só comunicar um tipo de pensamento não Ocidental como também pensar através de desenhos no seu processo de fabricação. Apesar do seu uso não se restringir a diagramas e desenhos figurativos (compondo seu trabalho com gráficos, mapas, fluxogramas), não existe nenhum trabalho acadêmico que fale sobre os desenhos de Os Nuer enquanto um processo metodológico.

Gell e os Strathernograms por Aina Azevedo (2016)

Segundo Aina Azevedo:
“A exclusão de um tipo particular de imagem como modo de distinção da antropologia também é observada por Gell (1999: 31) com relação ao distanciamento dos gráficos — que, por sua vez, persistiam em ciências que ele denominou de “inimigas”, como a engenharia. (aina Azevedo) Gell também atribui este rechaço às imagens ao excesso de diagramas do estruturalismo, evidenciado em mentes que expressavam graficamente os significados da antropologia — como Leach, Lévi-Strauss e Fortes (Gell 1999: 31). “Strathernograms” (Gell 2006: 29–75). Desenhos e diagramas, apresentados ao longo de suas publicações, fazem todos parte de um mesmo esforço do autor de tornar a antropologia mais compreensiva visualmente ou, como escreve Gell, fazem parte da sua própria familiaridade com essa linguagem, evidenciada na sua maneira de pensar primeiro em diagramas, depois em textos escritos (Gell 2006: 8–9).”

Referências sobre Desenho e Antropologia

Blogs e Sites

Desenhos Etnográficos explorações sobre técnicas de registro e pesquisa na antropologia — por Karina Kuschnir

Desenhos, textos e coisas — blog pessoal de Karina Kushnir onde fala tanto sobre desenhos quanto por desenhos

Anthropology of the Grid — Uso de diagramas na Antropologia

Artigos de Periódico

Aina Azevedo — Desenho e antropologia: recuperação histórica e momento atual

Aina Azevedo — Desenhos na África do Sul — desenhar para ver, para dizer e para sentir

Aina Azevedo, Manuel João Ramos — Drawing Close — On Visual Engagements in Fieldwork, Drawing Workshops and the Anthropological Imagination

Carla Boserman Entre grafos y bits

Carol Hendrickson Visual Field Notes: Drawing Insights in the Yucatan

Christine Escallier — De l’objet intrinsèque à la pensée technique : le rôle médiateur du dessin en ethnographie maritime

Haidy Geismar — Drawing Out

Inês Belo Gomes — “Deixei o desenho enterrado” ou como ressuscitar o grafismo enquanto metodologia antropológica: um caso prático

José Miguel Olivar — Ethnographic drawings: some insights on “prostitution, bodies and sexual rights”

José Miguel Olivar — “Dibujando Putas: reflexiones de una experiencia etnográfica con apariciones fenomenológicas.”

Karina Kushnir — Ethnographic Drawing: Eleven Benefits of Using a Scketchbox for Fieldwork

Karina Kushnir — A antropologia pelo desenho. Experiências visuais e etnográficas.

Karina Kushnir — Ensinando antropólogos a desenhar: uma experiência didática e de pesquisa

Karina Kushnir — Desenhar para conhecer: desenhando cidades

Karina Kushnir — Drawing the city: a proposal for an ethnographic study in Rio de Janeiro.

Martin Soukup Photography and Drawing in Anthropology

Philip Cabau — Crús e descosidos. Reflexões em torno do ensino do desenho da antropologia

Livros

Manuel João Ramos — Histórias Etíopes: Diário de Viagem

Michael Taussig I Swear I Saw This: Drawings in Fieldwork Notebooks, Namely My Own

Tim Ingold Being Alive : Essays on movement, knowledge and description.

Tim Ingold — Lines: A Biref Story

Referências sobre Antropologia e Arte — conexões com outras subáreas

Livros

Alfred Gell — Metamorphosis of the Cassowaries.

Alfred Gell — The art of anthropology — Essays and Diagrams.

Els Lagrou — A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica
* Para uma resenha, acesse o trabalho de Messias Basques aqui.

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