De prosa com as imagens: processos esquemáticos de organização da pesquisa

BIEV UFRGS
Livro do Etnógrafo

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Por Roberta Simon (doutoranda PPGCOM/PUCRS e pesquisadora BIEV e NAVISUAL/UFRGS)

A pesquisa acadêmica não se desenvolve apenas nas reflexões mentais, laboratoriais e nos materiais visuais produzidos. Ela também aparece no constante processo de reconfigurações esquemáticas. Apontamentos em papéis, blocos de notas, guardanapos, notas de supermercado, bilhetes pendurados em varal de ideias, murais ou pastas. A todo o momento podem surgir pensamentos e muitos dos inputs cotidianos acabam contribuindo para os insights da investigação.

Entretanto, para eles não “morrerem na praia”, precisam ser trabalhados, inseridos, revistos e repensados para fazer sentido ao todo e contribuírem de fato para a pesquisa, tornando-se outputs construtivos. As notas e rabiscos são fragmentos, não como partes do todo, mas como unidades completas em si, que condensam em forma de síntese as reverberações dos processos de pesquisa.

Assim como as obras fragmentadas de Benjamin nos propõem uma liberdade em sua ordem de leitura, também se abriu para tal experiência a exposição “Etnografias Compartilhadas: narrativas visuais e sonoras do viver urbano em Porto Alegre”, pensada coletivamente entre os pesquisadores do Navisual (IFCH/PPGAS/UFRGS), os alunos da disciplina de Antropologia Visual e da Imagem, do curso de Ciências Sociais (UFRGS) e o curador Rafael Derois (DDC/PROREXT/UFRGS).

Nessa exposição, com nove projetos diferentes e sem demarcação limítrofe do espaço expográfico, as pessoas que passavam a trabalho, lazer ou estudos circulavam livremente pelo saguão da Reitoria da UFRGS, em agosto de 2016, e se deparavam com imagens e histórias da cidade. Com câmera na mão, em um processo de pesquisa de etnografia visual, eu as abordava perguntando o que lhes tinha chamado mais atenção na exposição e o que lhes vinha à cabeça quando viam aquelas imagens. Em um gesto rítmico e afetivo do pulsar intrínseco (BACHELARD, 1988; DURAND, 2012; RANCIERE, 2000), a partir de uma “gênese recíproca” (DURAND, 2012) elas falavam da exposição a partir de suas próprias vivências.

Os encontros seguintes com quatro dos vinte e cinco visitantes com quem entrei em contato na exposição, renderam narrativas biográficas, trocas de objetos e afetividades. Como processar a grande quantidade de informações, histórias contadas em fotografias, vídeos, áudios, objetos, além das anotações, diários de campo e ilustrações? Como organizá-las e relacioná-las?

Nesta postagem de blog, apresento algumas contribuições dos recursos esquemáticos de meu processo de pesquisa da tese.

Um varal de ideias — experimentando camadas e estruturas

Antes de começar a escrita, senti necessidade da rápida e acessível visualização da estrutura do trabalho. Como não havia a possibilidade de colocar um mural, comecei improvisando com um varal de roupas em desuso, ao lado da mesa de trabalho e ali pendurei questões da pesquisa, os objetivos e hipóteses, tema, universo, problemática, possível título e a estrutura dos capítulos. Como se essas reflexões introdutórias tivessem sido lavadas, eliminando os excessos desnecessários que poluem nossos pensamentos. Quanto mais simples e limpo, melhor. E assim estavam as ideias no varal, secando ao vento, sendo iluminadas pelo sol e observadas pelo meu olhar atento aos processos de transmutações criativas das novas descobertas que faziam os bilhetes circularem entre as camadas mais próximas ou distantes de mim, serem eliminados ou substituídos. O varal serviu como uma estrutura física e metafórica para o trabalho de limpar e organizar as ideias da pesquisa. Um varal de ideias iniciais da pesquisa para ver quais as reflexões que, depois de limpas, poderiam vestir, costurar e se ajustar à tese.

Proposta Cartográfica — experimentando espacialidades

Com o andamento da pesquisa e o desafio da disciplina de Antropologia Urbana (Ciências Sociais/UFRGS), que participei como aluna especial, procurei assentar espacialidades, localizar ideias e elaborei uma proposta cartográfica a partir da ferramenta de criação do Google Maps. É possível visualizá-la por completo ou por partes. As partes estão divididas entre a exposição e os entrevistados. Clique aqui para navegar.

O propósito com tal reflexão cartográfica era de, em uma mesma escala, tentar relacionar espacialidades e temporalidades da pesquisa. Um mapa contribuiu para fazer um reconhecimento visual ampliado dos espaços apresentados pelas imagens da exposição e pelas narrativas biográficas dos entrevistados. Porém, a dimensão temporal não se revelou e as histórias e imagens perderam sentido apenas visualizadas pela dimensão espacial.

Tabelas — experimentando temporalidade

Tabela temporal: esquematização das narrativas

Como já mencionado, o trabalho de campo foi realizado em uma exposição coletiva, que contou com nove projetos expográficos. A intenção inicial era comentar apenas os cinco projetos que mais chamaram atenção das quatro pessoas com quem continuei a pesquisa. A quantidade de dados foi tanta que precisei organizar em uma tabela para ter uma dimensão das partes e do todo, o que era possível separar e agrupar. A tabela intitulou-se “Proposta Cartográfica das Formas Sensíveis do Viver Urbano em Porto Alegre”.

Foi então que percebi que não fazia sentido reduzir a exposição a cinco dos nove projetos expográficos, pois havia uma linha lógica que amarrava e potencializava a narrativa visual como um todo. Ao separá-la na tabela, as falas dos interlocutores acabavam localizadas por pontos específicos da exposição. Contudo, percebi que essa relação não era direta. Diante de um gatilho imagético ou uma provocação minha, as pessoas podiam se remeter a algo que haviam visto em outras partes e momentos de suas passagens pela exposição. Diante de um projeto se falava de outro, em um fluxo descontínuo e não espacializado da comunicação em círculos. Como disse o interlocutor Tumax, há imagens que “ficam”. A pessoa pode lembrar daquela imagem em específico, não importando quando ou onde a pessoa esteja especificamente na exposição. A própria atmosfera do ambiente e a experiência de interação comigo e a câmera atiçavam e disparavam como gestos as histórias e imagens próprias de cada visitante.

Nessa tabela, dividi as dimensões analíticas e os interlocutores em colunas; as dimensões temporais e núcleos de sentido das falas na exposição e nas narrativas biográficas em linhas. Assim, formaram-se três páginas com sínteses narrativas. Sua forma de sistematização lógica da tabela complexificou e perdeu funcionalidade analítica. Mesmo assim, por meio dos espaços em branco foi possível observar que as temáticas escolhidas poderiam ser reduzidas a dimensões mais abrangentes, agrupando as especificidades em núcleos de sentido que contemplassem mais narrativas dos interlocutores ao mesmo tempo. Além disso, ela contribuiu para ter uma noção da quantidade de material narrativo já reunido, organizado e ausente. A proposta cartográfica por temporalidades trouxe uma clareza visual do todo, entretanto continuavam separadas as espacialidades e temporalidades das experiências de comunicação com as imagens.

Como organizar a relação lógica dessa quantidade de informações que parecem andar tão distantes e tão próximas em conteúdo e nas forma espaço-temporais?

Saguão da reitoria da UFRGS — visualização do campo

Percursos entre os projetos da exposição

As esquematizações continuaram. Na banca de qualificação da tese, a professora Dra. Ana Luiza Carvalho da Rocha sugeriu que fosse criado um mapa para apresentar a exposição como um todo. Assim, o leitor do trabalho teria mais facilidade em compreender espacialmente a exposição. Fiz alguns rascunhos, passei a limpo à mão e, depois, para um arquivo de powerpoint no computador, no qual comecei a trabalhar graficamente os detalhes do desenho com legendas explicativas.

A partir de uma compreensão gráfica do saguão da Reitoria da UFRGS, onde foi realizada a exposição e o campo de pesquisa deste trabalho, utilizei, primeiramente, uma sequência numeral. Depois, flechas para sugerir ao leitor percursos pelos diferentes projetos expográficos, agrupados em três blocos temáticos. Cada núcleo temático com uma cor:

  • Em lilás: “Juventude: práticas juvenis”
  • Em rosado: “Arte e intervenções na cidade”
  • Em verde: “Espaços verdes urbanos”

Como a exposição já foi desmontada, dessa forma os leitores podem escolher um caminho a percorrer ou seguir a proposta com as flechas. Como já mencionado, a multiplicidade de entradas e olhares possíveis se dá pelo formato fragmentado e de livre circulação sugerido pela expografia da exposição.

Circularidade da Comunicação — experimentando relações

Circularidade da Comunicação: primeiro esboço, buscando agrupar os projetos expográficos por núcleos de sentido ao redor da cena de sujeitos em prosa com as imagens na exposição

Com o intuito de compreender de que forma nos comunicamos com as imagens, essa imagem-síntese apresenta uma moldura, referente ao enquadramento videográfico. As crônicas videoetnográficas abordam as experiências de pessoas que falam de uma exposição sobre as formas sensíveis de viver o urbano em Porto Alegre a partir de suas próprias perspectivas sensíveis e biográficas.

No primeiro rascunho, há muitos elementos que fazem parte dessa comunicação circular entre a exposição (representada no centro de tudo, por apenas um retângulo e a palavra “POA”), os narradores com dois tipos de balões: suas falas na exposição e seus processos mentais referentes aos estoques de conhecimento (SCHULTZ, 1973) e a pesquisadora com a câmera na mão.

Figura à esquerda: Circularidade da Comunicação: simplificação focada nos agentes (a exposição, os quatro personagens, a câmera e a cidade pelos projetos apresentados na exposição). Figura à direita: Circularidade da Comunicação: legendas específicas de cada elemento agenciador
Circularidade da Comunicação: processo anímico de circulação entre a exposição, sujeitos e a cidade

Para fazer circular os elementos, relacionei as narrativas dos visitantes, que viraram personagens com as narrativas da exposição. Tabelas das falas de cada personagem na exposição e os resumos das narrativas biográficas facilitaram o acesso aos conteúdos da comunicação. Eles foram fundamentais no pré-processo de concepção e montagem das crônicas video-etnográficas. Ao todo, serão cinco crônicas, uma de cada personagem (quatro) e a final que contará a história completa, amarrando os fragmentos, fazendo circular as narrativas e imagens da exposição com as biográficas e os contextos socioculturais e da interação.

Esquematizações narrativas para as crônicas videoetnográficas — experimentando montagens

Abaixo, segue um exemplo de alguns passos realizados de esquematização inicial antes da roteirização da crônica videoetnográfica da interlocutora Elenir, uma das visitantes da exposição “Etnografias Compartilhadas: narrativas visuais e sonoras do viver urbano em Porto Alegre”.

Figura à esquerda: Elenir na exposição: esquematização em formato de tabela com suas falas separadas pelos projetos expográficos relacionados. Figura central: Narrativa biográfica de Elenir: anotações esquemáticas. Figura à direita: Espiral narrativa: em busca de uma lógica narrativa para a crônica
Figura à esquerda: Recriações narrativas: após finalizada a crônica, as apresentações em eventos desafiam às transcriações narrativas. Figura à direita: Roteiro: esquematização para melhor visualização

Abaixo você pode conferir como ficaram as duas primeiras crônicas videoetnográficas feitas com Claudio e Elenir. Clique no nome deles, na legenda.

Crônicas videoetnográficas de dois visitantes da exposição: Figura à esquerda: Claudio Oliveira. Figura à direita: Elenir Isaías.

Das vinte e cinco pessoas com quem entrei em contato na exposição, quatro viraram personagens da tese e continuam no diálogo etnográfico. Segui a proposta metodológica de criar crônicas videoetnográficas de cada um dos personagens para depois montar narrativamente o quinto vídeo, amarrando tudo.

No saguão da reitoria da UFRGS, apenas abordei aquelas pessoas que passavam, paravam em frente às imagens, pareciam mais atentas e interessadas à exposição. Foi assim que conheci esses quatro personagens, com os quais continuei me encontrando entre bate-papos, cafés da tarde, mesa repleta de doces e bolos, jantar com pizza, eventos culturais e religiosos e nas narrativas biográficas filmadas. Ainda não sentamos todos interlocutores juntos para conversar, mas esta proposta da Elenir parece ser muito interessante para eles se conhecerem.

Todo processo etnográfico resulta em muitas informações que precisam ser alinhavadas, ainda mais quando se registra audiovisualmente. A pergunta que sempre surge: Como montar tudo e contar uma história? Que história contar? O que de cada personagem chama mais atenção e contribui para essa história? Que aspectos da prosa com as imagens ressaltar?

Foram feitas as transcrições de cada vídeo e de alguns áudios. Revisitei fotografias, vídeos, áudios, diários de campo, memorandos das narrativas biográficas e apontamentos realizados para organizar tudo em narrativas audiovisuais. O mais importante para as crônicas vídeo-etnográficas são as prosas dos interlocutores na exposição. Criei uma tabela tentando encaixar as falas de cada personagem com o projetos expográficos, ainda naquela ideia de que houvesse uma direta relação entre suas falas e os projetos. A decupagem de tudo em tabelas contribuiu para visualizar com clareza as partes da exposição que mais chamaram atenção dos interlocutores e as abordagens temáticas das narrativas dos visitantes da exposição. As temáticas conduziram a lógica para a montagem dos vídeos.

Agora estou no processo de roteirização e montagem da terceira crônica vídeo-etnográfica, concomitante à escrita da tese. Assim, várias tentativas esquemáticas estão sendo feitas neste momento analítico do processo de pesquisa. Segue abaixo um gif como exemplo das transformações, simplificações e complexificações que envolvem este momento.

Do varal, às cartografias, tabelas, ilustrações e vídeos, o processo de pesquisa vai pulsando, transcriando, reconfigurando, compartilhando o sensível, o gesto anímico que faz circular e reverberar histórias e imagens de vidas. Agora, a tese se estrutura; avoluma, colore e texturiza pensamentos e imagens na materialidade de uma pasta em aberto. Se, antes, as ideias estavam secando ao vento em um varal de ferro, hoje, entre as folhas de plástico de uma pasta cor-de-rosa, elas ganham nova roupagem. Nesse processo de pesquisa sobre a prosa com as imagens pela comunicação circular, é a própria pesquisa que anda circulando por aí como um projeto aberto às prosas com as imagens de quem o abrir.

Todo processo de pesquisa em uma pasta: nova roupagem e composição

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.

DURAND, Gilbert. Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

RANCIÈRE, Jacques. Le partage du sensible. Esthétique et politique. Paris: La Fabrique, 2000.

SCHÜTZ, Alfred. El problema de la realidad social. Escritos I. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2008.

______; LUCKMANN, Thomas. The Structures of the Life-world. Evanston, IL: Northwestern University Press, 1973.

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