Em busca do sentido antropológico: políticas da escrita e carona

BIEV UFRGS
Livro do Etnógrafo
20 min readMay 3, 2018

Yuri Rosa Neves

“Como fazer sentido do mundo”. É assim que William Kentridge condensa o seu processo de criação e descobrimento enquanto artista em algumas falas. Seus trabalhos se situam numa fronteira entre o desenho, o cinema, o teatro, a animação e a performance, tendo como principal marca desenhos que não se findam numa imagem final, mas que são transformados em sequência que contam histórias. Nesta direção, em diversas obras mistura e sobrepõe mídias tateando uma inscrição da processualidade no estabelecimento de uma realidade, objetivando deixar explícito também o prcesso de criação. É neste “fazer-se” do mundo que Kentridge busca dar sentido através da arte, requerendo, como ele próprio explicita em entrevistas, documentários e palestras, abertura para viver a incerteza e provisionalidade da qual emerge a arte na sua perspectiva.

Esta provocação em torno dos sentidos do mundo e a sustentação do sujeito artista me parece interessante para discutir as estratégias de escrita etnográfica na minha experiência com a prática de carona pelas rua de Florianópolis-SC. Paralelamente à filosofia que subjaz o trabalho deste artista, podemos pensar a etnografia como uma escrita que busca retirar sentidos antropológicos emergentes nos contexto de campo, em que não se trata tanto do estabelecimento de uma imagem pronta, puramente racionalizada e fechada como uma simples verificação da aplicabilidade de uma teoria. Inspirar-se pelas dinâmicas do mundo, seja como antropólogo ou artista, sempre enseja incertezas, provisionalidades, parcialidades e traços subjetivos presentes nas construções das pessoas em suas vidas, seja daqueles com quem dialogamos ou em nós mesmo. Guardadas as diferenças na forma de criar a expressão dos processos de dar/fazer “sentidos do mundo”, as colocações deste artista podem ressoar diretamente numa reflexão sobre a consolidação da autoria como antropólogo e a escrita etnográfica

Kentridge, ao longo de uma entrevista que tem como título a expressão “como fazer sentido do mundo”, explicita seu processo titubeante de consolidação como artista, galgado também sobre as falhas que tivera no teatro e no cinema. . Ele próprio faz comparações com seu estilo de desenho e a escrita: “…na verdade o desenho com carvão vegetal é preto e banco, está muito mais próximo da escrita do que da pintura. Ao invés de escrever com uma caneta, trata-se de algo como escrever transitoriamente com imagens. E as imagens sempre podem estar a serviço de algo além delas mesmas” (tradução do autor, original nas referências).

Tomar a carona como objeto no meu processo implicou na tentativa de descrever movimentos surgidos como rastros, os quais têm de ser retrilhados para captura de imagens e situações fugazes. Remetendo ao processo de Kentridge, busca uma forma em que diversos relatos compusesem o trabalho de modo a que falasse algo mais que eles mesmo, uma busca dar certos sentidos ao alçar outras questões, amarrar com outros relatos, apontar mudanças na formas de signifcar a partir de cada perspectiva. Trata-te se de uma prática de deslocamento em que, diferente de estruturas regulares de circulação mais estabelecidas e fixas — como num ônibus que passa todos os dias na mesma hora — os trajetos não podem ser repercorridos do mesmo modo, pois a participação de motoristas e caroneiros é variável e espontânea, os motivos de escolha por esta forma de locomoção, assim como as situações vivenciadas, não são evidentes, mas sempre contingentes. Partindo das particularidades deste campo de encontros variados e descontínuos, proponho partilhar algumas sequência dos relatos na busca dos sentidos antropológicos que emergiram e criaram uma continuidade argumentativa no meu trabalho de dissertação, demonstrando, assim, o meu processo de consolidação da autoria e do fazer de sentido antropológico.

Escrita etnográfica e prática de carona

Pegar e dar caronas implica em negociações bastante específicas, muito diversas das que utilizamos nos trasportes privados e públicos. Há um esforço pessoal de ambas as partes envolvidas para fazer da circulação de carros privados cumprir, em certa medida, uma função pública — a circulação geral das pessoas ou a “mobilidade urbana”, como a política de Estado categoriza. É portanto uma prática que tensiona as fronteira destes domínios, em geral regulados por formas de governar os espaços. Percebe-se este esforço ou implicação pessoal pela necessidade de romper a continuidade da passagem de carros pela pessoa com o dedo esticado na beira da via. Tudo depende de uma troca de olhares fugaz. Estabelecido o acordo e o carro encostando, o espaço seguro do motorista também é abalado com a possível entrada de um desconhecido. Ambos participantes ficam a cargo de gerir as descontinuidades produzidas pelo compartilhamento de instantes no deslocamento.

Durante a elaboração das minhas ideias, coube compreender o modo como estas descontinuidades e aberturas são contingenciadas, negociadas e criadas, gerando um modo específico de lidar com o tempo e com a realização do próprio caminho. Como Patrick Laviolette (2014) propõe em seu trabalho sobre caronas, trata-se de uma situação de suspensão temporal desde a passagem dos carros e dos instantes de decisão, à suspensão momentânea das práticas de deslocamento hegemônicas.

O primeiro desafio que se anunciou e precisou ser elaborado ao longo do trabalho etnográfico foi a particularidade do acesso inconstante neste campo: reinicia e termina a cada trajeto dando ou recebendo caronas. Difere da clássica imersão por um longo período com alguma alteridade específica. Isto se desdobrou em implicações sobre o modo de escrever sobre esta prática, ao passo que colocava questões em torno de como autoria e estabelecimento do lugar de pesquisador se realizava durante a e o campo. Considerando que os participantes na carona não se condensam num grupo permanente e fixo de pessoas numa filiação já estabelecida — ocasionalmente se tornam caroneiros ou uma pessoa dando caronas — foi um trabalho de campo em que precisava estar atento à repetição de uma situação.

Este acesso inconstante explicitava também como eu mesmo deveria ser parte deste grupo de “caroneiros” e motoristas vivenciando a prática, e minha realização enquanto autor de uma reflexão antropológica (realizando uma etnografia) sobre o tema era paralelo à ocupação deste lugar no deslocamento esticando o dedo pela cidade. Ou seja, eu mesmo deveria me engajar nas suspensões da carona para realizar o campo, criar esta possibilidade que não está pronta como numa parada à espera de um ônibus, ou num grupo de encontros semanais. Além disto, ficava aparente como dar sentido organizador para as diferentes experiências estava estreitamente ligado com a minha parcialidade enquanto homem, branco e estudante, pois influenciava quais caronas poderia pegar e, talvez mais implicitamente, o modo como organizar as ideias. Neste sentido, em campo, fui reafirmadamente tomado antes como participante da dinâmica (caroneiro ou motorista) do que como pesquisador de caronas por aqueles e aquelas que viabilizaram a realização da pesquisa de campo — e de meus deslocamentos cotidianos por algum tempo. A sustentação de meu lugar como pesquisador não passava por ser reconhecido como pesquisador pelas outras pessoas com quem compartilhei caronas. Aí estava um desafio: dar organização para situações pontuais e descontínuas que ia colhendo, não podendo fazer deste caminho um traçado contínuo de relação com o grupo. Eu deveria decidir por qual carona começar e amarrar cada tema.

Nestas primeiras percepções sobre a particularidade deste campo se anunciava um aspecto basilar da antropologia urbana, a desnaturalização daquilo que era familiar (Velho, 1987). Além de ser morador de Florianópolis, recorria diariamente à carona para me locomover, e foram exatamente destas experiências que surgiram os primeiros vislumbres do objeto de pesquisa. Na busca de elaborar esta operação metodológica, encontrei na vivência urbana um ponto de cruzamento das experiências de carona naquele contexto. Afinal, a carona não é uma prática recorrente em qualquer cidade. Assim, meu primeiro impulso etnográfico mais estruturado foi compreender como esta prática se entrelaçava com diferentes formas de viver e interagir no ritmo e na paisagem daquela cidade, ligando-se a diferentes processos de significação: a partir das diferenças de gênero, do ponto de vista de turista, nativo, estudante, trabalhador ou morador desta ou de outra região. Esta gama de perspectivas sobre a forma de viver a carona se articulava com a participação de diferentes estilos de vida que compunham a cidade.

As particularidades da cidade de Florianópolis começaram a ganhar maior sentido para compreender a possibilidade da carona. Cidade de médio porte, com “vocação” para o turismo por suas belas paisagens e atrativos. Diferentemente da maioria das capitais do país que se transformaram bastante durante as primeiras décadas do século 20 e nos anos 50 e 60 sob inspiração de planos modernistas de urbanidade, é somente depois dos anos 60 que Florianópolis intensifica o processo de crescimento urbano e coloca regiões mais distantes do centro como parte do plano de desenvolvimento — estas hoje consideradas bastante centrais, como a Lagoa da Conceição e o Campeche. Atualmente, Florianópolis recebe um altíssimo número de novos residentes a cada ano, e, entre estes, a busca por uma qualidade de vida, ritmos mais pacatos e o contato com a natureza são significantes recorrentemente mobilizados nas migrações.

Uma das marcas resultantes deste processo de desenvolvimento urbano foi o traçado viário em forma de espinha de peixe (Reis, 2012), no qual uma via principal corta a maioria dos bairros e é alimentada pelas “servidões” e outras ruas de fluxo local, completamente diferente dos traçados mais quadriculados das cidades em que muitos caminhos se cruzam. Para sair e entrar num bairro em Florianópolis, temos, normalmente, somente duas possibilidades que levam a localidades distintas. Assim, é possível prever com facilidade a direção daqueles que pedem caronas e daqueles que passam de carro. A possibilidade da carona é então ligada à restrição dos fluxos.

A relação com o deslocamento é, em última instância, uma relação com o espaço habitado. Ou seja, a carona além de falar sobre como as pessoas se deslocam, faz refletir sobre como as pessoas vivem num certo lugar a partir das possibilidades de fluxos que têm. Em meu caderno de campo há diversos desenhos de padrões de linhas e conexões que eram elaborações destas possibilidades das redes de caminhos.

Outro aspecto se anunciava com a restrição de fluxos neste espaço urbano era o cenário que esta forma de estruturar a malha viária deixava, permitindo o encontro com belas paisagens naturais ao se deslocar. Assim, também produzi vídeos e fotografias das paisagens que passavam pela janela tentando pensar que cidade é esta na qual a carona é uma possbilidade na locmoção cotidiana.

Deste modo, captar esta dinâmica descontínua de instantes e suspensões em que ocorre a prática de carona trouxe, num primeiro momento, certos limites sobre a forma de escrever e organizar a etnografia, nos quais, com o avanço dos anos, converteram-se em possibilidades de potencializar estas especificidades. Análogo à vivência pontual da carona nas experiências cotidianas, a etnografia ficou organizada na forma de relatos descritivos separados de uma escrita mais reflexiva articulando temas centrais para o debate que propus. A seguir, apresento um primeiro relato de minha etnografia em que palavras e imagens tentanvam dar conta da experiência da carona articulando marcas deste processo de desenvolvimento específico de Florianópolis.

Era quase oito e meia da noite de uma quarta-feira de julho de 2013. Já estava escuro e me encontrava na rua Osni Ortiga na Lagoa da Conceição indo em direção ao Rio Tavares perto da Pedrita, onde residia. O trajeto tomava uns dez minutos. O ponto de carona é bastante utilizado, pois, apesar de aquele trecho ser o mais curto para ligar os bairros da Lagoa com o Rio Tavares e o sul da ilha que o outro caminho pelo Canto da Lagoa, não há ônibus ali. Normalmente as pessoas se posicionam há uns 15 metros do começo da rua num recuo longo em que a bela lagoa e a bacia de verdes morros que a rodeia ficam visíveis. Muitas pessoas param neste recuo para admirar a paisagem e passarem o tempo. Com pouco tempo de dedo esticado avisto um Gol modelo antigo prata despontando na curva. Logo que me vê, começa a reduzir a velocidade e encosta um pouco à frente. Caminhando na direção do carro estacionando, logo lembrei que o senhor na direção, Ademir, tinha me dado outra carona por volta da mesma hora algumas semanas atrás. Se naquele momento, lembrava de estarmos sozinho e termos conversado pouco, me aproximando do carro, uma senhora desce do carona e levanta o banco para que eu pudesse entrar. Além do casal, havia uma menina mais nova no banco de trás. Depois da resposta afirmativa que passariam pelo Rio Tavares, entrei rapidamente agradecendo, pois outros carros iam parando atrás criando uma pequena fila. Arrancamos e Ademir não fez menção ao nosso encontro anterior. Rompo o silêncio inicial reforçando o agradecimento, relembrando a carona na outra semana e perguntando o nome das mulheres. Sua esposa era Maria e a filha, que estava ao meu lado, se chamava Laís. Peço ao motorista para realizar um pequeno questionário que tinha elaborado para uma pequisa da faculdade sobre a prática. Ele não pergunta que curso eu fazia, mas aceita com um gesto curto de cabeça e um “aham” pronunciado baixinho que quase desaparecia com o som do motor do carro.

Durante a conversa guiada pelas perguntas, conta que era casado, tinha 60 anos e 3 filhos (uma delas Laís ao meu lado). Morava na Tapera fazia 15 anos. Já tinha pegado carona, e ainda o fazia “quando o carro estragava”, insinuando ser algo pouco frequente. Estava aposentado e tinha trabalhado toda sua vida como motorista de ônibus na cidade. Tinha nascido numa cidade perto de Florianópolis, Santo Amaro de Imperatriz, mas era praticamente nativo da Ilha, tendo crescido no Rio Vermelho, bairro que faz a conexão leste e norte de Ilha. Ao perguntar sobre escolaridade, Ademir me disse que estudara até a 5º série na escola do Rio Vermelho. Enquanto escrevia a informação sucintamente na folha apoiada sobre meu caderno, acompanhando o balanço das curvas, Ademir conta que naquela época não havia turmas depois daquela série, e “nem pensavam em universidade. A UFSC era muito cara”. Aquilo me chama atenção e eu digo levantado o olhar para o retrovisor que na realidade era pública, não tinha de pagar nada pra estudar. Diz que sabe disso, mas argumenta que naquela época, entre os anos 60 e 70, não se sabia disto no Rio Vermelho. Ao longo da carona, descubro pelo senhor que sua filha, que estava ao meu lado, estudava enfermagem na UFSC. Até o fim da carona mal escutei a voz dela e de sua mãe, só algumas afirmativas monossilábicas mantendo o olhar pra rua sem se cruzar com o meu. Chegando ao meu destino, agradeço e desejo um boa noite enquanto a senhora desce e levanta o banco para poder sair do carro.

Este relato com Seu Ademir e sua família me permitiu desdobrar a contextualização deste processo de desenvolvimento específico que a cidade passara, tanto evidenciando a recorrência dos encontros pela restrição de fluxos (era a segunda vez que nos encontrávamos no mesmo ponto), quanto as diversas “cidades” e as formas de habitar que os bairros representam. O Rio Vermelho, de onde Seu Ademir era natural, foi efetivamente ligado à rede viária da cidade após os anos 60 com a chegada da linha de ônibus até lá. Mesmo assim, a infraestrutura ainda precária tornava difícil o acesso às regiões mais centrais que iam se estabelecendo na cidade, justificando a percepção sobre o acesso à universidade “ser caro” na sua vivência de infância. Era algo distante. Quando contraposto com outras situações de moradores mais novos na cidade que se engajam na prática, pode-se tatear as diferentes participações e significados que jogam para a perpetuação da prática, visibilizando a consolidação temporal da carona (Eckert & Rocha, 2011) com as transformações em Florianópolis.

Ao longo deste e de outros relatos, coloquei sequências de fotos dos trajetos e certas vias para que o leitor pudesse vivenciar a estética dos caminhos em Florianópolis, objetivando, assim, expressar como uma paisagem de verdes morros, lagoas e dunas se entrelaçava com a prática e com os estilos de vida habitando a cidade. Neste texto, pelas possibilidades da plataforma de escrita, coloquei em formato de gifs para reforçar o movimento que tais imagens buscavam passar com a sequência.

Assim, durante a escrita, foi deste modo busquei pensar as particularidades deste campo. Fiz dos relatos também momentos de suspensões de reflexões mais analíticas, de encontro com a descontinuidades de pequenas situações; e o cenário específico desta urbanidade, no qual emergia como central para a escrita etnográfica, presente na experiência de leitura.

Entre rastros e decalques: o sentido antropológico e a autoria

Meu interesse neste texto é discutir como a escrita do particular (etnografia) não esgota a análise antropológica, mas permite, através de seus limites e potências, alçar debates com o próprio campo, outras vivências no mundo e processo de surgimento do autor enquanto parte da reflexão. Como as imagens de Kentridge, buscava com os relatos dizer algo mais do que eles mesmo. Considerando o flerte entre etnografia e literatura nesta escrita do mundo (Clifford, 1986), podemos considerar os relatos das vivências como uma espécie de “palavra morta” que circula tendo seu significado aberto a interpretações variadas (Raciere, 1995). Não têm um significado ou sentido óbvio. Criar um sentido antropológico para meus relatos etnográficos surgiu numa tentativa de tomar o máximo das rédeas deste processo de criação de sentido interpretativo, dar corpo (e parcialidade) de quem escreve. Assim, linhas de reflexão permitiram concatenar os relatos, dando continuidade analítica para a descontinuidade da experiência de campo, como no relato de Ademir com a discussão sobre o processo de desenvolvimento de Florianópolis. Ai os sentido antropológicos iam começando a tomar direção mais pontente para a sustentação da argumentação.

Um dos recursos principais desde os primórdios da antropologia para alçar novas articulações a partir da etnografia é a comparação. Neste caso, como já sugerido ao longo do texto, tomar a carona como objeto de pesquisa direciona a pensar sobre outros contextos urbanos que apresentam malhas viárias mais quadriculadas e menos favoráveis a esta prática do que a estrutura viária de Florianópolis. Assim, leva a refletir sobre outras formas de se locomover nas cidades, como num trasporte coletivo ou individual em que há uma sensação de maior controle e segurança, pois os itinerários e interações são, de certo modo, preestabelecidos. Num ônibus, por exemplo, os passageiros seguem um certo “trajeto burocrático” replicável a diferentes contextos para se deslocar: esperar no ponto, esticar o dedo, entrar, pagar a passagem, esperar, descer no ponto. As interações humanas, no transporte coletivo e individual, são, em geral, mediadas pelo dinheiro e pela propriedade (pagar passagem, gasolina, ter o carro), e, quando excedem este mínimo, não incidem diretamente sobre o cumprimento do trajeto. Chegamos ao destino conhecendo ou não novas pessoas, dando bom dia ou não para o frentista do posto. Neste caso, a realização do caminho se anuncia como um decalque de algo que já está preestabelecido, a agência (e capacidade de agência através do dinheiro) de quem se desloca dá a ilusão de ser o único motor de realização.

Era começo da tarde, fazia sol e eu pedia carona no trevo do Rio Tavares. Lugar movimentado, com posto de gasolina, supermercado, restaurante e variados comércios. Encontro de fluxos do Sul da Ilha e do Leste da Ilha que iam ou retornavam da região mais central da cidade, na margem Oeste da Ilha. Como de costume, pedia carona no recuo de entrada do posto de gasolina, pouco antes de uma parada de ônibus. Atento aos diferentes carros no intenso movimento, com o dedão esticado, escuto alguém me chamando. Viro na direção da parada de ônibus e uma senhora me acena. Vou me aproximando com olhos e dedo atentos à via. Com o intenso barulho, não entendo bem o que estava falando, penso se a minha mochila estaria aberta ou se já nos conhecíamos. Chegando próximo o suficiente, ela diz: “não precisa pegar carona. Pago tua a passagem”. Fico surpreso com a gentil oferta. Agradeço e, cordialmente, digo que tenho dinheiro e estava pegando carona por outros motivos. Não tinha tempo para me explicar melhor, o fluxo de carros e os compromissos não permitiam desviar o foco da rua. Pela sua expressão, ela parecia não entender bem por que preferia a carona. Eu estava negando uma gentileza, havia um ruído na nossa comunicação, um instante de suspensão e estranheza. Ela volta pra parada e eu logo pego uma carona. Como esperava pela dificuldade de locomoção sempre presente naquele trajeto, cheguei mais rápido do que se tivesse ido de ônibus.

Quando alguém se propõem a pegar ou dar carona, convive com situações sempre novas e incertas, em que ferramentas de sociabilidade são exercitadas reconhecendo a coparticipação e implicação das pessoas para chegar a algum lugar. Nos tornamos necessariamente alguém diferente de um mesmo passageiro, estudante ou trabalhador. Neste relato, demonstra-se como a etnografia de carona vaza da própria vivência da carona. Minha argumentação para esta situação foi na direção de perceber este ruído na comunicação pela escolha de me engajar no deslocamento através da negociação direta com outra pessoa, um momento em que teria de me tornar alguém com nome, opinião, formas de saudar e conversar. Assim, a intervenção desta senhora traz à tona que o mais certo e óbvio seria através da impessoalidade do dinheiro, e este motivo a fez realizar um contato para além do esperado, presumindo uma possível falta de dinheiro para realizar o deslocamento da forma “convencional”. Talvez, se tivesse também esperando o ônibus, nunca teríamos trocado palavras ou olhares mais prolongados. O que parece criar o ruído está nesta predisposição da carona enquanto prática de deslocamento (re)existindo na abertura das pessoas para criar e recriar rastros fugazes de movimento no espaço nos quais nos expomos em nossas diferenças e negociamos com outro a realização do deslocamento.

A maioria dos relatos que compuseram a minha dissertação forma colhidos antes de começar o mestrado, quando ainda era estudante de graduação e o tema da carona era parte de experimentações para trabalhos de disciplinas. A maneira na qual estes relatos foram concatenando uma continuidade emergiu de constantes revisitas ao caderno de campo enquanto as ideias iam se estabelecendo nas folhas em branco. Gostaria de trazer mais um relato em que a questão do dinheiro surgiu a partir de outra perspectiva, e no qual permitiu evidenciar a presença do autor enquanto imerso também nas significações que preenchem a carona.

Agosto de 2015, em torno de 15h e 30min, dia de sol. Estava no posto do trevo no Rio Tavares, mesmo trajeto do relato anterior. Com pouco tempo pedindo carona para um carro antigo, escort prata. Estavam no carro Fábio, o motorista manézinho do continente entre 40 e 50 e Jennifer, talvez com seus 18 a 25 anos, natural de Porto Alegre. Voltavam pra casa de um “serviço” com obras e reformas elétricas que realizavam na armação. Iam para o continente. A moça pouco falou, somente nas apresentações inciais. Podia ver sentado no banco de trás o porta malas cheio de ferramentas: caixas, cabos, martelo, serra elétrica de disco. Logo depois que agradeço a disposição, Fábio comenta como estava caro o preço da passagem do ônibus, que me sugeriu ser uma “motivação” para dar a carona. Comentei como achava interessante a prática de caronas também pelo contato que se estabelecia com as pessoas, conhecendo histórias e se ajudando. Isso o fez lembrar do tempo em que utilizava ônibus cotidianamente e fazia várias amizades com pessoas que encontrava, até comemoração de aniversário realizavam nos trajetos. Depois comentou sobre um rapaz que tinha dado carona no dia anterior, disse que era muito “gente boa” e se parecia comigo. Tentou descrevê-lo para ver se eu conhecia: traços finos no rosto, não muito alto, roupas largas, barba, loiro, cabelo grande… Não foi possível reconhecer, mas indica como este senhor vai reconhecendo certos “tipos” de pessoas, estilos de caroneiros. Comenta mais uma vez ao longo da conversa que carona era boa porque era mais barata. A carona foi rápida, me deixaram no pé do morro do pantanal e subo a pé até a universidade.

Este relato permite demonstrar o modo como tentei encontrar certos exiso de significação para concatenar o argumento. Na continuidade do anterior, está em torno da questão monetária, mas não tomado como uma presumida falta, e sim pela economia de recursos que poderia proporcionar. Ao longo do trabalho pude explorar, principalmente contrastando perspectivas de homens e mulheres, como a carona algumas vezes pode ser tomada num polo de significação idealista, vendo nesta forma de deslocar o germe de um projeto político de sociedade mais cooperativa e autônoma em relação ao Estado; e outras perspectivas mais pragmática dando ênfase aos riscos e violências (mesmo que sutis) presentes em grande parte das vivências femininas de carona. Esta carona me permitiu exibir o lugar em que eu, autor e pesquisador, sou capturado nas significações em torno desta prática, pois, enquanto Fábio reforçava a economia de dinheiro ao pegar carona, evidenciando o caráter bastante utilitário e pragmático da locomoção em si (afinal, sempre custa algo), eu tensionava sua perspectiva pelos encontros e experiências que se poderia ter — o polo mais idealista.

Minha autoria passava, por um lado, em articular os relatos descontínuos em eixos de significação que fora elegendo a partir do campo. Neste sentido, gostaria de argumentar que o reconhecimento da diversidade de experiências com a carona através da etnografia não inviabiliza certas reflexões mais gerais, mas as torna um lugar de chegada na composição da sequência na criação de “sentidos antropológicos”, nos quais poderiam ser percebidos por diferentes ângulos. Os eixos que fui elegendo foram: posicionamento parcial na carona, as particularidades deste cenário e seu desenvolvimento histórico (relato de Ademir), as justificativas e contingencialidades expressas pelos participantes, além das tensões e articulações com outras formas de deslocamento na cidade (Senhora da parada e Fábio). Assim, busquei pensar que não se tratava de um sentido último da carona, mas investigar como cada pessoa lida e significa a incerteza de realização do caminho (trajeto, tempo e encontro), a relação com o dinheiro, os riscos e a implicação pessoal carregando os efeitos das diferenças entre ser homem, mulher, jovem, velho, negro ou transexual para conseguir a carona.

Criar uma antropologia sobre caronas na minha experiência passou por uma imersão neste modo de se locomover, realizando eu mesmo as suspensões temporais participando dos campos de significados que a compõem enquanto experiência social. Foi nesta condição que, aos poucos, foram se densificando o modo de dar sentido ao conjunto de experiências e criar este “sentidos” da minha autoria enquanto antropólogo para estas vivências descontínuas. Retomando as provocações que iniciei o texto, numa de suas obras, Kentridge se apresenta num filme separando o artista fazendo o quadro e o artista observador crítico de como está se construindo a obra. Na entrevista “Como fazer sentido do mundo”, explicita sua intenção em mostrar esta separação que, apesar de parecer óbvia no estúdio, é algo que as pessoas realizam a todo momento, como quando escrevem. Realizar etnografia é estar imerso nas experiências, e, ao (re)observar as situações através do diário, abre-se a rica possibilidade de encontrarmos esta divisão na qual Kentredige se refere. Ao elaborar minha própria posição nos jogos das linhas de significação a partir do relato com Fábio, a intenção era exatamente chamar atenção a esta fabricação do sentido antropológico através dos relatos etnográficas das experiências de campo, evidenciando o lugar do autor e do pesquisador como parte do mundo enquanto condição de realização da escrita. Perceber-me dividido entre o caroneiro e o pesquisador, entre quem faz a etnográfia e quem dá o sentido antropólogico. Somos, afinal, parte do fazer do sentido antropólogico?

Neste texto, busquei trazer algumas particularidades que o campo com caronas me fez defrontar, exibindo as solução de uma escrita de relatos separados de uma argumentação mais analítica, reforçando o caráter de suspensão temporal, e acompanhado por fotos com o objetivo de trazem uma vivência estética desta urbanidade. Além disto, argumentei que estes relatos por si não apresentam significações ou interpretações autoevidentes. Pensar a ideia de sentidos antropológicos foi um tentativa de mostrar como articulei minhas experiências e reflexões coms debates mais amplos, com o esforço de de não fazer uma redução das diferentes perspectivas com as quais me deparei. O estabelecimento de linhas argumentativas e ideias que pudessem articular o argumenta evidenciaram o lugar autoria na escolha destes caminhos.

Referências

CLIFFORD, James. Introduction: Partial Truths. Writing Cultures.University of California Press
Berkeley and Los Angeles, California, University of California Press, Ltd. London, England. 1986. p. 1–27

ECKERT, Cornélia & ROCHA, Ana Luiza. Etnografia da duração nas cidades em suas consolidações temporais. Política e Trabalho — Revista de Ciências Sociais, n. 34 Abril de 2011 — p.107–126

RANCIERE, Jacques. Políticas da Escrita. Editora 34 (Coleção TRANS), Rio de Janeiro. 1995. p. 1–46

VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Zahar, Rio de janeiro, RJ. 1987

William Kentridge Interview: How We Make Sense of the World. Produzida por Christian Lund. 2014, 30:24 min. Acesso: https://www.youtube.com/watch?v=G11wOmxoJ6U

Willian Kentridge, A Documentary. Dirigido porAlex Gabassi. Produzido pela Associação Cultural Videobrasil: Publicado no Brasil pela Associação Cultural Videobrasil, 2000. 51:21 min
Reprodução de fala no segundo parágrafo: tempo 19:30–19:52. Minha tradução (imprecisa) de: “… In fac, the charcoal drawing is black and white, it’s much closer to writing than to painting. Instead of writing with a pen ones is sort of writing in short-term with images. And the images can always be at service of something other than themselves” Acesso em “ https://www.youtube.com/watch?v=Cs6GkV4SfWE&t=2513s

Todas as imagens foram feitas e montadas pelo autor.

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