O graffiti e a confissão do gesto

BIEV UFRGS
Livro do Etnógrafo
6 min readMay 6, 2018

Jose Luis Abalos Junior (Doutorando em Antropologia BIEV/PPGAS/UFRGS)

Basta andar algumas quadras pelas ruas do bairro Cidade Baixa na cidade de Porto Alegre/RS que percebemos inúmeras intervenções ligadas a tradição da pixação, do grafite e do novo muralismo urbano. Foi nesse cenário de múltiplas manifestações que encontrei o prédio onde vive o Jota Pê Pax, como se denomina Jonathan De Leon Peres, um dos grafiteiros com trabalhos mais vistos na capital gaúcha. Em uma manhã de sol, acompanhados pelo barulho de uma reforma no seu prédio, Jota Pê ofereceu-me um café e sentamos para conversar no segundo piso do seu apartamento. No local figuravam inúmeros quadros, latas de spray e livros, paisagem por mim já vista na moradia de outros artistas urbanos. Jota Pê relata seus momentos iniciais de formação na prática do desenho.

O debate sobre os primeiros contatos com o grafite passa pelo acesso as tecnologias de época, mas também sempre vem associado a outras questões como a geração, itinerários urbanos, formas de trabalho, etc. No caso de Celo Pax, um dos artistas urbanos mais reconhecidos atualmente em Porto Alegre, a dimensão da tecnologia é narrada pelo acesso a televisão e desenhos animados, e a posterior entrada no mercado de trabalho que lhe deu acesso à computadores.

Quando pequeno eu já copiava os desenhos de TV e comecei a copiar o que eu via na rua. Olhava os pixos, achava legal e copiava. Dava uma mudada nos que eu não achava legal. Então esse foi o meu primeiro contato. Acho que tudo começou com um gosto pelo desenho animado que veio a ser incrementado pelo que eu via na rua, cartaz, pichação, os poucos grafites… e dai eu fiquei bem intrigado com isso, de onde vem os desenhos na cidade? … Hoje eu viajo que, por ter personagem e muito elemento de desenho animado, eu acho que isso veio lá do começo de eu gostar desse lance lúdico do desenho…. Naquela época era tudo mais difícil. Não tinha internet, não tinha nada, nem telefone pra ti ter ideia. Não haviam facilidades. O que tinha era o parque pra encontrar alguém…Então foi num trabalho em uma gráfica que tive o primeiro acesso à internet. Quando comecei no computador eu tinha despilhado do grafite. Eu curtia e acompanhava, mas já não tava no tesão pelo bagulho.

Pax traz uma associação rotineira no diálogo com grafiteiros: a de como a inserção no mercado de trabalho e na internet podem afastar os artistas das ruas. Se encararmos intervenções urbanas como operações técnicas/figurativas veremos que elas acarretam em gestos que possuem repetição e intervalos regulares. Uma diferenciação interessante é a que Leroi-Gouran faz entre o ritmo técnico e o figurativo. O primeiro é associado as técnicas de fabricação, uma ação no espaço/tempo desumanizada, representante de uma crise do figuratismo. Já ritmo figurativo é mais próximo do que podemos relacionar com as práticas de intervenção urbana, pois aqui há uma preponderância da figuração sobre a técnica, no qual artistas urbanos se desafiam a reinventar estilos, tegs, instalações, etc. Segundo o autor o ritmo figurativo “cria e destrói desuses” (p. 114).

Em outro momento do acompanhamento etnográfico que realizei com Celo Pax em momentos em que interviu na cidade o artista falou-me de como muitos grafiteiros só foram reconhecidos depois de mortos. Se quisermos perseguir a lógica criadora de uma pesquisa que leve em conta o imaginário de artistas urbanos precisamos pensar no muro, na parede, nos postes, e outros espaços de intervenções como matérias terrestres que desafiam e intimidam a imaginação criadora de quem intervém na cidade. Celo Pax imaginou o adesivo (Stiker Art) no qual pudesse espalhar pela cidade dizendo que ele próprio estaria morto. Segue um pequeno trecho do diário de campo no qual reflito sobre essa questão na companhia do artista urbano.

Aproveitei um momento de descanso na sua pintura para perguntar a Celo Pax do sobre o adesivo “Celo Pax está morto” espalhado pela cidade nos últimos tempos. Semanas atrás eu mesmo caminhava pela cidade e fiquei surpreendido com a quantidade destes adesivos presentes na rua Venâncio Aires que liga a Oswaldo Aranha ao bairro Cidade Baixa. Seria algum adversário dos grafiteiros na ruas? Seria alguém que não gosta do trabalho deste grafiteiro e gostaria de gerar uma situação de conflito pelos espaços pintados na cidade? Se analisarmos bem o adesivo podemos perceber que ele foi feito com o mesmo modelo de letras que Celo produz em seus grafites. Quando fiz estas questões ao grafiteiro, o mesmo, entre risos, me disse que ele mesmo produzia e colocava os adesivos pela cidade. Segundo Celo “Só te elogiam quando está morto”. Logo estes adesivos seriam uma estratégia de reconhecimento do artista frente ao público admirador de arte urbana em Porto Alegre. A inspiração para este tipo de expressão visual na cidade, segundo Celo veio do filme que versa sobre a trajetória de vida de Basquiat. (Diário de Campo, 07 de Outubro de 2017)

A reflexão sobre o os gestos que acarretam uma perspectiva irradiante de conhecer a cidade é rica por demonstrar uma faceta mais microscópica do artista urbano. As formas de olhar paredes, muros, postes. As maneiras pelas quais o trabalho das mãos intervém na matéria terrestre da urbe. Enfim, a perfomatividade cotidiana que é a base de toda produção estética de arte urbana visualizada na cidade. Logo a imagem e a “câmera na mão” (Eckert&Rocha, 2013) como ferramenta metodológica de pesquisa nas metrópoles, é essencial para capitação visual dessa gestualidade do instante que leva artistas urbanos a terem a cidade como um desafio.

Para demonstrar as possibilidades de acompanhar etnograficamente os gestos de quem intervém na cidade, trago um ensaio visual que realizei junto ao grafiteiro Marcus Gorga na cidade de Porto Alegre. Como pensar na gestualidade inscrita no saber-fazer, na técnica adquirida por artistas urbanos, através de imagens? A obra final aqui é um elemento importante desse trajeto de produção artística na cidade, mas o entendimento imagético do seu processo é o que busco trazer.

Uma das motivações em apresentar este ensaio visual é que nas pesquisas sobre os gestos as imagens são muito importantes para dar uma dimensão do que se quer dizer. Talvez mais do que a modalidade das palavras, do texto escrito, possa acrescentar. O perseguir das gestualidades de pixadores(as), grafiteiros(as) e outros artistas do meio urbano nos inspiram pensar em como a antropologia contemporânea necessita de novas formas para escrita etnográfica.

Autoria: Jose Luis Abalos Junior

Um caminho instigante para pensar as intervenções artísticas contemporâneas é o que Gilbert Durand (1984) chamou de “trajeto antropológico do imaginário”: a gênese reciproca entre os gestos pulsionais e a matéria terrestre que se caracteriza de forma dialética. O gesto, a estética e a matéria vinculados num esforço de reflexão sobre um caminho etnográfico. Se entendermos a cidade como uma obra podemos vê-la dentro de um trajeto. Quem sabe assim entendemos tanto a beleza das intervenções, quanto a riqueza de quem têm as mãos sujas de tinta.

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