Figos portugueses em livrarias inglesas

Às vezes, basta o cheiro de um bolo para nos recordar os dias da infância. No meu caso, foi um pouco mais complicado: meteu ingleses à bulha no Algarve — e, no fim, ia morrendo. Vou contar.

Marco Neves
Livros e outras viagens
5 min readNov 2, 2021

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Os livros são perigosos

Tudo aconteceu em Cambridge, há uns anos, numa das viagens em que fui visitar o meu irmão Diogo, que anda por terras britânicas há mais de uma década.

É sabido que a Inglaterra é uma perdição no que toca às livrarias. Tropeçamos numa a cada esquina, a abarrotar de livros de todo o tamanho e feitio… Fico criança, a percorrer os dedos pelas lombadas, a apontar para aquele, a folhear este, a comprar aqueloutro.

O dia estava a correr bem. Andávamos todos pelas agradáveis ruas de Cambridge a viver aqueles momentos em família. Quando digo todos, digo muita gente: a minha mulher, o meu filho, o meu irmão, a mulher dele, a filha deles e os meus pais.

Mas a história ia acabando mal… E a culpa é do meu vício de não passar muito tempo sem entrar numa livraria.

Prometendo não demorar muito, deixei-os a passear e entrei num alfarrabista.

Entrei e respirei fundo.

Foi o meu primeiro erro.

Portugal à espreita

Pus-me a percorrer os corredores, a sentir o cheiro das páginas antigas.

A certa altura, os meus olhos repousaram num título em que um português repara inevitavelmente: They Went To Portugal. É um livro de Rose Macaulay, publicado em 1946, sobre os viajantes ingleses em Portugal.

Comecei a ler. Enquanto a minha família andava pelas ruas de Cambridge, deixei-me levar pelo relato dos cruzados ingleses que ajudaram a conquistar Lisboa aos Mouros, uma história cheio de sabores e cheiros e algum humor. As palavras de Macaulay baseavam-se no famosíssimo relato de Osberno — que, provavelmente, não se chamava Osberno, mas isso agora não interessa.

Fui folheando, mal sabendo o que me iria acontecer.

O dia em que os ingleses descobriram o Algarve

Deixei os minutos passar e as páginas voar. Cheguei ao relato do cerco de Silves de 1189, durante o reinado de Sancho I.

Silves aparecia como uma cidade paradisíaca, branca ao sol, repleta de jardins e belos templos, encimada por um castelo inexpugnável.

Sorri ao ler como a autora descrevia os desentendimentos entre ingleses e portugueses no Algarve: uns acusavam os outros de crueldade, enquanto estes diziam que os primeiros não faziam o esforço suficiente para derrotar o inimigo. Muitos séculos depois, quando uma infeliz menina desapareceu por aquelas bandas, ainda os ingleses e portugueses andavam às turras em termos não muito diferentes: uns eram pais cruéis, outros polícias que demoravam muito tempo a almoçar.

Adiante.

O cerco foi terrível e a vitória tipicamente violenta, o que desagradou ao rei português, que não queria tratar assim tão mal os seus novíssimos súbditos. Os cruzados ingleses — e de outras nações — não sentiam tais pruridos. Deixaram sair quem quisesse, mas foram despindo e insultando a procissão de derrotados, que se espalhou nas redondezas sem bens nem comida — muitos para morrer aos poucos, pelos campos, nus e sangrentos. Depois, os que ficaram foram torturados e a cidade saqueada.

Foi neste tétrico cenário que me apareceu uma madalena de Proust.

Entre mortes, torturas e violações, a autora descreve, a certa altura, como os ingleses se deixaram encantar pelos figos do Algarve, os maiores e mais doces da Europa, figos maduros a exalar um cheiro intenso, pendurados em deliciosas figueiras, pegajosas de tanto sumo. Por aqueles dias, o Algarve — diz-nos a autora — «estava sob um calor africano».

Sentir ali, naquela livraria de Cambridge, o cheiro aos figos portugueses ao sol transportou-me sem querer para velhos dias da minha infância, em que ia para a terra da minha avó Leonor e do meu avô Faustino apanhar figos para os comer, logo ali, debaixo de um calor intenso.

É verdade que não era no Algarve, mas sim no Ribatejo. Mas não importa. Aquele parágrafo lido ali em pé, num livro que encontrara ao acaso naquela livraria inglesa, trouxe-me como um murro a saborosa recordação do cheiro dos figos maduros, que me entrou pelas narinas e me fez respirar fundo de novo.

Foi o meu segundo erro.

O peixe-balão

Foi então que senti uma grande comichão no pescoço.

Alguma coisa não estava bem.

Paguei o livro e saí a correr. Comecei a transpirar e a achar que Inglaterra estava estranhamente quente. O calor subia-me pelo colarinho e, por momentos, confundi-o com a recordação do calor ribatejano da minha infância. Ou será que o cérebro me estava a transportar para aquele relato antigo de cruzados e mouros à bulha num Algarve a ferver?

Não sabia. Comecei a andar mais depressa, cada vez mais incomodado. A comichão invadia-me o corpo. Telefonei à Zélia a perguntar onde estavam.

Quando, por fim, a vi, acenei e ela começou a andar na minha direcção, com a cara cada vez mais preocupada. Quando chegou ao pé de mim, pôs a mão na boca — e, enfim, não conseguiu evitar dar uma gargalhada. Eu parecia, nas palavras dela, um peixe-balão.

Segundos depois, todos perceberam que não era caso para rir. Fomos a uma farmácia e lá me deram um anti-histamínico, que, mesmo assim, demorou bastante tempo a fazer efeito.

A verdade é esta: aqueles figos imaginários provocaram-me uma alergia tremenda. Nunca tal me tinha acontecido, mas percebi que folhear livros antigos tem o seu risco.

Os meus pais, ao verem-me inchado e de lábios roxos, já andavam à procura do número do hospital. Felizmente, uma lufada de ar fresco (coisa que não falta naquela ilha) pareceu dispersar a alergia.

Todos respirámos fundo (fora da livraria, não faz mal).

Contra aquilo que a prudência recomendaria, quando me vi de novo com a minha cara habitual e voltei a sentir o delicioso frio inglês, a primeira coisa que fiz foi voltar ao livro, para cheirar outra vez os figos da minha infância nas mãos de brutos ingleses — que por esses dias descobriam pela primeira vez as maravilhas do Algarve.

A alergia não voltou.

Já tinha contado esta história num crónica no Sapo 24. Entretanto, se quiser receber mais histórias de livros e outras viagens, inscreva-se abaixo. Muito obrigado!

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Marco Neves
Livros e outras viagens

Writer of non-fiction books on language and translation. Assistant Professor at NOVA University of Lisbon. Researcher at CETAPS.