Svetlana Aleksiévitch, a boa ouvinte

Catherine Kuehl
Entrelivros
Published in
3 min readJun 21, 2019

“Não sei do que falar… Da morte ou do amor? Ou é a mesma coisa? Do quê?”

Photo by Yasemin Atalay on Unsplash

Vozes de Tchernóbil (1997, lançado no Brasil pela Companhia das Letras) cita a morte — é impossível falar sobre o maior desastre atômico e não falar dela — mas é um livro principalmente sobre o amor. O primeiro relato é um dos mais sensíveis e tocantes do livro. Liudmila Ignátienko conta como seguiu o seu marido — um dos bombeiros chamados para conter o incêndio na central — até Moscou.

Mesmo proibida de se aproximar, cuidou dele quase 24 horas por dia, durante todo o mês em que o bombeiro esteve internado, tratando dos efeitos da radiação. Os funcionários do hospital tinham medo de chegar perto, mas ela continuou ao lado dele até o fim. Liudmila narra como o corpo se deformou e quase se dissolveu no leito hospitalar. Ela tinha então 23 anos e escondeu a gravidez para conseguir ficar ao lado do marido.

O livro contém monólogos de Nadiéjda Afanássievna Burakova, que escutou da filha ainda criança: “Se eu der a luz à uma aberração, apesar de tudo, ainda vou amá-la”; de Víktor Latun, que virou fotógrafo porque lhe faltaram palavras; de Vassíli Boríssovitch Nesterénko, o físico que tentou avisar as autoridades da gravidade do acidente (eles já sabiam, mas não informaram a população para evitar pânico); de Aleksandr Kudriáguin, liquidador, que se expôs à radiação com pouca proteção e por mais tempo do que o recomendado em troca de reconhecimento e prêmio em dinheiro.

Entre os muitos depoimentos, estão os de Larissa Z., mãe da Kátienka, que nasceu com aplasia em várias partes do corpo, incluindo vagina e ânus; de Zinaída Ievdokímovna Kovaliénka, que se recusou a sair de sua casa na zona proibida e viveu sozinha numa vila habitada por animais famintos; de Evguêni Aleksándrovitch Bróvkin, professor que lembra dos livros sobre Hiroshima e Nagasaki terem sumido da biblioteca alguns dias após o incêndio; do soldado que foi convocado para matar os animais das vilas e não teve coragem de contar para o filho a sua função.

A genialidade do livro está na sua simplicidade. A escritora fez o básico do trabalho de repórter: entrevistar. Como já dizia Gay Talese, ficar em silêncio e saber ouvir são as melhores virtudes de um bom repórter. Antes de ser uma boa escritora, Svetlana foi uma excelente ouvinte. Os textos são apenas citações diretas, são relatos costurados com habilidade, compondo uma grande manta de retalhos.

Svetlana iniciou esse estilo de contar grandes acontecimentos históricos a partir das lembranças de pessoas comuns em A Guerra não tem Rosto de Mulher (1985, lançado no Brasil pela Companhia das Letras). Nesse primeiro livro, até existe a fala da autora, no início de cada parágrafo, onde descreve como chegou até a entrevistada e suas percepções. Em Vozes de Tchernóbil, a presença da escritora, tirando uma autoentrevista, é praticamente nula e não faz falta. A estrutura como os relatos são organizados é mais do que suficiente para se entender o contexto e a história do desastre.

O foco, no entanto, não é o desastre nuclear, são as pessoas. É impactante ler que os soviéticos abriam mão da saúde e da vida por amor à sua nação. Tinham senso de dever, de que se não fossem eles a salvar aquela terra, ninguém mais o conseguiria. A vida era efêmera se comparada à continuidade de uma nação. O livro mostra como amar pode doer.

A dor das mulheres que perderam seus amados, dos casais que não puderam ter filhos, das meninas que ninguém queria namorar, por serem de Tchernóbil, as famílias que foram obrigadas a deixar seus lares na evacuações… Em contraste, as autoridades trataram o acidente como uma guerra, com o exército na rua, evacuações e segredos de Estado. Não é um livro para ser lido com presa. É pesado, triste, poético e necessário.

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