Resenha | As Boas Mulheres da China

Anna Clara Lôbo
Lôba no Covil
Published in
5 min readNov 5, 2018

Oi!

Séculos que eu não apareço com uma resenha literária, mas aqui estamos. E preparem o coração, porque essa é pesada, e eu não consideraria muito no bom sentido. E um alerta: se você não gosta de ler bastante, refletir sobre problemáticas e prefere uma leitura mais despojada, sugiro que vá para outras resenhas no blog. Hoje eu vim para falar (ou escrever) um pouquinho mais sério.

Eu não costumo resenhar obras passadas pela universidade já que sua maioria não interessa tanto os leitores (visto que são popularmente chatas, de cunho muito educativo, etc. O que não é o propósito do blog). Mas a necessidade de tornar esse livro mais conhecido se fez alarmante.

Título: As boas mulheres da China

Autor(a): Xinran

Gênero: Biografia

Número de páginas: 256 (edição de bolso).

As Boas Mulheres da China é um livro de gênero biográfico, escrito por Xinran, uma jornalista, radialista e escritora chinesa que decidiu contar suas experiências com mulheres entrevistadas ao longo dos anos em que trabalhou em um programa de rádio chamado “Palavras Na Brisa Noturna”, onde discutia assuntos que poucas pessoas conversavam e poderiam até mesmo serem considerados tabus. Como o livro permite, por ser baseado na vida da autora, eu posso perfeitamente contar a história do que estava acontecendo na época em que os eventos narrados ocorreram.

Entre 1989 e 1997, Xinran passou a entrevistar mulheres de diferentes classes sociais, personalidades, idades e histórias de vida para poder conhecer um pouco mais dos antepassados e dores que rondavam as chinesas. Ela começou ingênua, sem ter noção de como a China ainda era ultrapassada em diversos aspectos sociais para com a feminilidade, e foi percebendo a medida que o tempo passava e quanto mais conhecimento ela adquiria, onde a sociedade na qual estava inserida ainda contava com muito machismo e falta da informação necessária para a formação das mulheres não só como amadurecimento quanto informações completamente necessárias, ou o autoconhecimento.

Me surpreendeu em diversas vezes saber que, naquela época, poucas mulheres sabiam realmente como lidar com a sexualidade que aflorava nelas sem mesmo que tivessem a ideia do que era aquele novo sentimento. E como o simples fato de um abraço poder ser considerado um pecado de grande escala. Xinran achava que sabia o suficiente na época, mas até mesmo estudantes colegiais e universitárias entendiam mais como funcionava a sociedade e falavam abertamente sobre, deixando suas palavras liberais assustarem quem vinha de uma linhagem mais antiga. E isso ficou nos pensamentos da autora como uma nova era de jovens que poderiam vir para mudar um pouco o pensamento estabelecido.

Mas não é apenas nisso que eu quero focar ao resenhar essa história, mas no que aconteceu um pouquinho antes da atualidade que a radialista estava vivenciando. Voltando nos anos 60, mais especificamente 1966, onde se iniciava a Revolução Cultural na China, período de transformações políticas e sociais, que foi onde a maior parte das histórias relatadas pelas mulheres aconteceram. Mao Tsé-Tung, líder político da China no período em questão, estava insatisfeito com o seu próprio modelo de comunismo soviético e decidiu implantar a Revolução Cultural, que tinha quatro objetivos: “corrigir o rumo das políticas do PCC; substituir seus sucessores por líderes mais afinados com o que pensava; assegurar uma experiência revolucionária à juventude chinesa; e tornar menos elitistas os sistemas educacional, cultural e de saúde”.

Para realizar todas essas modificações, Mao se apoiou nos Guardas Vermelhos, onde recrutou jovens estudantes. Ouvindo as histórias das mulheres, Xinran descobriu barbáries realizadas por esses Guardas, que em momentos era possível observar em seus relatos que muitos estavam ali apenas para não serem massacrados pelo movimento de opressão (sim, considerei essa a palavra perfeita na maior parte do livro). Ouvindo as histórias, Xinran passou por narrativas que contavam com estupros, mortes, perdas de familiares próximos de formas brutais e nada agradáveis de serem lidas (eu terminava um capítulo quase com ânsia e medo de começar o próximo).

São muitos problemas que podem ser abordados durante a leitura, que não é rápida apesar do livro ter apenas 190 páginas. O machismo durante a época em que a Revolução acontecia chegava a ser absurdo, junto com a xenofobia contra estrangeiros, que eram considerados intelectuais pelos apoiadores do movimentos e humilhados em público, tirados de sua família e muitas vezes levados a loucura no sentido literal da palavra. Temos histórias de suicídio devido ao sofrimento passado durante anos, estupros que marcaram a memória de quem passou, violência contra quem não tinha um pingo de culpa e uma dose de muita dor acumulada com o passar dos anos. Tudo isso sendo narrado e relembrado por mulheres que vivenciaram e carregaram essas marcas profundas que não tem cura. E o mais incrível de tudo é a forma como Xinran contava as histórias na rádio, que gerou debate atrás de debate, fazendo seu programa se tornar um fenômeno discutido e ouvido em grande maioria pelo público feminino.

Ao final do livro temos o relato da experiência que deu final a carreira de Xinran, que mostrou como a humanidade tem níveis de simplicidade e ignorância que não passam pela nossa cabeça, muitas vezes sendo considerados absurdos. Mas as vezes nem tudo está em nossas mãos.

As Boas Mulheres da China trás uma carga de reflexão muito grande para o leitor. Tem uma frase que eu nunca vou esquecer de uma veterana enquanto me falava sobre a grande quantidade de livros que é passada durante o curso: “Muitos livros são chatos e você lê forçado, mas existem outros que mudaram minha vida”. E creio que esse seja um desses livros marcantes que acabam mudando nossa vida de alguma forma, acrescentando mais conhecimento sobre as tantas nações que existem pelo mundo, no qual nós não temos um pingo de noção de como suas histórias foram escritas e o que passou quem vivenciou essa escrita.

Forte, denso, consistente, quase sólido. Esse livro tem um peso de muitas vidas e trouxe uma energia diferente de tudo o que eu estava acostumada. Totalmente oposto as leituras que eu faço e estou acostumada, acabei cedendo a histórias verídicas e isso fica, por vezes e momentos aleatórios, voltando para a minha cabeça. Recomendo para os que tem uma curiosidade maior sobre descobrir as tantas verdades do mundo. Não posso afirmar que gostei tanto da leitura, mas a experiência de ter esse conhecimento adquirido tornou a mesma impossível de não terminar.

Leiam, descubram, reflitam.

E eu vejo vocês na próxima (com algo para descontrair).

“As amantes são peixes-espada: saborosas, mas com espinhas afinhadas. As ‘secretárias particulares’ são carpas: é preciso cozinhá-las em fogo lento para terem mais sabor. As esposas dos outros homens são baiacu japonês: pode matar, mas correr risco de morte é fonte de orgulho.”

“E as esposas deles mesmos?”

“São bacalhau salgado.”

“Bacalhau salgado? Por quê?”

“Porque o sal conserva por muito tempo. Quando não há outra comida, o bacalhau salgado é barato e conveniente, e, junto com arroz, da uma refeição…”

“A história da China é muito longa, mas faz muito pouco tempo que as mulheres têm a oportunidade de se tornar elas mesmas e que os homens começam a conhecê-las.”

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Anna Clara Lôbo
Lôba no Covil

Jornalista que se apaixonou pela área de experiência do usuário.