Sobre vivências trans no RS

Como ajudar na luta da comunidade trans em um país onde uma travesti é assassinada a cada 48 horas.

Jornalismo Local e Esportivo
Local e Esportivo 2020/1
5 min readJun 25, 2020

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Por Raphael Leites de Almeida

Logo da Igualdade RS: Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo (mais do que em países onde ser LGBT é punível com morte), apontam dados. Há mais de 20 anos a Igualdade RS surgiu para tentar mostrar que há uma luz para a comunidade transgênero do estado.

A prostituição, o preconceito e a luta por dignidade

Gráfico com os dados da Antra (Associação de Travestis e Transexuais) sobre o assassinado de pessoas transgênero no Brasil em 2018, 2019 e no primeiro quadrimestre de 2020.

“Nós, lá no começo da Igualdade, sabíamos que a população trans estava morrendo”, fala Marcelly Malta, presidenta da Igualdade RS: Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, mas, infelizmente, tal fala não é um recorte de uma época. Segundo dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), apenas de janeiro a abril de 2020 foram 64 assassinatos de pessoas transgênero no Brasil. Uma pesquisa feita pela Ong europeia Transgender Europe (TGEu) afirma que nosso país mata mais travestis e transexuais do que em países onde ser LGBTQIA+ é considerado crime, embora a Ong afirme que os dados não são computados de maneira correta nesses países, com travestis assassinadas sendo chamadas de “Homens com roupas de mulher” e etc, assim não entrando nem mesmo para as estatísticas.

A transfobia também não se limita à rua e muitas pessoas transgênero sofrem dentro de suas próprias casas. A psicóloga Fernanda Alcoba, com formação em Psicologia Clínica Junguiana, terapia sistêmica, arteterapia e experiência somática, diz que todos os seus pacientes LGBTQIA+ carregam um grande sofrimento por causa desse preconceito familiar. “Todos se sentem diferentes desde pequenos e a família sempre reage a isso, geralmente de maneira negativa.”

Dados obtidos por pesquisas feitas pela Igualdade RS afirmam que 96% das travestis de Porto Alegre realizam programas pelas ruas da capital. A principal fonte de renda dessa população (a prostituição), segundo Marcelly, também é marginalizada. “Ninguém vai contratar uma travesti para ser babá de seu filho ou para fazer a faxina de sua casa. Para muitas pessoas, a travesti só serve para a prostituição.”

A presidenta da Ong afirma que emprego e educação são as chaves para acabar com a desigualdade presenciada pela população transgênero. “Eu já viajei o Brasil inteiro e vi crianças travestis de oito, nove anos na prostituição e eu não quero mais ver isso. Não quero ver travestis se prostituindo por necessidade.”

Ivan Pinto, psicológo, afirma que as profissionais do sexo precisam de proteção. “A prostituição precisa ser vista como uma profissão para que ela tenha um maior amparo legal do estado.”

“Porém, ainda há o que comemorar”, diz Marcelly, se referindo aos direitos que a comunidade LGBTQIA+ alcançou nas últimas décadas de luta. Podemos citar a alteração de nome e sexo no Registro Cívil (direito voltado à comunidade trans, mais especificamente) e a criminalização da LGBTfobia (a enquadrando na lei que criminaliza o racismo), além da recente derrubada da restrição que impedia qualquer homem que tivesse tido alguma relação sexual com outro homem nos 12 meses antecedentes à retirada do sangue, de fazer a doação do mesmo. É importante saber que todos esses direitos foram garantidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e por isso ainda podem ser revogados.

25 de Maio de 1999 — O surgimento da associação

A presidenta da Igualdade RS, Marcelly Malta, conta que antes da fundação da ong, as reuniões aconteciam no Grupo de Apoio à prevenção da Aids (Gapa). “[O grupo] tinha em torno de cinquenta travestis, mas a gente só discutia camisinhas, HIV e remédios, então um dia chegamos em um senso comum.”

O objetivo da associação sempre foi, segundo Marcelly, falar pela população trans que não se sentia representada de maneira apropriada e não se enxergava em quem falava por ela na época.

“A gente tem que falar sobre transexualidade, população LGBT, prostituição… Se ninguém falasse, quando que iríamos fazer uma ação como a que estamos fazendo agora?”, questiona a presidenta se referindo à ação de entrega de cestas básicas para a população trans carente da Grande Porto Alegre, que ainda será abordada no fechamento desta matéria.

Fernanda Alcoba afirma que ainda hoje, o que é considerado normal é a heteronormatividade. “A gente está começando a abrir espaço para outras orientações sexuais e identidades de gênero, mas isso ainda não é visto como normal na nossa sociedade.”

Em tempos de covid-19

Imagem de divulgação da campanha retirada do Facebook da Igualdade RS — https://www.facebook.com/AIgualdade/

Durante a pandemia causada pelo coronavírus, a Igualdade RS desenvolveu uma ação para auxiliar transexuais e travestis que passam por necessidades através da doação de cestas-básicas. As entregas acontecem às quartas-feiras, das 14 às 16 horas, e quem for fazer a retirada deve confirmar antecipadamente por um dos números de celular que aparecem na imagem acima. A Ong diz que é necessário informar o nome completo e o CPF de quem for retirar as cestas porque todos os alimentos são obtidos por meio de doações e essa é uma forma de comprovar o que é feito com o que é recebido.

Marcelly ainda afirma que, em média, um cesta-básica dura um mês quando utilizada por uma pessoa, mas mesmo assim a retirada é feita de forma quinzenal. “Como nós sabemos que, em muitos casos, várias travestis vão dividir a mesma cesta, permitimos que uma pessoa pegue uma cesta a cada 15 dias, ou seja, quem for pegar a cesta hoje (29 de abril, quarta-feira em que a entrevista foi feita), não pega na próxima semana.”

Foto da entrega de cestas básicas no dia 29 de abril. Da esquerda para a direita: Bianca Voguel, Bruna Torres, Marcelly Malta e Simone Avila.

“Estamos sempre na linha de fuzilamento. Sempre na linha de frente de tudo”, lamenta Marcelly em uma reflexão sobre os problemas trazidos pela covid-19 à comunidade trans. Segundo a presidenta da associação, a pandemia afeta principalmente na parte do trabalho. Ela diz que muitos e muitas profissionais do sexo que são cisgênero (pessoas que se identificam com o gênero designado a elas no nascimento, ou seja, que não são transgênero), ainda conseguem fazer trabalhos por fora. “Ninguém contrata quem é trans e a pandemia ainda tirou nossa principal forma de ganhar a vida”, continua Marcelly. “A população trans precisa disso.”

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