O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade?

Caroline Kayatt
Loft
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11 min readJan 27, 2022

Este artigo mostra dados atuais relacionados ao mercado de trabalho, neurociência e maternidade, criando um paralelo com a comunidade de design. Apresenta também, uma pesquisa realizada com a participação de profissionais do design que são mães, contribuindo para a embasar e ajudar a entender o contexto, desafios e as dinâmicas necessárias para orquestrar a profissão e o maternar.

Convido você a refletir comigo sobre o tema e adianto que nenhuma nova visão de futuro é construída na mesma rotina de sempre.

Design, neurociência e experiência do usuário

Imagem conceitual de um cérebro.
Foto: Unplash — Alina Grubnyak

Já temos gigantes da tecnologia como Google e Facebook investindo em técnicas baseadas na neurociência para estudar como as pessoas usam seus produtos. Os benefícios são muitos, inclusive, relacionados a rentabilidade que podem trazer para os negócios. O curioso, ao menos pra mim, é que pouco se fala sobre neurociência nas conversas relacionadas a diversidade e comportamento na comunidade design. Destaco aqui, profissionais designers e o pitoresco acontecimento cerebral que envolve a maternidade.

Entendendo (um pouco) nosso cérebro preguiçoso e tendencioso

Imagine nosso cérebro como um painel interativo, igual no filme da Pixar — Divertida Mente, que faz múltiplas conexões, todas as vezes que a gente pensa, sente ou faz alguma coisa. O que acontece, é que algumas dessas conexões são simples e tendem a estabilizar e se repetir. É como não gostar de fazer exercícios, nosso cérebro simplifica conexões e cria padrões. Então, vamos pensar em algo diferente. Por exemplo, iniciar uma atividade física, como correr no parque. Cria-se uma nova conexão e o nosso cérebro passa a utilizar mais esse padrão até se tornar uma sequência natural, um hábito. Ao utilizar menos e menos o outro caminho, nosso cérebro adota a mudança permanentemente. Essas substituições são a neuroplasticidade em ação e todos nós temos essa capacidade.

Mas porque estou escrevendo tudo isso? E o contexto de mães designers? Vou te contar.

O estereótipo equivocado de “Mommy’s Brain”

Bebê sorrindo e deitado sob uma toalha de piscina.
Foto: arquivo pessoal

Quantas vezes já assistimos em filmes, séries ou até mesmo presenciamos em conversas com familiares e amigos, brincadeiras relacionadas à memória de uma grávida?

Pesquisas mostram que o cérebro de uma mulher pode mudar mais rápido durante a gravidez e o período pós parto do que em qualquer outro momento de sua vida. Essas alterações recebem o nome de mommy ‘s brain e estão relacionadas, superficialmente, a esquecimentos e mudanças de humor.

Entra a neuroplasticidade.

Um estudo publicado na Nature Neuroscience (2017), mostra que as alterações cerebrais são consistentes em todas as novas mães, mesmo com experiências de vida diferentes.

A perda de memória, relacionada de forma equivocada a um prejuízo, na verdade é um fenômeno de repriorização, que elimina conexões entre células cerebrais para incentivar a facilitação de novas conexões. Futuras mães esquecem aniversários, encontros e afins, porque seus cérebros estão as ajudando a se concentrarem em atividades específicas — nesse caso, cuidar de uma criança. E aqui, não poderia usar uma frase menos piegas — a natureza é perfeita!

Focar no cérebro materno poderia nos ensinar mais sobre flexibilidade comportamental, é o que apontam os estudos realizados pela Dra. Jodi Pawluski, Ph.D da universidade de Rennes, na França (2015).

A maternidade desenvolve novas habilidades na mulher e particularmente, concordo muito na forma como descreve Luciana Cattony, cofundadora da Maternidade nas Empresas, em seu TEDx, quando cita que essas novas habilidades tem tudo a ver com os soft skills tão procurados pelo mercado de trabalho, segundo dados divulgados pelo Linkedin (2021): capacidade de resolver problemas, pensamento crítico, inovação, criatividade e comunicação.

Mães que me lêem, parece familiar? Pensem na rotina de cuidar dos filhos e o concílio com a profissão.

Precisamos sair do automático e quebrar esses padrões

Uma mãe segurando sua filha no colo.
Foto: arquivo pessoal

Sabemos que todos nós somos afetados direta ou indiretamente pelo período atípico que vivemos em decorrência da pandemia do COVID-19. Foi, e arrisco dizer que ainda é, uma fase de transformações profundas em nossa rotina profissional, na forma como nos relacionamos, nos nossos hábitos de consumo, nas interações e entretenimento humano. Fomos invadidos por uma avalanche tecnológica que acelerou ainda mais processos e serviços digitais. Em meio a esse contexto de transformações é notória e inegável a fragilidade de grupos mais vulneráveis. Pois é, mamães, estamos nesse grupo.

Um estudo de estatística de gênero (IBGE 2021) mostra que 46% das mães que têm filhos de até 3 anos estão fora do mercado de trabalho. Somente 10,8% dos homens com filhos pequenos estão desempregados.

Outro estudo da FGV aponta que em até 12 meses depois que retornam da licença maternidade 48% acabam saindo de seus trabalhos, por escolha pessoal ou porque foram desligadas.

Pesquisas indicam que, no começo de 2020 (Pnad COVID 2020), a diferença das taxas de desemprego entre homens e mulheres era de 27%. Seis meses depois, essa diferença quase duplicou, atingindo 43%. Ou seja, temos menos mulheres no mercado de trabalho, muito provavelmente em decorrência da pandemia.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) identifica que as mulheres são responsáveis por três quartos de todo o trabalho não remunerado. Reflexo da dupla e muitas vezes tripla jornada assumida por muitas de nós.

O design é plural

Dialogar e praticar iniciativas relacionadas ao coletivo, seja na disciplina de design, na construção de um produto ou em nossa comunidade, tem se tornado cada vez mais relevante e comum — que bom!

O design que construímos em nosso dia a dia busca entregar soluções e produtos para um Brasil imenso e diverso. É resultado do trabalho de muitas pessoas, cada uma delas com seu repertório, experiências e particularidades. Precisamos ser plurais para pensar e criar contemplando a diversidade.

O mercado e a profissional do design após a maternidade

Na tentativa de produzir um conteúdo real sobre a comunidade de design e com mínimo de profundidade, apresento o diagnóstico de uma pesquisa que contou com 60 respondentes, profissionais do design e mães, de diversas regiões do Brasil, em diferentes cargos e áreas de atuação. Os dados foram coletados entre os dias 22/11/2021 e 29/11/2021 em um formulário criado na ferramenta Google Forms. O formulário foi divulgado em redes sociais e no grupo de WhatsApp Ladies that UX Moms. O panorama representou expressivos resultados relacionados à saúde mental, sobrecarga e percepções sobre o mercado e nossa comunidade.

Entre todas as respondentes, 66,1% têm idade superior a 30 anos e mais da metade têm mais de 10 anos de profissão. 71,1% dessas designers mães têm somente 1 filho, sendo que 64% dessas crianças têm menos de 5 anos de idade. O cenário pandêmico e a aceleração tecnológica dos últimos anos é representada nesse contexto também. Podemos observar que a maioria dessas profissionais estão atuando em produto e no modelo de trabalho home office.

Embora a grande maioria considere que tem uma rede de apoio, 65% das respondentes não acreditam que exista uma dinâmica igualitária de cuidado entre os responsáveis e a criança. Quando perguntadas se após a maternidade houve mudanças em relação às suas perspectivas profissionais, expressões como pausa na evolução profissional, falta de tempo, cobrança pessoal, busca e valorização de trabalhos flexíveis e empresas que acolham a maternidade, tomou conta dos depoimentos. Positivamente, surgiram relatos de que após períodos de conflito em relação às suas aptidões profissionais, se sentem profissionais melhores depois de se tornarem mães.

Confesso que, ao realizar o cruzamento desses dados, alguns momentos foram de muita empatia e comoção. Não me surpreende que pesquisas generalistas do mercado relacionadas à equidade de gênero no Brasil, sejam condizentes com os achados dessa pesquisa.

Mesmo que o recorte tenha sido menor, é importante impulsionar as iniciativas positivas em relação ao tema. Surgiram relatos positivos sobre a existência de grupos de mães, palestras sobre saúde da mulher, auxílio creche, plano de saúde com extensão aos dependentes, flexibilidade na jornada de trabalho, licença maternidade e paternidade igualitária.

“ A empresa disponibilizou um programa de auxílio materno, através de um aplicativo onde podemos tirar dúvidas sobre assuntos de saúde e cuidados na maternidade. Houveram algumas palestras on-line tb. ”

Depoimento de uma respondente — O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade? 2021

“ Licença de 6 meses. Horário flexível para cada um se adaptar a rotina e entregas. ”

Depoimento de uma respondente — O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade? 2021

“ Na minha empresa anterior eu participava de um grupo de apoio à mães. Foi muito bom, por poder ver que as questões que eu estava enfrentando outras mães também tinham. É muito bom ter um espaço aberto para troca de experiências. Na minha empresa atual, temos muito apoio para pais em forma de benefícios, o que ajuda muito também. Auxílio escolar, auxílio nutrição infantil, material escolar, plano de saúde gratuito para dependentes. ”

Depoimento de uma respondente — O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade? 2021

A boa notícia é que mesmo muito afetadas, 70,5% dessas profissionais agora se sentem melhor emocionalmente. Faço um paralelo e destaco a abertura das escolas, a flexibilização das restrições sociais e espaços de entretenimento. Ou seja, a rede de apoio volta a fazer parte dessa dinâmica.

Já pararam para pensar no efeito de tudo isso?

Talvez, encarar com naturalidade o cuidado com os filhos possa ser um primeiro passo para que as empresas criem sua cultura sem uma visão míope sobre a maternidade — que deve ser um papel de todos.

Concluo que na trajetória das conquistas, há sentimentos que ninguém fala.

Depoimentos de algumas respondentes ‍

“ A maternidade ainda é invisível em quase todos os âmbitos da sociedade. No mercado criativo não é diferente. Apenas ser mãe já traz uma série de skills pra vida da mulher — no entanto a maternidade é vista muitas vezes ou como um impeditivo no trabalho ou como uma missão sagrada que a mulher precisa cumprir. Há dois lados na maternidade — um que até casa bem com os comerciais de margarina, que é o amor enorme que a gente tem pelos filhos, a delícia da convivência, do aprendizado. Mas há outro lado que é um trabalho, e um trabalho bem pesado, que é necessário para que a criança tenha o que precisa. Só que se mistura esse trabalho com todo esse discurso de amor. O resultado disso são mulheres sobrecarregadas, pouco aproveitadas no mercado de trabalho e frustradas. Essa parte do trabalho pode ser dividida de várias formas para que todos os adultos envolvidos na criação da criança tenham tempo de qualidade para si, para seu trabalho, para um relacionamento (se desejar) e para os filhos.
“É preciso uma vila para educar uma criança” — esse ditado é muito certeiro. ”

Depoimento de uma respondente — O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade? 2021

“ Houve situações na pandemia, principalmente em 2020, em que eu sentia que ninguém entendia o que eu estava passando. Eu tentando trabalhar enquanto cozinhava feijão e os jovens reclamando que o bar estava fechado, sabe? Parecia que trabalhar com a minha filha no colo era divertido e engraçado, mas no fundo era um misto de medo de covid, medo de não conseguir entregar as coisas e cansaço extremo, por não ver um fim do isolamento. :( Hoje eu tenho uma equipe muito tranquila e uma chefe que me acolhe e tenta entender o que eu tô pensando, inclusive me incentivando a descansar, haha. De qualquer forma, ainda sinto falta de falar mais de mães como grupo de diversidade, para pensar ativamente na presença de mães na equipe e na liderança. Eu me considero muito privilegiada, porque apesar de não ter rede de apoio, eu tenho dinheiro e estabilidade e uma empresa tranquila. Mas, ainda assim, ter filho afeta muito o meu trabalho. Para outras mães eu imagino que deve ser ainda mais difícil. ”

Depoimento de uma respondente — O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade? 2021

“ Sinto que o mercado não fala de Mães que migraram, Mães que estudam UX, trabalham e cuidam dos filhos. Da carga mental que as Mães levam além de buscar o seu lugar no mercado de trabalho. Como é possível em 24h uma Mãe cuidar da casa, dos filhos, estudar, trabalhar, montar portfólio, postar linkedin, fazer exercícios, comer e dormir? É tipo tudo demais…demais para carregarmos sozinha e grupos e lives ajudam muito. Gostaria de participar mais. ”

Depoimento de uma respondente — O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade? 2021

“ A cabeça da mulher muda muito quando se torna mãe, antigamente eu almejava cargos de gerência e ter um destaque e reconhecimento, mas não sei se com as redes sociais todo mundo querendo mostrar o seu brilho e as empresas querendo mais e mais me sinto sufocada e um lixo como funcionária e às vezes até como mãe… Ano passado no primeiro semestre tive que escutar de um dos diretores que tenho que “ser grata por ter um emprego durante a pandemia, pq tem muita pessoa desempregada”, só que todos os dias eu estava trabalhando das 8h até as 22h…muitas vezes até aos sábados para dar conta da demanda da empresa que triplicou e deixando de lado meu filho! Tive burnout…a situação só começou a melhorar em julho desse ano que graças a uma indicação de emprego eu consegui mudar! Vejo que muitas mães se sentem prejudicadas na hora de buscar um emprego e o filho é visto como um peso para as empresas mesmo se a candidata preenche todos os requisitos. ”

Depoimento de uma respondente — O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade? 2021

Agradecimentos

Em especial, Elisa Volpato e Huxley Dias por me incentivarem e me apoiarem a escrever sobre esse tema.

Referências

Design psychology and the neuroscience behind awesome UX — Medium, 2020

This is your brain on Motherhood — Nytimes.com, 2020

Pregnancy leads to long-lasting changes in human brain structure — Nature.com, 2017

Neuroplasticity in the maternal hippocampus: Relation to cognition and effects of repeated stress — Jodi L. Pawluski, 2015

Qual o real motivo de não se contratar uma mãe? — TEDx Talks — Luciana Cattony, 2021

7 softs skills que todo profissional precisa ter — InfoMoney, 2021

Empathy is the most important leadership skill according to research — Forbes, 2021

Mulheres perdem o trabalho após terem filho — FGV, 2016

O poder da vulnerabilidade — TEDx Talks — Brene Brown, 2010

Originally published at https://www.design2022.com.br.

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