O observatório

Lisandra Steffen
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Eu tento ficar em casa o máximo possível. Sair, só quando necessário. Durante o isolamento social, comecei novos hobbies. Um deles, talvez o mais incomum, é observar a vida lá fora, pela minha janela. Às vezes, enquanto faço isso, lembro de uma antiga vizinha. Ela passava o dia sentada na frente de casa. Ela era a central de notícias e fofocas da rua. Divórcios, assaltos, brigas, acidentes. Ela sempre era a primeira a saber. A dona Elita observava a rua de um local privilegiado, uma vez que a casa dela ficava em um terreno mais alto. Ela fazia isso em público, mostrava à todos que estava observando. Eu, me escondo.

É da janela que vejo as pessoas na rua — as que usam máscara e as que não. É, também, aqui que reflito sobre o significado de confinamento. O isolamento social não é, somente, uma escolha. Se trata de privilégio. Entre uma ou outra atividade, a maior vantagem de ficar em casa é ir até a janela. Acredito que a quarentena deixou todos mais pensativos. Alguns, até mais produtivos.

Certa vez, escutei a história da criação dA Noite Estrelada, de Vincent van Gogh. Em 1889, o artista estava em um hospital psiquiátrico, recuperando a saúde mental e a orelha recentemente amputada. O quadro, talvez o mais famoso do pintor, foi a visão que van Gogh tinha de uma de suas janelas. Em uma carta para o irmão, Theo, o artista explicava que ele não sabia nada com certeza, mas que olhar as estrelas sempre o faziam sonhar.

Olho pela janela, para as pessoas e para o céu, e me questiono. Muito mais do que isso, me pressiono. Será que eu, também, não deveria usar do meu isolamento — este, muito diferente do de van Gogh — para produzir? Acredito que essa pergunta passe pela cabeça de muitos de nós. Por mais que fisicamente distantes, algumas pessoas se aproximaram durante esse novo tempo. E cada uma delas têm sua luta interna. Produzir mais, ter mais tempo para o lazer, ser mais organizado, aprender receitas novas… Tudo isso, mais a situação atípica e sem perspectiva de melhora, acaba se tornando um empecilho.

Diferente de van Gogh, eu não encontro inspiração da minha janela. Aquele momento do meu dia significa uma pausa. Uma pausa na produtividade — ou na falta dela. No isolamento, tudo acontece no mesmo lugar: o trabalho, o estudo, o lazer, as tarefas domésticas. Às vezes, é difícil achar um tempo ocioso. E ele é muito necessário. Acho que a principal atividade para o fim destes três meses de quarentena é encontrar o tempo para o nada. Reorganizar a rotina e parar. Talvez, esse deva ser o aprendizado que fica, quando isso tudo passar. Porque, um dia, vai passar. E o que vamos ter tirado disso tudo?

A Dona Elita, aquela minha vizinha do início desse texto, já não mora mais na minha rua. Hoje, ela observa outras vidas. Outro cotidiano. Mas ela permanece na memória de cada um dos meus vizinhos. Às vezes, ao dividir calçadas ou a fila do mercado, compartilhamos algumas de suas histórias. A figura dela, sentada na frente de casa, é a linha invisível que une as vidas daquela rua. Talvez, o nada seja o que de mais relevante possamos fazer. Talvez, seja por ele que seremos reconhecidos.

Texto feito, originalmente, para a disciplina de Jornalismo Opinativo, no primeiro semestre de 2020.

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Lisandra Steffen
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Às vezes, tiro fotos de passarinhos e escrevo (sobre outras coisas). Gosto muito de usar vírgulas (e parênteses).