Algumas lições práticas sobre coisas que a faculdade de medicina não te ensina

Luana Reis
Releituras da Vida
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5 min readMay 16, 2021

Essa semana fui chamada à casa de um paciente, para uma consulta domiciliar, tratava-se de um caso complicado.

A irmã do paciente veio ao posto de saúde, aflita, relatando que seu irmão não estava aceitando, de forma nenhuma, receber sua medicação injetável para controle dos seus delírios e alucinações. Sim, era um paciente esquizofrênico. Estava agitado, assustado, agressivo, falava das vozes na sua cabeça e o que elas diziam: “Eles vão dar uma surra em você!”

Bem, não é uma função do posto de saúde ir à casa de um paciente psiquiátrico para aplicar medicação. Especialmente, se for necessário o uso de força ou contenção. Esse não é nosso papel. Mas como médica da atenção primária, acostumada com falhas no sistema e falta de recursos em diversos contextos, fui convidada a contribuir e decidi me comprometer a tentar.

No dia anterior, a família já havia solicitado a presença do SAMU e da polícia, porém, houve desencontro entre essas duas entidades e não conseguiram solucionar a situação.

Foi então que, em conjunto com a psicóloga do posto, decidimos o seguinte: iríamos a casa do paciente para dialogar com ele, se ele topasse receber a medicação de bom grado, a técnica de enfermagem faria a aplicação. Caso contrário, tentaríamos com o SAMU novamente, para que o paciente fosse levado ao CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).

Demos início ao plano. Solicitei, inclusive, que o motorista do carro da prefeitura entrasse na casa conosco, caso o paciente ficasse imprevisivelmente agressivo e precisássemos de algum suporte.

Logo ao entrar na casa, estavam alguns familiares, que acredito ser a irmã, o seu esposo e seu filho. Além do paciente, que estava sentado no sofá, com um olhar vago, uma face pouco expressiva, tendendo a apatia.

Nesse momento, tudo que consegui fazer foi uma oração breve em minha mente, solicitando orientação e intuição naquela situação, para que eu conseguisse atuar da melhor maneira possível.

Para minha sorte, que fiquei um pouco tensa e quase perdida no princípio, a psicólogo deu a primeira palavra, iniciando o diálogo com o paciente, tentando conquistar quem sabe, sua confiança.

Enquanto ela perguntava como ele estava, e ele falava do seu delírio, do conteúdo das vozes em sua cabeça, me lembrei das aulas de psiquiatria na faculdade — certamente eram das minhas preferidas — e um professor que eu muito apreciava dizia:

“O paciente delirante é convicto do seu delírio. Não tente remover essa ideia, apenas irá irritá-lo. Você deve tentar jogar com o jogo dele. Você não precisa rebater a ideia, dizendo que aquilo não é verdade ou que nunca irá acontecer, isso seria infrutífero. Use a própria ideia dele a seu favor.”

Pensando nisso, foi assim que tentei “começar pelas beiradas”. Primeiro me apresentei como médica, disse que iria examiná-lo. Tentei perguntar da sua alimentação, do seu sono e dos outros medicamentos que ele estava tomando. Aos poucos ele foi deixando eu me aproximar mais. Não apenas física, mas emocionalmente.

A psicóloga caminhava comigo, na mesma direção, fizemos uma boa equipe.

Até que chegou o momento ideal. A técnica já estava presente com a medicação preparada para ser injetada.

“Olha só a moça bonita que trouxemos para lhe aplicar essa medicação. São algumas vitaminas, vão te fazer bem, vão te deixar mais forte. Você não tá comendo direitinho, não é mesmo? Pode confiar, você vai ficar melhor.”

Ele já estava bastante cooperativo nesse momento. Ele então levantou e nos fez até rir, decidindo por receber a medicação ali mesmo, no meio da sala, e já começou a descer seu short para receber a injeção em uma das nádegas.

“Impressionante!” — pensei comigo. Outros profissionais haviam estado lá e tentado uma abordagem mais invasiva e não havia funcionado bem. Quando eu cheguei lá, eu mesma não estava muito otimista. Mas, simplesmente deu certo. Eu não tenho quase nenhuma experiência nesse tipo de situação, mas uma coisa eu sentia: se for dar certo, será de uma forma amistosa e afetuosa.

Não pude deixar de aproveitar o momento para parabenizar o paciente:

“Parabéns! Estou muito orgulhosa de você! Você vai deixar a gente cuidar da sua saúde?”

Ele assentiu com a cabeça, já apresentando um pouco mais de expressividade.

“Então eu vou voltar aqui mais vezes, tudo bem?”

Ele sorriu e respondeu:

“Pode voltar… pode voltar…mas da próxima vez, não precisa desse tanto, vocês podem vir em menor número… não precisa de encher aqui assim…”

Rimos juntos, todos os presentes. Estávamos simplesmente radiantes com aquela missão inusitada cumprida.

“De onde se tira esses aprendizados?” — me perguntei em pensamento. “Certamente, não da faculdade. Ok, um pouco da faculdade. Mas a vida, os aprendizados da vida, esses sim… são indispensáveis”.

Eu pelo menos acredito, de algum modo, que todos nós caminhamos em alguma linha tênue entre a loucura e a sanidade. Alguns mais para cá, outros mais para lá. Mas somos todos humanos, tão humanos. Tão perfeitamente imperfeitos. Peculiares. Únicos. Assim somos.

Não tenho a pretensão de estender uma generalização irreal, pois sei que existem diversos contextos, mas…um lado otimista em meu coração me diz, com toda força, que todos somos dignos de afeto, acolhimento e compreensão. E foi com esse pensamento que entrei naquela visita domiciliar.

Por isso que não consigo pensar em melhor forma de concluir essa ideia do que citando Carl Jung:

“Só aquilo que somos tem o verdadeiro poder de curar.”

“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.”

Bem, isso são apenas algumas reflexões baseadas em minhas vivências. E você? O que pensa sobre?
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Luana Reis
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Releituras da vida. A arte da busca pelo equilíbrio entre o que importa e o que é necessário.