No esforço de ser cuidador… quem ajuda quem?

Uma outra perspectiva sobre a arte de cuidar.

Luana Reis
Releituras da Vida
9 min readSep 1, 2019

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No início deste ano de 2019, durante o 10º período do curso de Medicina, eu estava no internato de cirurgia, acompanhando a enfermaria do Hospital das Clínicas.

Nostalgicamente, pude notar quantos aprendizados, experiências, lições e pacientes já haviam se passado até ali, desde as primeiras anamneses (entrevista médica), no 4º período do curso.

Não há dúvidas! Alguns pacientes deixam marcas mais profundas do que outros…

Seu Antônio (nome fictício) estava no leito 211. Seus cabelos eram brancos, informando-nos que sua estadia nesta vida aqui não era tão recente. Seus olhos carregavam, no fundo de seu semblante, certo receio, acusando que seu coração talvez estivesse diante de algum desafio.

O seu diagnóstico era de câncer de esôfago, localizado na porção mais inferior do órgão (próxima à divisão com o estômago). A obstrução de seu tubo digestivo era quase completa, impossibilitando a alimentação por via oral. Assim, ele estava usando uma sonda nasoentérica (um tubo que entra pelo nariz e vai até o duodeno, transportando nutrientes) para nutrir seu corpo.

Dentre os exames realizados, a tomografia de abdome não permitia, com clareza, determinar a real extensão do acometimento de seu tumor. Algumas questões ficavam em aberto: será que já havia invadido o fígado? Seria possível retirar todo o tumor? Ou será que, talvez… não houvesse mais possibilidade terapêuticas?

Havia uma forma de descobrir: a cirurgia aberta, também conhecida como laparotomia.

E o que seria realizado nesse procedimento? Não havia como prever… dependeria do que encontrassem por lá…

E sim, havia um risco de seu abdome ser aberto, explorado e, diante da impossibilidade da retirada total da massa tumoral, eles não poderiam mais proceder com o ato cirúrgico.

E para ele se alimentar, como ficaria? Seria colocada uma bolsa de ileostomia, por meio da qual Seu Antônio receberia sua nutrição. Sem possibilidades de se alimentar pela boca novamente.

Vi os olhos de Seu Antônio se encherem d’água enquanto me falava:

“Essa é a última coisa que eu quero! Será que eles não poderiam tirar uma parte do tumor, para desobstruir meu esôfago, apenas para eu voltar a comer pela boca novamente? Não me importo de viver menos, de não ser curado… só não quero ter que colocar essa bolsa!

Após uma breve pausa, para limpar os olhos e retomar o fôlego, ele continuou:

Ah… minha jovem, nessa idade, a gente não valoriza essas coisas, sabe? É tudo tão fácil… você tem saúde plena! Nem se dá conta! Você pode ir e vir, você pode comer, ir ao banheiro fazer suas necessidades… Ao longo do processo dessa doença, nesses últimos 4 meses, me vi perdendo a possibilidade de fazer coisas tão simples, tão corriqueiras… mas que não valorizamos, até perdermos…”

Ser jovem? Ter saúde plena? Comer pela boca? Ir ao banheiro?” – pensei – “De fato eu nem me dou conta… faço tudo tão naturalmente…

Quando eu poderia ter essas reflexões? Talvez apenas quando viesse a perder…

Nos dias subsequentes, antes da cirurgia, eu e meus colegas de turma (éramos 4) íamos conversar com Seu Antônio e fazer a evolução do seu caso diariamente. Às vezes deixávamos que ele falasse por quase uma hora.

Fato é que, normalmente, os médicos/residentes não têm tanto tempo assim pra dedicar a um único paciente, devido à elevada carga de trabalho, contudo, nós acadêmicos, podíamos sim, com uma dose de interesse, desfrutar desse tempo extra com cada paciente.

Eu percebia que, diante de tudo o que poderíamos ofertar a ele, em nossas possibilidades tão restritas, aquelas conversas, aquela escuta atenta, talvez estivessem sendo de grande impacto para ele.

Notei também, como ao longo desses dias, Seu Antônio passava por diferentes estágios do enfrentamento. A negação… a tristeza… até vir uma aceitação que chegava aos poucos.

Era como se aquela enorme dor que o acometia, fosse sendo processada, digerida, de dentro para fora, aos poucos. E reorganizando-se seu interior.

Finalmente o tão esperado dia da cirurgia chegou! Eu e meu coração – que gosta mais de clínica do que de cirurgia – entramos para o bloco cirúrgico mais envolvidos do que nunca!

Impressionante como o envolvimento emocional com o paciente pode afetar nossa experiência. E, nesse caso, também o meu aprendizado.

O ato cirúrgico se iniciou. A equipe toda muito dedicada, focada.

Eu e meus colegas lá, assistindo, ansiosos.

Meu coração se preencheu de alegria sincera quando meu professor anunciou que seria possível sim fazer a ressecção do tumor, pois ele não havia infiltrado de fato o fígado, estava apenas encostado no órgão. Essa minúcia (que fazia toda a diferença) não era facilmente destacável apenas por meio dos exames de imagem.

Assim, graças à expertise de meu professor (um cirurgião gástrico de reconhecimento nacional) e da equipe cirúrgica como um todo (residentes, enfermeiros..), o desfecho da cirurgia foi confortador! Não sabíamos como seria a sequência do caso a longo prazo, mas as expectativas de Seu Antônio voltar a se alimentar normalmente, a princípio, eram muito boas!

Sorriso no rosto de quem ficou feliz com a notícia!

Muitas histórias assim, acabam por não ter um “final feliz”, não satisfazendo nossas habituais expectativas de “médicos heróis”! O salvador capaz de cuidar e de proporcionar a cura do paciente!

Será que somos mesmo?

Essa história que acabei de contar, veio à tona em minha memória na última semana, após uma aula muito especial que assisti em uma disciplina optativa de “Logosofia e a Humanização do cuidado” (se você faz medicina na UFMG, recomendo fortemente essa matéria, estou adorando).

A professora que estava dando a aula, cujo tema era “O valor do trabalho”, contou a seguinte história:

Ela estava no 3º ano do curso de medicina. Nesse dia, ela estava na enfermaria do Hospital das Clínicas, prestes a iniciar uma entrevista médica com um paciente internado.

Nesse momento do curso, os estudantes estão aprendendo ainda como fazer uma boa anamnese e um exame físico adequado. Ela estava empolgada por aplicar seus conhecimentos e, quem sabe, extrair daquele paciente alguma informação relevante e útil, até então não observada por nenhum outro profissional!

Ela então foi em direção ao paciente, iniciou a conversa. No meio do diálogo, eles foram interrompidos por um enfermeiro, que solicitava que ele fosse fazer um determinado exame.

Ele então disse: “Já vou! Esperem apenas uns instantes que estou aqui ajudando esta moça.”

Ela então pensou, intrigada: “Me ajudando? Não era para ser o contrário?”

Relembrando o caso de Seu Antônio, assim como o de tantos outros, comecei a perceber onde a professora de Logosofia gostaria de chegar.

Quando estamos diante de um paciente, visualizamos uma pessoa que nos procurou a fim de que nós pudéssemos lhes proporcionar cuidado, auxílio, conforto.

Mas… o que eu não esperava, era perceber, a partir dessas histórias, dois grande insights…

Insight 1: Quem ajuda quem?

Ao longo da faculdade de medicina, são tantos pacientes que precisam ser examinados e entrevistados inúmeras vezes, por diferentes estudantes e profissionais! Eles ficam lá, pacientemente, repetindo suas histórias e se permitindo serem examinados várias vezes.

Graças a essa paciência, eu e tantos colegas pudemos nos formar como profissionais de saúde!

E isso não é tudo!

A história de vida de cada um, a forma como eles enfrentam suas dores, seus desafios… quantos exemplos podemos extrair desses relatos!

Nós vamos até eles na intenção de cuidar, de doar, e quantas vezes saímos preenchidos por dentro! De ensinamentos, de reflexões… de lições de vida! E também da enorme gratidão!

Então… quem estava ajudando quem?

Percebi que, em muitas situações, nós, os supostos cuidadores, somos igualmente beneficiados!

No processo de cuidar, há um dinamismo, uma troca constante.

Independente da posição que estivermos ocupando em cada momento, somos igualmente humanos, falíveis. Cada um com seus medos e receios… somos igualmente mortais.

Por um lado, eu estendo as minhas mãos para os cuidados do corpo do outro.

Do outro lado, o paciente estende o seu corpo para nutrir minha alma. Nutrimo-nos, assim, de reciprocidade e de gratidão. De partilha.

Insight 2: Seria possível verdadeiramente promover a cura do outro?

Na posição de médica, profissional da saúde, de cuidadora, eu seria capaz de proporcionar a cura completa de outro indivíduo simplesmente com meu esforço pessoal? Simplesmente acertando na conduta médica a ser tomada? Ministrando a medicação correta? Realizando uma cirurgia de sucesso?

Assim, lembrei-me de uma frase do médico André Luiz, quando ele disse, em seu livro Nosso Lar:

O trabalho de cura é peculiar a cada um.

Esse processo de cura ao qual me refiro, transcende a melhoria de alguma infecção após uso de antibiótico, ou da resolução (momentânea?) de uma patologia após um procedimento cirúrgico. Refiro-me a um processo mais íntimo, interior, a longo prazo.

Sendo assim, deveria o cuidador ser o herói?O agente capaz de retirar todas as mazelas do frágil paciente?

Ou será que, por outro lado, dentro de nossa total humanidade, ainda que no papel de cuidador, poderíamos simplesmente ser aquele(a) que se coloca ao lado? Não acima, nem abaixo, simplesmente ao lado. Aquele(a) que dá suporte.

É preciso pedir licença para fazer parte do palco do outro.

Oferecer a escutatória… a ternura.

A cordialidade, o toque… a compaixão.

– parafraseando Arthur Fernandes, médico de família, em sua palestra sobre “Ser Cuidador”.

Esclarecendo melhor o que estou tentando dizer, acredito totalmente que devemos sim prover recursos, orientações, medicações e intervenções terapêuticas. Contudo, seria possível que o paciente fosse verdadeiramente beneficiado por nosso movimento de cuidado, sem que ele deseje, igualmente, receber aquele auxílio, mobilizar-se e se melhorar?

Após algumas reflexões, percebo que esse movimento em direção à própria melhoria, por parte do próprio paciente, é extremamente significativo e, arriscaria-me a dizer, indispensável, em seu processo de cura.

E por perceber o quão belo é esse processo, dinâmico, contínuo, em lugar de citar Descartes (“Penso, logo existo”), irei dar preferência ao Leonardo Boff que, em seu livro “Saber Cuidar”, diz:

Cuido, logo sou.

Muito pacientes passaram… muitos ainda passarão…

Sua mente, assim como a minha, pode ter resgatado esse poema… haha

Que eu possa carregar comigo, a marca que cada um deixou em mim, com respeito e gratidão. Na consciência de que, ao me doar ao outro, na intenção de cuidar, eu igualmente recebo em troca, aquilo que há de melhor no outro.

E você? Já vivenciou histórias parecidas? Seja como cuidador ou como paciente… como foi para você esse processo?

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Leia também: O dia em que eu “senti na pele” uma das maiores lições da faculdade de medicina.

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Luana Reis
Releituras da Vida

Releituras da vida. A arte da busca pelo equilíbrio entre o que importa e o que é necessário.