Quando um eixo sai do lugar, a engrenagem se abala.

Um processo que pode ser tão coletivo quanto individual.

Luana Reis
Releituras da Vida
7 min readOct 27, 2019

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Há alguém em sua família que precisa de cuidados contínuos?

Você já teve, tem ou já observou o contexto de uma família que apresenta um membro adoecido?

Quais impactos ou mudanças você pode notar? (Caso não tenha refletido sobre isso ainda, convido-lhe a reflexão neste momento).

Há algumas semanas atrás, vivenciei brevemente um caso que, por breve que tenha sido o meu contato, já foi o suficiente para causar em mim algumas reflexões…

Era uma segunda-feira cheia de pacientes! O horário já se aproximava das 18h. Habitualmente, em horários como esses, eu e meus colegas (estagiários da unidade de saúde assim como eu) já teríamos ido embora para casa (costumamos concluir os trabalhos em torno de 17–17:30h).

Grey’s anatomy ♥️ – Meu sonho haha

Eis que chega uma senhorinha, de 75 anos (aprox.), junto ao seu esposo, Seu João, e seu genro.

Dona Maria (nome fictício) chegou um pouco agitada, um tanto quanto ansiosa, com as mãos trêmulas.

“Dona Maria, o que aconteceu com a senhora?” – eu perguntei.

“Ah minha filha, tava lavando umas loça, e dai minhas mãos começaram a “pinicar” e a “queimar”! Acho que é alergia!” – dizia ela.

“É um produto diferente que a senhora usou?” – quis saber.

“Não doutora, é detergente que ela sempre usa mesmo, da mesma marca” – respondeu prontamente o esposo, enquanto o genro confirmava com a cabeça.

Olhei para aquelas mãos, que mostravam o peso dos anos, agitadas, em movimentos rítmicos, que hora ou outra se coçavam.

Olhei para os olhos de Dona Maria, havia algo de angústia ali, não sabia dizer o que seria.

Eu então peguei em suas mãos, elas pararam de tremer. E ela disse:

“Está coçando, ardência, queimando…” – disse enquanto se agitava um pouco.

Atentamente observei que não havia sinais físicos de qualquer reação alérgica: sem edema, vermelhidão, inchaço, sem “bolinhas”. Aferi a pressão e estava boa, saturação boa, coração um pouco acelerado, mas no ritmo certo.

A técnica de enfermagem chegou então querendo saber o que seria feito, se alguma medicação seria ministrada.

O marido então passou por mim e deu um sinal de que queria conversar lá fora. Fui atrás.

“O senhor gostaria de falar comigo?” – perguntei.

“Sim, doutora… é que ela tem aquela doença da cabeça… como chama… Alzheimer! Ela toma uns remédio sabe…”

Eu assenti com a cabeça e agradeci a informação. Retornei ao consultório. Conversei um pouco mais sobre o ocorrido, seus sintomas e suas medicações. Até que ela disse:

“Eu não tenho medo… eu tenho medo? Não… eu não tenho.”

Achei curiosa a fala. E quis saber:

“Algo te assustou ou deixou com medo, Dona Maria?”

“Não, se precisar tomar remédio, usar agulha, eu não tenho medo, pode fazer, doutora!”

Olhei bem pra ela, olhos ansiosas, mãos agitadas, estava deitada, clinicamente sem alterações, mas algo inespecífico não estava no eixo. Decidi, junto ao médico do posto, ministrar um antialérgico, mesmo que o exame clínico das mãos estivessem praticamente normais. Principalmente pela queixa de prurido e queimação nas mãos.

Mas eu sabia que algo mais havia naquela história… algo que não estava na superfície.

Chegou então sua nora, Roberta (nome fictício). Ela fez algumas perguntas para se atualizar e percebi que ela estava angustiada.

Motivada por alguma intuição, decidi chamá-la para conversar do lado de fora, em outra sala.

Ela começou a me explicar como a situação era complicada. Moravam juntos Dona Maria e Seu João, mas ela já não conseguia mais cozinhar e cuidar da casa, então ele mesmo começou a fazer essas coisas. Porém, Seu João não sabe muito bem como preparar os alimentos, pois nunca tinha realizado essas tarefas antes, e Dona Maria não estava comendo bem há vários dias.

A casa não estava ficando muito limpa. Contudo, Seu João não aceitava ajuda de ninguém e não aceitava a ideia de contratar algum cuidador. Roberta alegava que ele, muitas vezes, ficava sem paciência com ela, que a tratava mal, com grosserias, devido aos seus esquecimentos e suas limitações funcionais.

Roberta demonstrava em seu olhar, sua fala e sua postura corporal como ela estava tensa e preocupada com aquela situação. Disse que considerava Dona Maria como se fosse uma mãe para ela, principalmente após a morte de sua própria mãe, e que elas costumavam ser muito próximas. Eu fui deixando que ela falasse, simplesmente…

As palavras foram saltando fluidamente de sua boca, vindas direto do seu coração, como se ela precisasse muito colocar “aquilo para fora”. Percebi sua angústia interna em querer poder fazer mais naquela situação.

Em situações como essas, é natural, pelo menos para mim, o desejo de poder apresentar alguma solução para o caso. Eu gostaria de poder dizer algo consolador, que ajudasse.

Até que me lembrei de uma lição que venho aprendendo aos poucos. Para reforçar esse aprendizado, vou citar um lindo trecho retirado de um texto de Rubem Alves, chamado “Saber Ouvir”:

“O ato de ouvir exige humildade de quem ouve. E a humildade está nisso: saber, não com a cabeça mas com o coração, que é possível que o outro veja mundos que nós não vemos.”

Percebi, então, que não cabia a mim apresentar qualquer solução. O que eu poderia fazer de melhor? Quem sabe simplesmente ouvir.

Escuta atenta. Escuta ativa. Escutatória.

Após ela falar alguns minutos, busquei alguma forma de ser o mais empática possível:

Roberta, de fato essa situação não é nada fácil. Entendo seu desejo de poder fazer mais, de ajudar mais.

Eu acabei de chegar no caso e não sei muito sobre o que acontece de fato. Contudo, tentando trazer algum lado positivo, fico pensando se, mesmo em meio a tantos conflitos entre Seu João e Dona Maria não exista também grande afeto, não seria possível?

Ela concordou e eu continuei:

Diante de situações assim, eu gosto muito de lembrar da frase do São Francisco de Assis, não sei se conhece:

“Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado…Resignação para aceitar o que não pode ser mudado…e sabedoria para distinguir uma coisa da outra.”

Nós terminamos a frase juntas. Ela conhecia. Naquele momento eu pude sentir que conseguimos estabelecer alguma conexão.

Conversamos mais uns 3 minutinhos e percebi que ela estava mais calma. Ao despedir, fiz um movimento para abraçá-la. Ela retribuiu com afeto.

Muitas vezes, os médicos querem falar, mas os pacientes apenas precisam se sentir ouvidos (clique para ler esse outro texto em que faço outro relato, refletindo também sobre este tema – o escutar).

Essa não foi a única lição desse breve atendimento. Retornando a minha indagação inicial do texto:

Quando algum membro da família adoece, qual o tamanho do impacto disso nos demais integrantes da família?

Acredito que cada família absorve esse impacto de uma forma individual. Vários fatores podem estar relacionados. Desde a função que aquele indivíduo exercia, questões econômicas, sociais, emocionais… assim, cada membro irá receber isso de uma forma diferente.

De todo modo, diante do relato acima, e de outras vivências pessoais, começo a perceber como o conjunto familiar pode se assemelhar a uma engrenagem.

Cada roda denteada representa um indivíduo. Quando uma das rodas sai do ritmo, toda a engrenagem se altera.

Você também observa isso da mesma forma?

A partir disso, optei por estar mais atenta a influências como essas. Fica então o meu convite final a reflexão:

Quem sabe se, o simples fato de tomar consciência desse processo sistêmico, o atendimento e cuidado em saúde não possa se tornar muito mais completo?

Sim. É complexo. Multifatorial. E há muitas questões que estão para além de nós.

Todavia, acredito que algum esforço pessoal em pensar de forma mais ampla no contexto de cada paciente, somado a uma escuta ativa, possam ser transformadores quando se trata de acolher e cuidar.

E você? O que acha dessas vivências? Já passou por alguma circunstância de adoecimento em seu ciclo de relações próximas? Quais desafios enfrentou? Deixe nos comentários abaixo ou entre em contato!

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Luana Reis
Releituras da Vida

Releituras da vida. A arte da busca pelo equilíbrio entre o que importa e o que é necessário.