AmarElo: História, amor, negritude e neo-samba

Novo projeto audiovisual do rapper Emicida mistura gêneros musicais, reconhecimento histórico e o navegar dentro de um novo estilo musical.

Lucas Almeida De Sousa
CRITTIQ
13 min readDec 19, 2020

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reprodução/Netflix

A primeira vez que eu ouvi sobre o álbum AmarElo foi em uma roda de conversas da faculdade. De maneira curiosa, foi mais por Belchior do que pelo próprio Emicida. Na volta para casa de metrô naquele dia, eu escutei o disco por completo. Ao decorrer daquela semana, a música que leva o mesmo nome do álbum passou constantemente em forma de pensamentos pela minha cabeça. A música Sujeito de Sorte de Belchior, que está inserida dentro da música do rapper, tem sua mensagem singela durante seus mais de dois minutos. Emicida, por outro lado, destrinchou essa mensagem em uma música de mais de cinco minutos, trazendo dois grandes nomes que levam a bandeira da luta pela liberdade para ajudá-lo a espelhar essa mensagem.

Foi então que eu percebi, aqueles dizeres de Belchior que está inserido em seu álbum alucinacão, não batiam da mesma forma para todas as pessoas. A música singela que havia me tocado, chegou a Emicida em uma forma de manifestação artística com o nome de AmarElo. Já havia algum tempo que gostaria falar um pouco sobre ele, mas quando descobri que o documentário da Netflix estava sendo produzido, resolvi esperar. Para que assim pudesse ver a obra completa de uma forma geral.

Enfim ele chegou…

Prólogo: Initium para que o amanhã não seja só ontem com um novo nome

O projeto audiovisual AmarElo se inicia na música de mesmo nome. Antes de ser lançado oficialmente, Emicida lança o single junto de um clipe protagonizado pelo mesmo ao lado de Maju e Pablo Vittar. O que vemos logo após de apertar o play são cenas e imagens bem comuns de casas e o dia a dia de um brasileiro. Ao fundo ouvimos um áudio de Leandro Roque, nosso Emicida, fazendo um desabafo para um amigo próximo. Ao decorrer de mais de dois minutos, ele diz que não sente realizado como artista, filho e que ainda não encontrou seu lugar no mundo.

“Minha cobrança espiritual nesse plano é muito absurda. Isso é uma doença e eu não aguento mais” -Emicida

Quando ouvimos mais atentamente o áudio do Emicida junto das imagens percebemos qual é a mensagem. Apesar de parecer algo especifico, a situação que ele passou está mais presente nos lares brasileiros do que imaginamos. Assim a batida inicia no sample de Belchior. A música AmarElo, mistura a luta constante do povo brasileiro em conquistar o futuro que tanto almeja enquanto que cada um precisa lidar com seus próprios demônios. Ao decorrer da narrativa do clipe, que se encaixa perfeitamente com a letra, vemos histórias de pessoas dentro de uma comunidade que alcançaram seus objetivos assim como Leandro Roque.

Mesmo sendo uma música que diz essencialmente sobre cada um ter a sua luta e esperança de que tudo no final vai dar certo, Emicida não deixa de colocar pautas importantes como o racismo, a discriminação, a fé e religião, tornando a essência musical de AmarElo mais importante. Transformando o clipe e a música literalmente em um prólogo perfeito para o álbum. É isso que vamos encontrar dentro dele, mas qual seria a principia de tudo isso.

A palavra principia vem do Latim que significa começo, que também é o nome da primeira música do álbum. Em um panorama geral, a letra discorre sobre fé, sonhos, angustia e amor. Casando de maneira perfeita com a música anterior e com o contexto que estamos vendo. AmarElo é o empurro para a sua luta e principia mostra por onde você pode começar. Segundo Emicida, a estrutura do disco parte de um personagem que sonha em um mundo melhor onde todo mundo se ajuda.

“Principia é literalmente esse sonho. Por isso ela começa sem ritmo, etéreo. Com as vozes das mulheres da penha que remete a sua mãe ninando você” -Emicida no documentário “AmarElo: É tudo para ontem”

A ideia deste sonho, curiosamente bate na porta do momento em que estamos agora. O ano de 2020 se encerra com mais de um milhão de mortes por Coronavirus em todo o mundo e Emicida em sua letra lúdica diz que tudo que temos é uns aos outros, a famosa solidariedade. Parece uma realidade muito distinta de se alcançar, quando na verdade, era apenas uma pequena parcela da população seguir as orientações da quarentena que ele seria realidade. O interessante é que o cantor Matheus Aleluia em entrevista para o documentário AmarElo: é tudo pra ontem, diz muito sobre o que estamos vivendo agora.

“…. Nós nascemos para viver incluido e não desassociado. A natureza tem suas leis e o homem é que tem moral. E o homem com a sua moral, vai se afastando o homem do próprio homem” -Matheus Aleluia

No final de principia, a música transforma a luta individual para aquilo que é e deveria ser a luta de todos. Ao mesmo tempo, temos uma mensagem emocionante de que precisamos nos agarrar em nossa fé e acreditar que tudo pode ficar melhor. Um sonho que poderia ser realidade.

Aqui teria um clipe do Emicida falando sobre quando ele foi pra África, mas não achei o trecho na internet da vida, mas caso você ainda se mantém interessado no assunto, a minutagem do documentário na Netflix é 15:11 até 16:00

reprodução/Netflix

ATO I: Alegrias, astro-Rei, e Neo-samba

Este primeiro momento desta segunda parte acredito que tenha que falar um pouco sobre minha história. A segunda música que encontramos no álbum e a primeira a ser comentada no documentário é A ordem natural das coisas. Emicida começa a música falando como o Sol nasce em uma das comunidades da Zona Norte de São Paulo. “É literalmente você vendo o nascer do Sol da Sezefredo para o Jd. Fontalis. Como a Sezefredo é serra, os contornos das casas desaparece e fica apenas as estrelas do universo”. É estranho ouvir alguém famoso ou que tem uma certa repercussão falar sobre uma vista que você presenciou durante muito tempo. Foi o que aconteceu quando eu assisti o documentário AmarElo.

Durante dez anos morei na Sezefredo e muitos dos momentos mais felizes da minha vida foram naquele pedaço de terra. Assim como acontece com a Dona Maria que sai de casar sem ver a luz do Sol, acontecia com a minha família. Descer a serra todos os dias em meio a neblina para ir à escola, meu pai saindo de casa indo trabalhar na Zona Sul, vendo poucos amigos me vistiando em casa porque eu morava em lugar “complicado”. Escutar essa música me remete a muitos momentos que passei naquele lugar e certas paisagens e costumes que ele descreve durante a letra só podiam ser feitos por uma pessoa que morou por lá durante tanto tempo. Mas, o mais curioso é que eu nunca pensei que quando eu já estava chegando no meu colégio, o Sol aparecia. É um sentimento conflitante pensar que meus dias começavam e acabavam no escuro.

“E o sol só vem depois. O sol só vem depois.

É o astro rei, ok, mas vem depois.

O sol só vem depois”

Mas, eu não penso que isso tenha sido ruim para o meu desenvolvimento, muito pelo contrário. Foi o que me fez crescer e dessa forma, Emicida cria novamente um link muito forte entre uma música e outra. A ordem natural das coisas é ele contando um pouco sobre a visão diária do seu dia a dia e Pequenas alegrias da vida adulta é ele contando como você deve olhar mais atentamente para essas perspectivas. É nesse momento que Leandro Roque começa a dar início naquilo que ele nomeia de neo-samba.

“ Antes do show começar um repórter me perguntou, ‘Mas porque o Theatro Municipal Emicida? ’ Porque não tem uma viga, uma ponte, rua que não tenha tido uma mão negra” -Emicida no documentário AmarElo: É tudo pra ontem.

A frase acima dá início a jornada histórica correta sobre alguns pontos importantes da nossa grande cidade de São Paulo, ao som de Tebas, o escravo. Samba clássico em homenagem ao primeiro arquiteto de São Paulo com o mesmo nome. É importante o documentário AmarElo começar desta forma porque é neste ponto que entendemos que tudo começou nas mãos do povo negro e hoje nada mais pertence a eles.

O documentário é tudo pra ontem tinha uma missão importante de não ser apenas relatos da construção de um show como vemos em outros álbuns. Por isso Emicida junto da sua produtora Laboratório Fantasma trouxe algo a mais que isso, o verdadeiro conhecimento. Durante uma hora e meia andamos pela história de São Paulo desvendando sobre a música, arquitetura, cultura, entre outros. O que tudo isso tinha em comum? Todos foram criados ou tiveram uma mão negra envolvida.

É quando ele reserva um pequeno tempo para falar um pouco sobre a história do samba. Desde pequenas lendas de como certos instrumentos foram criados até os grandes movimentos que influenciaram um pouco mais o nosso samba, como a semana de arte moderna de 1922 e o Brasil Real. Tudo isso percorrendo rodas antigas de samba e grandes clássicos, mostrando as raízes daquilo que seria um dos nossos maiores patrimônios históricos e por aquilo que somos tão reconhecidos (mesmo que seja de forma estereotipada)

“O samba é o Brasil que deu certo.

E não há vitória possível para esse País

Distante do samba”

É nesse momento que entendemos o grande respeito e carinho que Emicida tem em nossas raízes verdadeiramente brasileiras, mas ao mesmo tempo ele não quer sair de suas origens que é o rap. Foi então que ele trouxe novamente para o seu novo álbum o neo-samba. Deixando sempre claro que ele não foi o primeiro a explorar elementos parecidos, o neo-samba é a mistura de instrumentos clássicos do samba com batidas do rap. Dentro da letra vemos a mistura dos dois gêneros. O interessante é que esse gênero já existia desde a década de 90 e nunca foi melhor explorado.

A música Pequenas alegrias da vida adulta é uma forma de dizer para nos atentarmos aos pequenos detalhes como as nossas raízes, por exemplo. Assim como as singelas coisas no dia a dia de cada um faz a nossa felicidade, os detalhes dentro de nossas raízes, músicas e textos nos fazem ser quem somos.

reprodução/Netflix

ATO II: Amizades, paisagem, Cananéia e capa de jornais

As próximas músicas do disco e o discorrer do documentário, Emicida faz algumas homenagens importantes fluindo entre o seu rap e neo-samba. Mas, talvez a homenagem mais forte que temos dentro deste projeto audiovisual é para o grande baterista Wilson das Neves. Acompanhado pelos maiores nomes da música brasileira, Wilson possui onze discos durante toda a sua carreira. Através de linhas e batidas da bateria ele se conectou com Emicida há muito tempo atrás.

Segundo o rapper, quando comprava um disco de um cantor e gostava, automaticamente ele se tornava um guardião da boa música e Wilson das Neves era um deles. Em sua primeira oportunidade chamou o baterista para fazer um trabalho com ele e depois disso nunca mais se separaram. Quando passamos por essa história durante o documentário, talvez seja essa a parte mais emocionante dele. A forma singela e que ao mesmo tempo é poderosa que ele introduz seu grande Abominável homem das neves demonstra respeito e o carinho pelo baterista. Wilson das Neves faleceu dois anos antes de Emicida lançar o álbum. Por isso que a musica Quem tem um amigo tem tudo é a mais importante. Porque através de uma melodia de Wilson Das Neves, ele faz uma homenagem as amizades.

“Que maravilha que é poder entregar flores a quem você admira enquanto ainda eles podem sentir o cheiro delas”

Emicida apesar de estar mandando uma grande mensagem ao seu herói está falando para nós, o quanto admiramos nossas amizades a ponto de elas serem a nossa referência? Novamente, colocando minha voz em meio a essa homenagem para o projeto de um homem que tanto admiro digo: ele tem a mesma força de amigos que sempre andaram do meu lado. São eles que são nossa família, nossas raízes e são com eles que aprendemos tudo.

Em Cananéia, Iguape e Ilha comprida, Emicida fala muito sobre a jornada e o clico da vida, se conectando de maneira singela com a música anterior. Ao discorrer dessas duas músicas no documentário, o rapper fala sobre como a horta e manusear plantas lhe ensinou tanto sobre a vida. Existem aquelas pessoas que te dão raízes para crescer e as ervas daninhas de jardim que ofuscam seu crescimento. Em paralelo, ele disserta sobre como o tempo é o seu grande aliado. Tudo isso sem perder o seu swing de neo-samba e rap. Em Paisagem e 9nha, Emicida faz uma grande carta romântica enquanto diz que tudo está em paz.

Baterista Wilson das Neves Reprodução / VEJA

ATO III: Ismália, eminência e a famosa negritude

O segundo ato do documentário que carrega o nome de regar, se inicia com uma homenagem a Lélia Gonzalez. Emicida nos conta a história da pensadora e socióloga até chegar na grande figura que ela se tornou na luta do movimento negro aqui no Brasil. Segundo o rapper, é por causa dela que nós não falamos português e sim “pretoguês”. A forma que ele evoca as palavras inspiradas em Lélia e na história da luta do povo negro, demonstra um ar de raiva. O motivo está nos segundos seguintes, onde é nos mostrado vídeos de manifestações do povo negro na década de quarenta enquanto Emicida pronuncia:

“Para muitos, Lélia foi a pioneira em falar sobre intersexioalidade, que é a sobreposição das idêntidades e como elas se relacionam com as estruturas de opressão. Algo que veio a se popularizar de fato recentemente em nossa realidade

Entre contextos históricos e ao som do tambor e berimbau, Emicida fala sobre como o movimento negro sempre esteve presente nos 450 anos de São Paulo, mas nunca foi aceito. Um momento é dedicado para exaltar a madrinha do rap Leci Brandão, que inclusive era sambista e foi uma das duas únicas mulheres a ingressarem dentro da câmara municipal de São Paulo. Voltando a resgatar o que foi dito lá em cima, a luta do povo negro e o samba nunca estiveram separados, é então que ele exalta por um momento a escola de Samba Quilombo, onde os maiores nomes do samba passaram por ali. É quando entendemos finalmente o porquê do Theatro Municipal, foi em suas escadarias que se iniciou o movimento negro unificado. Portanto, não é apenas mão de obra negra que possui nas escadarias do Theatro, mas o sangue negro também. É quando um grupo de senhores idosos se levantam enquanto Emicida discursa dizendo que aqueles eram membros do movimento negro ao lado de Lélia Gonzalez e a música Pantera Negra é tocada em homenagem a eles.

Não dá para passar por esse momento sem falar de 2020 onde adolescentes negros são mortos e ocultados, pais de famílias são espancados na frente de supermercados e jovens são baleados por engano em suas motocicletas. Agora mais do que nunca, está cada vez mais difícil lutar por liberdade.

“Que essa noite fique sempre guardada em nossos corações. Para sempre lembrarmos que a liberdade nunca é permanente, a gente sempre teve que lutar por ela e a gente sempre vai continuar lutando. Igual a um trator, sai da frente! ”

reprodução/youtube

Em eminência parda, Emicida mergulha em sua angústia e raiva nas batidas do Trap junto com Jé Santiago e Papillon. Onde finalmente entendemos para onde vão os minutos finais do álbum e do documentário, para um pedido de luta e compreensão. É quando mergulhamos no documentário e dentro da história novamente e vemos grandes nomes que também buscavam a luta por liberdade sob o solo brasileiro. Passamos por dizeres e homenagens a grandes artísticas como Abdias Nascimento e a criação do Teatro Negro, Luis Gama e Ruth de Souza, a primeira artista negra a se apresentar no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Segundo Emicida, Ismália era para ser um dueto entre Ruth de Souza e Fernanda Montenegro, mas a grande dramaturga negra morreu semanas antes das gravações. Ismália, poema de Alphonsus Guimarães que fala sobre uma personagem de mesmo nome. Que queria ficar perto da lua ao céu e a lua do mar e só conseguiu fazer isso quando morreu. O rapper compara isso a vida do negro nos seus dias a dias, quando tenta alcançar seus sonhos aos céus é derrubado por uma bala, “Essa bala é disparada por alguém que usa farda”. Emicida nestes dizeres compara a vida de rappers e outros artistas da cultura negra que quando alcançavam o alto status e tinham voz para fazer o alarde contra isso, eram sempre reprimidos pela polícia ou mortos. Ele disserta em seu documentário sobre a Lei da vadiagem onde muitos sambistas nos anos 40 eram presos por simplesmente estarem com instrumento na mão.

“Eles diziam que instrumento de tarraxa na mão de crioulo era arma”

É nesse momento que voltamos para o início, a música AmarElo. Onde entendemos que Emicida quer a luta por liberdade, seja uma luta de todos nós juntos.

Reprodução/Netflix

O fim: É libre, mas como tudo é pra ontem ainda estamos presos dentro de casa

O documentário termina entre meio os dias de hoje, com uma pandemia. Cenas mostrando São Paulo com áudio e dizeres do próprio rapper nos relembrando que a primeira pessoa a pegar o coronavírus foi uma empregada doméstica que entrou em contato com a sua patroa. O interessante é que ele relembra que isso já aconteceu uma vez, mas mesmo assim estamos espantados com tudo que vem acontecendo e mesmo assim nós dentro de São Paulo, não paramos um minuto.

A expressão bem popular quando queremos tudo depressa “é pra ontem” carrega o nome do documentário que fala sobre liberdade, mas que termina na pandemia onde todos nós estamos (ou ao menos deveríamos), presos dentro de casa. A última música do álbum libre fala sobre liberdade e “faixa bônus” que tem participação especial de Gilberto Gil, tudo é pra ontem fala sobre como temos que olhar para nosso passado e entender onde foi que erramos e perdemos o rumo de tudo, para que assim o nosso futuro seja melhor construído.

“Talvez seja bom partir do final, afinal

É só um ano de sexta feira 13”

E com isso eu termino este texto singelo, com uma nota de agradecimento. Agradeço a Leandro Roque por nos fazer lembrar nesse ano tão difícil quem realmente somos, desde as nossas raízes até o momento em que estamos agora. Nunca vamos chegar naquele que lugar que sempre buscamos sozinhos. Precisamos de amigos, família, nossa história e claro, uma boa dose de samba e AmarElo.

reprodução/youtube

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Lucas Almeida De Sousa
CRITTIQ

18 anos, morador de São Paulo, Brasil. Sempre tive entusiamo para escrever e tirar fotos. Futuro jornalista e se tudo der certo, escritor também.