Artigo | O retrato de uma geração, por Bojack Horseman (PT1)

Série animada da Netflix é uma junção sobre as principais discussões da atualidade e o que isso impacta na vida de uma pessoa.

Lucas Almeida De Sousa
CRITTIQ
7 min readMar 5, 2020

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Personagem principal que leva o mesmo nome da série, Bojack Horseman. Reprodução/Netflix

Acho que sei o que você, leitor, deve estar pensando. “Como uma série onde um cavalo protagonista em desenho animado pode me ensinar algo sobre lares quebrados?”. No início, quando eu comecei a assistir Bojack Horseman pensei que seria mais uma dessas séries despretensiosas e animadas ao estilo South Park. Estava enganado e ainda bem que eu estava.

A série animada da aclamada Netflix, teve sua primeira temporada lançada em 22 de agosto de 2014. Nela seguimos o astro de televisão, Bojack Horseman, que está caindo no esquecimento após ter sua sitcom finalizada nos anos 80. Então após seis anos de duras reflexões e verdades que não queríamos enfrentar, a historia do cavalo mais infame e problemático da televisão chegou ao fim.

Foram seis temporadas para destrinchar e contar com maestria todos os problemas pessoais e psicológicos de Bojack. Mas, o carinho que a série tem com seus personagens traz momentos tão únicos que o telespectador leva algo consigo no final. Certas vezes são coisas boas, outras nem tanto. Porém, é necessário para que certos personagens sigam em frente e em muitas vezes, você também. E foi assim que Bojack Horseman criou o reflexo mais realista de uma geração presenciada na televisão.

Partindo deste ponto, há spoilers da série Bojack Horseman

O quanto da sua família tem em você?

Dizer que existe uma árvore genealógica perfeita é quase uma utopia social. Falar sobre família é sempre difícil porque em todas elas ou em quase todas, existem seus traços problemáticos. Em Bojack Horseman, vemos como certos “traços” são criados muito antes de seu nascimento e que ele está ainda sendo afetado por eles.

A família nuclear burguesa foi e é um dos modelos mais conhecidos dentro de uma casa não apenas brasileira, mas mundial. Esse é o lar onde o pequeno Bojack cresceu. A sua mãe, veio de uma família abastada e seu pai era um garanhão de poucas posses que conquistou por acidente o coração de Beatrice Horseman.

Antes desse relacionamento existir, Beatrice era uma menina que antes de amadurecer já vivenciou seus traumas. Quando ela era pequena, foi criada dentro de uma família de estilo patriarcado, onde todos seus sonhos foram reduzidos a “lavar louça” e “ter filhos para cuidar deles”. Seu pai, avô de Bojack, era dono de uma empresa de açúcar em escala nacional e sua mãe era a mulher mais doce e simpática que existia. Mas, assim como qualquer outra série de drama, acontece o ponto de virada.

Honey Sugarman, avó de Bojack, tinha uma relação muito afetiva com seu tio-avô, Crackerjack. O irmão da senhora Sugarman, era um soldado do exército na época da segunda guerra mundial, que faleceu em batalha. Logo após essa perda, Honey desenvolve uma depressão, surtos de ansiedade e começa a viver a vida com mais adrenalina.

Então em um ataque de fúria e machismo o avô de Bojack, Joseph Sugarman, diz que Honey está mentalmente louca e perdeu a razão. A famosa expressão usada por homens naquela época aparece aqui.

“Como vou vender açúcar e elevar a autoestima da minha secretária enquanto você tem surtos de histeria?”

Bojack encarando o retrato de seus ancestrais, a família Sugarman. Reprodução/Netflix

As famosas “Crises de mulher” era uma expressão muito comum usada naquela época. Uma ideia que levava mães e filhas serem reduzidas apenas a objetos e subjugadas pelo patriarcado. E assim implorando para Joseph, Honey pede a ele para cura-lá. Então a expressão “mulher boa é mulher calada e que não pensa” nunca esteve tão presente e a Senhora Sugarman é levada a um sanatório para passar por um processo de lobotomia.

Lobotomia, ou também leucotomia, é uma intervenção cirúrgica no cérebro em que são seccionadas as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo e outras vias frontais associadas. Foi utilizada no passado em casos graves de esquizofrenia.

Honey então perde sua personalidade por completo a ponto de não se lembrar mais da filha, Beatrice. Logo depois, vemos apenas mais um pouco da sua infância. Onde presenciamos, ela crescer em um lar machista com uma mãe em um estágio de catatonismo avançado.

Já em sua adolescência, a mãe de Bojack é enviada para um internato onde permanece pelo resto de seu período escolar. Devido a pressões psicológicas e todo o acontecimento envolvendo sua progenitora, Beatrice se torna uma pessoa amargurada e sendo completamente o oposto de sua mãe, que era doce, sensível e divertida até onde pode.

Voltamos a acompanha-lá em uma parte da sua vida onde está prestes a se casar com um herdeiro de outra fábrica para fins lucrativos a mando de seu pai. Quando ela conhece em uma festa o Butterscotch Horseman, um cavalo descolado estilo anos 80 em que Beatrice se apaixona e acaba fugindo com ele. Tempos depois, é nos revelado que ela está gravida do nosso protagonista Bojack.

Nesse momento, já presenciamos uma família disfuncional sendo criada. Butterscotch é visivelmente um pai alcoólatra machista e Beatrice uma mãe que não sente nenhum carinho pelo filho e por nada que exista perto dela. Vemos Bojack crescer e sua infância sendo totalmente perdida, por momentos difíceis de se acompanhar e que justificam os problemas que o nosso protagonista constantemente nos mostra.

E assim nasce o cavalo do qual conhecemos ao apertamos o play para ver o primeiro episódio. Arrogante, inseguro, machista, alcoólatra e um adicto em drogas. Tudo isso criado por figuras que ele considerava paternas tanto por criação quanto biológico. É instigante pensar que boa parte de seus problemas como pessoa vieram de sua família, os famosos “traços”

O vicio em drogas é constantemente abordado na série por parte do Bojack. Reprodução/Netflix

A série tenta não apenas limitar a ideia do lar disfuncional por parte apenas de seu protagonista, mas sim em quase todos os personagens importantes do seriado. Princesa Carolyn, uma agente de Hollywood que era forçada pela mãe a se casar com um homem para engravidar dele e ter uma vida melhor. Diane Nguyen, uma jornalista e escritora criada em um lar machista onde seus sonhos não eram apoiados. Todd Chávez, um adolescente expulso pela mãe por sentir vergonha dele e suas ideias empreendedoras malucas.

Tudo isso nos leva o problema central : O quanto da minha família tem em mim? A série leva esse problema com Bojack até o ultimo episódio da temporada final, onde ele finalmente entende que certas coisas ele não pode deixar para trás.

Um trecho de Bojack falando com sua mãe Beatrice.

Beatrice, mãe de Bojack, falando que ele herdou a tristeza da família. Reprodução/Netflix

“O que mais eu posso dizer?”

Depois de destrinchar o problema da família de Bojack-parecendo que está dando uma justificativa para seus erros-a série novamente puxa seu tapete. Ela muda o rumo para outras direções e começa a criar um retrato perfeito da nova geração sem ter medo de parecer cruel ao tratar-se de certos assuntos. O mais visível deles durante toda a série é a doença que já foi descrita como o mal do século: A depressão.

Tristeza profunda, pensamentos negativos, baixa autoestima, culpa, estresse e alterações no sono são sinais de uma doença silenciosa e que merece ser encarada com mais atenção pela sociedade. Muitos que ainda encaram como “frescura” e que o famoso remédio “isso passa é coisa da idade” vai cura-la de um dia pro outro.

Não era de se esperar que Bojack fosse acompanhado por esse mal que abalou a nova geração. Então para recorrer a melhoras, o cavalo infame começa a beber e se drogar de maneira desenfreada durante anos. Em paralelo, o seriado mostra como ele consegue ganhar coisas em sua carreira de maneira tão fácil, entretanto ele sempre está triste e sentindo insuficiente não só para eles, mas para os outros também. Sinais claros de sua depressão.

O interessante é que, apesar de todos terem seus demônios e lidarem com eles constantemente durante a série, quase todos conseguem conquistar algo no final. Menos, o famoso Bojack. A série nesse quesito é bastante honesta e justa aqui. Ela deixa bem clara ao mostrar que apesar do personagem ter nascido em uma família tóxica, ele é responsável por suas próprias ações, como escolher seu próprio caminho e trilhá-lo para um lado ruim. Sempre lembrando que usar seus problemas familiares e emocionais como desculpa, faz ele ser ainda pior.

Personagem Todd Chávez dizendo o que tem de errado com Bojack. Reprodução/Netflix

Assim como qualquer pessoa, Bojack culpa certas coisas ou pessoas por momentos que acontecem em sua vida. Quando na verdade, certas feridas estão apenas dentro dele e que precisam ser curadas, mesmo que seja difícil admitir que a culpa seja somente nossa.

Isso nos leva até o fim.

Entender de onde vem o problema de Bojack é começar a pensar de onde vem toda a sua frustração. Um lar quebrado e disfuncional? Sonhos que foram frustados e esmagados? A depressão e as drogas? Pensar nessas perguntas é algo muito difícil se lembrarmos que muitas pessoas nascem e morrem sem entender do porque tiveram essa vida. Um dos principais pontos que a série aborda.

Cena onde Bojack e outra personagem Sarah Lynn falam sobre a vida. Reprodução/Netflix

Bojack Horseman é uma série de muitas discussões, depressão, lares quebrados, alcoolismo e como isso afeta a vida. Mesmo com todos esses assuntos, ele não deixa passar o seu principal objetivo: Como a nova geração está se sentindo perdida e a dificuldade de achar seu lugar no mundo.

Na próxima semana, terá a continuação desse artigo falando a respeito de como a série aborda a indústria de Hollywood.

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Lucas Almeida De Sousa
CRITTIQ

18 anos, morador de São Paulo, Brasil. Sempre tive entusiamo para escrever e tirar fotos. Futuro jornalista e se tudo der certo, escritor também.