O paradoxo arcaico no mundo dos games.

Apesar da alta tecnologia, o mundo gamer ainda está repleto de pensamentos ultrapassados.

Lucas Almeida De Sousa
CRITTIQ
12 min readJul 20, 2020

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Personagem principal do jogo The Last Of Us parte 2, Ellie. Reprodução/Playstation

Uma nota antes de você começar a ler: Eu engavetei esse texto por mais de um ano por conta de ter outros planos para ele, mas durante esse período sabático pelo qual ele passou, aconteceu muitas coisas fora do meu alcance. Inclusive, uma pandemia. Então decidi voltar a estaca zero e onde tudo começou. Porém, percebi que ele precisava de algumas atualizações por conta de tudo estar pior do que um ano atrás. E para finalizar, a intenção aqui não é atacar NENHUM JOGO OU EMPRESA, é apenas para ajudar a melhorar.

Nota 2: Gostaria de agradecer a todas as mulheres que me ajudaram neste texto. Desde apenas ler, como também me ajudar a escrever, pesquisar e revisar. Tudo desta nota para baixo, não faria sentido ALGUM se vocês não tivessem me ajudado. Luiza Cerri, Brunna Zucatelli, Carolina Klautau, Rafaela Oliveira, Eduarda Carvalho e Giovanna Araujo.

No ano de 1972, foi lançado o primeiro videogame caseiro do mundo. O Magnavox Odyssey marcou o início da era dos consoles em casa, engajando outras empresas a investir no mundo virtual doméstico. Quase cinquenta anos depois, consoles e jogos evoluíram consideravelmente. Levando empresas a se desafiarem cada vez mais em alta tecnologia como a Virtual Reality, mais como conhecido como VR. Outro exemplo que pode ser citado, é a inteligência artificial adicionado aos games da nova era como Cyberpunk 2077. Contudo, mesmo diante de todos esses avanços tecnológicos, a comunidade criada dentro destes vastos e ilimitados mundos ainda continua com pensamentos retrógrados e preconceituosos.

A principal reclamação da comunidade em um jogo online é ela própria. Durante uma partida ou rodada qualquer do dia pode-se encontrar os principais discursos de ódio como: misoginia, racismo, machismo, xenofobia, entre outros. Isso faz com que, a parte de lazer no dia de um jogador casual, se torna a mais estressante. Segundo uma pesquisa feita pela ONG Anti Defamation no ano passado, 74% dos jogadores norte-americanos já sofreram com assédio ou lidaram com discurso de ódio em jogos online. Mas, entre todas as frases de comunidades gamers, a que mais espalha o ódio e a ignorância ao mesmo tempo é: “Você não pode jogar porque você é mulher”.

Assim como já mostrado nos cinemas, como exemplo Vingadores: Ultimato, o futuro do cenário dos jogos também é feminino. Uma pesquisa feita pela PGB (Pesquisa Game Brasil) em 2020 mostra que 69,8% das mulheres no Brasil jogam games. O que resulta no quinto ano consecutivo que as mulheres representam a maioria do público dentro do mundo virtual com a porcentagem de 53,8% de jogadores no país. Porém, mesmo sendo a maioria, não se vê de fato a manifestação real desses números dentro das comunidades.

Dados gerais sobre a pesquisa. Reprodução/PGB

Ao analisar esses dados podemos comparar isso com a eleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro, onde o apoio desses eleitores se demonstrava como a minoria, contudo não era. Durante boa parte da eleição, seus apoiadores mantiveram o silêncio, até que nos passos finais, eles mostraram sua força. Dentro de uma comunidade gamer, as mulheres passam pela situação contrária. Para evitar assédios ou discursos de misoginia dentro de partidas online, o público feminino se esconde da maneira que pode, mesmo sendo a maioria.

“Tem garotas que se identificam como homens só para não receber esse tipo de ofensas” diz Gabi Cattuzo, streamer de games que sofreu um ataque misógino e machista em seu Twitter após uma polêmica envolvendo a empresa que antes, a patrocinava. O interessante desse caso é que, em nota oficial a instituição em questão, apesar de demonstrar apoio contra episódios de preconceitos como esse, a decisão foi de demitir a influenciadora ao invés de apoia-lá.

Comparando um caso de meses seguintes, o narrador do Circuito Brasileiro de League Of Legends (Cblol) Diego “Toboco” em sua transmissão ao vivo, dirigiu comentários tóxicos e ofensivos a jogadores durante uma partida. Em resposta, a empresa Riot Games — que em declarações oficiais diz que abomina o comportamento toxico dentro das partidas — o repreendeu pela atitude. Porém, não o demitiu. Isso nos leva a uma reflexão onde, até entre meios corporativos envolvendo comunidades de jogos online, ocorre esse tipo de situação.

Ainda falando sobre a Riot, em uma tentativa de unir a comunidade e tentar acabar com casos parecidos, inseriu o primeiro time com 100% dos titulares mulheres no LCL (Circuito Russo de League Of Legends), marcando história dentro do mundo dos games. Porém, mesmo com uma boa intenção em mente, a ação foi muito mal executada. O time feminino Vaetics durante toda a sua participação no campeonato, sofreu ataques massivos da comunidade russa e internacional de League Of Legends. Vale destacar dois casos que ocorreram dentro do campeonato, onde em duas partidas do time, as garotas foram humilhadas em uma situação que nunca havia acontecido em nenhuma partida oficial do game até então (e que não preciava acontecer).

Durante a primeira partida no circuito russo envolvendo o preconceito com o time feminino, a equipe RoX, durante a fase de banimentos de personagens, baniu 5 campões suportes (suporte é uma das cinco posições possiveis dentro de uma partida de LoL). Isso causou revolta dentro da comunidade de League Of Legends por conta de reforçar uma brincadeira machista que mulheres só jogam nesta posição. Em meio a fase de banimentos, houve manifestações dos jogadores da RoX, como risadas e bater de palmas.

Vale ressaltar que depois deste evento, não se viu mais nenhum time feminino dentro do cenário de League Of Legends.

Time Vaetics. O primeiro time de League Of Legends feminino a participar de um torneiro oficial do game.

Os casos in-game

Apesar de infelizmente, vermos casos como esses no meio comercial, o problema se intensifica dentro de uma partida casual. O motivo deve-se a questão de negligência do jogadores in-game(partidas casuais de jogadores normais). Muitos dos jogos que possuem partidas online, tem inserido a ferramenta denúncia. Onde os jogadores podem escolher o tipo de queixa e relatar os principais pontos da partida que ocorreu o caso. Contudo, poucos de fato usam por estarem com a mentalidade de que “é só mais uma partida, na próxima eu recupero meus pontos”. O que na verdade, é um pensamento como esse, inocente ou não, que acaba contribuindo com o problema. Isso faz o discurso de assédio e misoginia aparecer cada vez mais rápido dentro um jogo recém-lançado. A famosa sensação de ser intocável.

Os casos mais recentes que a comunidade presenciou in-game, foi no novo jogo da Riot Games, Valorant. Ainda em suas fases de teste aberto, a streamer “Rayana Bainy” sofreu assédio e um ataque misógino durante uma de suas partidas. O caso foi relatado em seu próprio twitter com cenas do ocorrido.

Tweet onde a streamer relatou o ocorrido

O segundo caso que ocorreu, também no Valorant, foi com a streamer “einebru” que chorou durante a live após ter recebido comentário misóginos após ter dado boa sorte aos outros integrantes da equipe. Um resumo sobre o caso pode ser visto no vídeo abaixo:

Reprodução/Youtube

Quando falamos sobre os casos in-game, não podemos deixar de evidenciar o paradoxo que existe aqui. Ao observar atentamente, muitas dessas comunidades de jogos online críticam certos erros ou bugs que são encontrados dentro do jogo. Porém, a reclamação mais constante que se pode encontrar é sobre sua comunidade.

É impossível pedir mudanças dentro de um corpo social se você não prática o básico ou faz parte do problema. Enquanto esse círculo vicioso se prolongar, vamos continuar vendo situações como essas.

“É um jogo sobre ódio”

As personagens Abby e Ellie, respectivamente, do jogo The Last Of Us parte 2.

Desde suas primeiras conversas sobre o game na imprensa, o diretor Niel Druckmann, sempre dizia que The Last Of Us Parte 2 era um jogo sobre ódio. Uma frase que definiu o jogo com excelência. Tudo que envolve o game tem uma pequena ou alta parcela de ódio, incluindo o que ocorre em volta.

Dias antes de ser lançado oficialmente, um usuário no forúm Reddit, vazou todo o roteiro do game que incluia alguns acertos e erros da trama. Um dos acertos, foi a questão de que a personagem principal Ellie estaria envolvida em um relacionamento homossexual. Horas depois, um movimento começou a ser mobilizado na rede social Twitter criticando essa caractéristica do enredo do jogo. Coisas como “Porque toda vez que mulher é protagonista ela sente a necessidade de lacrar?” ou “Agora pronto! Já não basta uma mulher protagonista no jogo como também ela tem que ser lésbica”. O intrigante é que, na expansão de história do primeiro jogo, já ocorria muitos indícios que a personagem principal Ellie era homossexual.

Semanas depois, The Last Of Us Parte 2 já estava entre nós. E depois de alguns dias de lançamento, houve outra discussão em pauta que envolvia as protagonistas. Abby, a nova personagem introduzida na sequência do jogo, causou uma discussão dentro da comunidade dos games que tratava sobre a objetificação do corpo da mulher e como isso era retrado dentro dos jogos. Isso ocorreu por conta dela ter uma fisicalidade musculosa. O que raramente se vê em games.

Captura de um tweet falando sobre a personagem Abby

A nova personagem ser introduzida com um físico “musculoso” faz total sentido a narrativa que está sendo contada. Inclusive, eles usam diversas vezes essa característica Abby como um elemento da trama e da jogabilidade. Se controlarmos a personagem principal Ellie, perceberemos que devido ao seu físico ser magro, a melhor opção é optar pelo modo de jogo furtivo. Porém, quando jogamos com a Abby, vemos que na luta corpo a corpo, ela se dá melhor.

Em primeira vista, essa decisão inserida em The Last Of Us Parte 2 pode ser um pouco equivocada. Parecendo que o jogo vai cair no esteriótipo clichê de que “ela só consegue ir de frente com os inimigos porque ela tem um corpo ‘masculino’?” ou “Ela não consegue lutar justo por ter um corpo ‘frágil’?”. Quando na verdade, tratando-se em questão de mentalidade, elas são o oposto da outra. Enquanto a “musculosa” é mais sentimental, a “fragil” é a mais durona (que ao desenrolar da trama beira quase o cruel, mas isso é uma questão narrativa). Não satisfeito de embaralhar as emoções e desconstruir esteriótipos já estebelecidos dentro do universo dos games, ele guarda mais uma surpresa para o final que é de cortar o coração (e muito bem pensada).

É importante ressaltar esse ponto por conta de casos passados. Geralmente quando ocorre um embate entre dois personagens como elas, ocorre aquilo que é mais conhecido como “Nerf” ou “Downgrade” do personagem(é quando a produção do jogo/filme diminui o poder ou força do personagem por questões da trama). Se isso tivesse ocorrido, perderia todo o sentido narrativo e metade da jogabilidade da personagem. (Um exemplo de downgrade conhecido é filmes de super-herói. O mais recente foi em Vingadores: Ultimato, onde a super-heroína mais forte ficou de fora da luta principal e apareceu apenas no final).

E a trilha do ódio continua sendo semeada. Nessas últimas semanas-que ainda continuam sendo as primeiras de lançamento-o jogo foi acarretando elogios de público e crítica como um dos melhores jogos já feitos. Porém na avalição do Metascore(Basicamente, funciona como Imdb para jogos), ele vem recebendo notas baixas pelos jogadores casuais. O motivo deve-se pela manifestação machista e misógina que criou um movimento para boicotar o jogo. Além disso, o diretor do jogo Niel Druckmann e a modelo de rosto para a personagem Abby, vem sofrendo ataques e ameaças de morte em suas redes sociais.

“Eu teria feito tudo igual” — Diz Niel Druckman sobre os ataques que vem sofrendo

Druckmann estava mais do que apto a contar essa história. Por conta de ter vívido uma parte de sua infância em Israel, ele presenciou e passou por certas intolerâncias, que com certeza influenciaram a contar essa história.

The Last Of Us Parte 2 é um jogo sobre todos os ódios que podemos encontrar. Raciais, religiosos, emocionais, entre outros. Entranto, só teve um deles que causou a indignação do público.

Trailer mostrando toda a força de Ellie dentro do jogo. Reprodução/ Playstation

“É uma MULHER comandando times, você sabe o impacto que isso tem?”

Diante de tudo que foi apresentado aqui, parece que não é um futuro promissor para o público feminino. Quando na verdade, são pequenos avisos de que a maioria está finalmente tomando o seu lugar.

Em entrevista para este texto, Eduarda Carvalho, uma jogadora casual de 18 anos, falou um pouco sobre como é o dia-a-dia de uma mulher jogando online:

“É todo dia uma surpresa pros jogadores em geral, mas principalmente para as mulheres porque nunca sabemos se os jogadores vão ficar quietos sem falar nada para você ou se vão te xingar por simplesmente ser mulher. Nós cometemos os mesmo erros que vocês só que a pressão é muito maior”

Os erros dentro de uma partida são muito comuns e podem ser cometidos por qualquer pessoa, mas quando você é mulher a opressão se vira contra o seu genêro e não seu erro, o que acarreta em importunações pelo jogador que está praticando o machismo/misogenia. Um caso recente caso parecido, que causou uma repercusão e fez a empresa “Ubisoft” reavaliar certos casos de punição dentro do jogo, foi com a streamer “Littlevelma” que após um erro de posição estratégica, levou fogo amigo seguido de um ataque misógino.

O ocorrido, fez empresa repensar suas atitudes e punidades contra a toxicidade dentro de sua comunidade lançando na semana seguinte, um Patch que aumentava a punição contra fogo amigo dentro das partidas (apesar de não parecer o suficiente).

Vídeo da “littlevelma” em stream sofrendo ataque. Reprodução/Youtube.

Ainda em declaração, Eduarda fala um pouco sobre a pior experiência relacionada ao machismo dentro de uma partida online:

“Acho que foi ano passado, eu ensinei um ‘amigo’ meu a jogar e ele era iniciante. Todo iniciante joga mal. só que no meio da partida, começaram a xingá-lo por ainda não saber saber tudo sobre o jogo. E ele simplesmente usou esse argumento ‘foi uma menina que me ensinou a jogar isso, óbvio que vou jogar mal’. Eu fiquei abalada por conta disso. Quando pessoas aleatórias dizem ‘cala boca, você é mulher’ eu não ligo mais. Mas, imagina que você está no meio da partida com uma pessoa conhecida e ele diz isso”

Para que os homens passassem por uma experiência parecida, a influencer /youtuber e CEO da organização de e-sports Black Dragons, Cherrygums, figura muito ativa na causa contra o machismo dentro dos games, criou um campanha em 2018 onde streamers homens jogavam com nomes (nicks) femininos para ver o que acontece. Um pouco do que aconteceu foi mostrado no vídeo abaixo:

video de campanha da hashtag #mygamemyname criada por Cherrygums. Reprodução/youtube

Ainda em entrevista, Eduarda fala um pouco sobre o que sente vendo uma streamer mulher e CEO de uma das melhores empresas de E-sports do mundo:

“Eu acho sensacional mano, porque é uma coisa fora do ‘comum’. É uma MULHER comandando times, você sabe o impacto que isso da para as jogadoras. Talvez dessa forma, eles vejam que não são os únicos que sabem jogar, que comandam. Uma mulher pode fazer isso tanto quanto eles”

Nicolle “Cherrygumms” Merhy é muito conhecida e respeitada dentro do cenário de E-sports. Com apenas 23 anos, Nicolle já é dona da Black Dragons. Empresa de jogos eletrônicos criada por ela que atualmente, possui 80 atletas competindo em 12 modalidades diferentes. Recentemente, a equipe de Free Fire ganhou o campeonato brasileiro. Cherry é um dos nomes femininos com mais destaque aqui no Brasil. Muito se deve pela sua luta por direitos desportivos sobre os E-sports dentro da comissão esportiva brasileira. Um lugar que ela ganhou uma visibilidade considerável, defendendo não apenas times feitos de mulheres, mas sim todos os times do competitivo eletrônico. Nicolle foi reconhecida pelos seus trabalhos na última edição da “Under 30” da Forbes.

E mesmo com todo esse destaque, o cenário de games atualmente está inerente a tudo isso. Porém, ainda tem conserto. Precisamos não apenas dar apoio, mas fazer uma diferença. Ajudar a mudar. Ajudar a mudar uma coisa que, segundo Eduarda, não é algo apenas relacionado a quem segura o controle ou maneja o mouse e teclado.

“Sinceramente, eu acredito que esse machismo vem de criação. Isso mudaria se os pais ensinassem que a mulher pode sim jogar vídeo game, pode sim participar de campeonato de FPS[Um gênero de jogo e modalidade de e-sport], que a mulher pode sim pilotar na fórmula 1. Um exemplo são os streamers. Os que são homens não são vistos como um objeto sexual, já a mulher… Depende da roupa que ela está usando”

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Lucas Almeida De Sousa
CRITTIQ

18 anos, morador de São Paulo, Brasil. Sempre tive entusiamo para escrever e tirar fotos. Futuro jornalista e se tudo der certo, escritor também.