O Filho do Trovão — Cap 3 — Expulsos da realidade
O Filho do Trovão — Cap 3 — Expulsos da realidade

Expulsos da realidade

Jean conhece mais da sua “família divina”, e se depara com uma batalha épica entre deuses, titãs e seres mitológicos.

Rod Zandonadi
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8 min readJun 19, 2021

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Jean não entendeu quando a irmã de Apolo (por quem, se lembrou incrédulo, já tivera uma “quedinha” na pré-escola) disse sobre os outros que estavam escondidos. Pelo menos até três loiros altos e musculosos, com barbas grandes, saltavam de trás das moitas da casa de Ana Clara e gritavam por Midgard. Aquilo era irreal, mas até o momento, tudo na última hora não fazia sentido algum.

As ninfas começaram a disparar flechas nos vikings. Jean sabia que eram vikings pelas armaduras de couro, machados e escudos. E os capacetes com chifres. Os guerreiros nórdicos desviavam as flechas enquanto abriam caminho até as arqueiras.

Os lobos que acompanhavam as ninfas saltaram, se transformando em lobisomens, e se engalfinharam com os guerreiros, que gargalhavam diante da batalha.

Gritos de guerra chamaram a atenção de Jean. Com muito esforço ele desviou os olhos da luta dos bárbaros com os lobisomens. Só para seu queixo cair, ao ver cinco garotas montadas em unicórnios com asas descendo dos céus, atropelando algumas ninfas. Duas delas foram derrubadas dos unicórnios, e passaram a lutar a pé.

Xangô analisava a batalha com os olhos cerrados.

– Você trouxe os nórdicos?

Ana Clara deu de ombros.

– Temos uma trégua. Eles não querem que a titanomaquia volte. Perderam muitos amigos e familiares nas batalhas.

– Como todos nós – sussurrou o deus africano.

Foi só naquele momento, ao ver a dor e a tristeza tomarem o olhar de seu pai, que Jean imaginou o que era ser um imortal em uma luta eterna. Deuses e titãs devem ter se enfrentado por anos, talvez séculos. A convicção para continuar lutando, mesmo vendo seus amigos e sua família morrendo um após o outro… o garoto não conseguia nem começar a imaginar aquilo.

Xangô respirou fundo e levou um celular ao ouvido. Um deus africano usando celular era outra coisa que entrava na lista de Jean de coisas extraordinárias.

– Oi. Sim, achei ele. Mas precisamos de ajuda. Encontrei alguns aliados – ele disse olhando para a titânide —, mas estamos sob forte pressão. Sim, quem puder vir será de grande utilidade. A festa está ótima.

A titânide olhava para o africano com certa ansiedade, percebeu o garoto.

– Me diga que conseguiu alguns guerreiros de Orum para nos ajudar.

Jean olhou para a luta, que ia mal. As valquírias e os nórdicos eram empurrados para a casa de Ana Clara. Suor descia pelas costas de Jean. Ele até tentava se concentrar no poder que sentiu momentos atrás, mas era em vão. Não conseguia.

Por mais que as coisas estivessem ruins, Jean se espantou ao ver Xangô sorrir.

– Sim, consegui ajuda. E não só do Orum.

Assim que as palavras deixaram sua boca, o ar na frente da porta tremulou. Cinco formas luminosas surgiram, para dar lugar a quatro guerreiros armados e uma garota.

Ana Clara sorriu de alívio, enquanto um índio musculoso com cabelos cortados em forma de cuia apertava a mão do pai de Jean.

– Xangô, sua noção de festa continua ridícula.

– Hora essa, Tupã. Há quanto tempo não nos divertimos? Tem gregos suficiente para todo mundo.

Duas guerreiros olharam para Ana Clara (não, o nome dela era Atali, e Jean precisava se lembrar disso) e seus olhos se estreitaram. Uma dela, assim como Tupã, tinha traços indígenas. Os cabelos negros e lisos desciam até a cintura. Segurava uma lança com ponta do que ele achou ser diamante, e, como Tupã, usava uma armadura dourada que cobria seus pés, braços e tronco.

– Atali. Na última vez que nos vimos, as condições eram bem diferentes.

– Condições que espero que não se repitam, Ceuci – falou Atali, cautelosa.

– Isso vai depender do desfecho dessa “festa”, como Xangô chamou – falou a guerreira negra, desviando o olhar para a luta, que se aproximava cada vez mais da casa.

A guerreira, para o espanto de Jean, era gordinha. Aparentava ter pouco mais que sua idade, talvez uns dezoito anos, embora ele soub esse que era imortal. Sua armadura prateada cobria os antebraços e canelas, além do peito e da cintura. Seus olhos encararam Jean.

– Esse é o colecionador que Iansã cuidava?

Ele estava para falar que não conhecia nenhuma Iansã, quando se deu conta que falavam de tia Bárbara. Pelos céus, sua tia era irmã de Xangô. Então era uma deusa também. E Iansã… era a deusa das tempestades e dos ventos na mitologia africana. Por isso seu pai tinha feito a piada sobre o vendaval.

Sua tia era uma deusa. Ele piscou algumas vezes, mas ainda não conseguia aceitar a informação.

– Sim – falou Atali. O garoto acordou quando ela tocou seu braço. – Jean, essas são Ceuci, dos deuses tupi-guarani, e Mella. dos deuses banta.

– E esses são Tupã, rei dos deuses tupi-guarani, e Inconce, – disse Xangô, apontando para os dois guerreiros.

O negro apalpou seu black power.

– Maó prazer, ae, filhote do tio tomada. Então partiu, só? Descê as porrada naqueles pirralho, ae.

Jean ainda tentava entender a primeira frase que Inconce disse, quando ele tirou um martelo de guerra de um metro das costas. O deus africano piscou para Jean, e depois deu uma marretada na frente da casa. Parecia que um terremoto tinha atingido o Brasil. A casa tremeu, e tanto inimigos como aliados foram ao chão. De frente da casa um poder azulado se abriu, criando um círculo de energia. A cabeça de Jean doía, e quando sua visão se ajustou, ele soube que nada mais lhe surpreenderia.

Do círculo de energia criado por Inconce, saíram sacis, caiporas e curupiras. A maioria deles saiu correndo até a luta, somando forças com os vikings e as valquírias.

Um estrondo soou no céu.

– Olhem – gritou Atali.

Todos os olhos se voltaram para o que parecia ser uma carruagem em chamas sendo guiadas por dois javalis, que corriam pelos céus. Nela estava um homem de cabelos negros e uma mulher de cabelos castanhos, ambos com armaduras douradas. A espada da mulher crepitava com eletricidade.

– Malditos Ares e Atena – disse Xangô. – Conseguiram encontrar o raio de Zeus.

– Então a coisa ficou séria – disse Ceuci. – Vamos. Com os quatro filhos mais poderosos do Olimpo aqui, teremos que unir nossas forças.

– Principalmente por causa do raio de Zeus – retrucou Mella. – Se não fosse aquilo…

Jean sentiu o poder se elevar enquanto os deuses elevavam sua aura e saíram, caminhando. Parecia um grupo de amigos que ia ao shopping, não há uma. batalha. Os únicos que ficaram foram Xangô, Atali, a garota que chegou com os deuses e uma caipora.

Xangô se aproximou de Jean.

– Filho, infelizmente você foi arrastado para essa bagunça. Eu queria… queria que tivéssemos mais tempo…

A garganta do garoto estava apertada, e ele lutava para que a ardência nos olhos não se transformasse em uma cachoeira de lágrimas.

Atali colocou a mão no ombro de Xangô, e ele suspirou. Chamou a garota que chegou com os deuses, e a caipora. As duas o estudavam com curiosidade.

– Esta é Jurema. Ela é filha de sua tia Iemanjá.

Encarei a garota na minha frente. Seus cabelos estavam arrumados em um black power que deixava o de Inconce no chão. Brincos de madeira despontavam de suas orelhas, além do piercing no nariz. Jean não sabia se era sombra ou gloss que deixava os olhos negros dela com contornos roxos, e não arriscaria um palpite. Fora a adaga que levava em um cinto, ela era uma garota normal: blusinha preta, saia vermelha e tênis all star. Não devia ter mais que treze anos.

Xangô pegou o filho pelos ombros.

– Assim como você, Jurema está na mira dos aliados de Apolo e Ártemis. Os dons de vocês são raros, e se receberem treinamento adequado, podem tornar os dois muito poderosos. Mas não temos tempo para ensiná-los. E não podem ficar aqui. Enquanto viverem em nossa realidade, serão caçados pelo que são. Por isso, Tainá os guiará para um mundo seguro. Um lugar onde a titanomaquia não se estendeu pelos séculos. Onde nosso reino primordial, Etherion, não foi destruído.

A caipora curvou a cabeça para o guerreiro africano.

– Cuidarei deles com minha vida, grande rei.

Quando Xangô se afastou de Jean, Atali se aproximou. Ela lhe deu um beijo que deixou o garoto sem reação. Quando se afastaram, ela sorria. Mas seus olhos estavam marejados.

– Talvez o Destino seja bom conosco, e nos encontremos novamente.

A garganta de Jean estava apertada, e seus olhos ardiam. Ele não sabia o que dizer. Nunca teve uma namorada, e em menos de algumas horas Atali se tornou uma pessoa mais que especial para ele. Jean não era bobo. Sabia que não era amor. Mas era o mais próximo que experimentou desse sentimento durante sua vida.

Sua prima se aproximou dele. Pelos céus, ele tinha uma prima. De perto ele reparou em alguns detalhes. As pontas tinham miçangas marrons e azuis com desenhos de ondas. Seus olhos eram verdes como o mar.

– Precisamos ir.

Ela e a caipora Tainá foram em direção aos fundos da casa. Jean olhou Xangô e Atali correndo para a batalha. Guardou seus braços de guerra uma última vez antes de acompanhá-las. Era difícil respirar. Cada passo era mais pesado que o anterior, levando Jean para longe de tudo que conhecia.

Seu coração ficou mais pesado ainda quando lembrou de tia Bárbara. Tia Bárbara era uma deusa. Ou devia chamá-la de tia Iansã?

Chegaram aos fundos da casa. Jurema tirou uma pedra azul do bolso.

– Vou ativar o vórtice.

– Certo – falou Tainá, de olho nos arredores, as mãos curvadas com as unhas prontas para lutar.

– Não – falou Jean.

As duas olharam para ele com as sobrancelhas franzidas.

– Como assim, não? – quis saber Jurema, com as mãos na cintura.

– Não posso sair sem me despedir de tia Bárbara.

Tainá engasgou com algo que Jean interpretou como “você é louco?”. Mas ele não podia simplesmente ir para outra realidade e abandonar a tia. Precisava falar com sua tia. Talvez ela pudesse ir com eles. Teriam pelo menos um adulto responsável (ou deus responsável) para ajudá-los.

O olhar de Jurema se suavizou, e ela pegou sua adaga.

– Iansã é importante para você. Por isso precisa ver se ela está bem.

Alívio tomou conta do coração de Jean. Jurema sorriu.

– Eu entendo como se sente.

Tainá olhava de um para outro, sem acreditar. Jurema ficou de frente para ele.

– Entende que é provável que precisemos lutar para chegar até Iansã, certo?

Jean sacudiu a cabeça, e Jurema sorriu novamente.

– Que bom que entende. Porque não vai acontecer.

O garoto hesitou.

– Não saio daqui sem minha tia.

– Eu sei – continuou Jurema, sorrindo. – E peço desculpas por isso.

Antes que Jean entendesse o que estava acontecendo, sua prima acertou o cabo da adaga em sua cabeça. A última coisa que viu foi Tainá grunhir para Jurema. Então a escuridão o envolveu em seus braços.

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Rod Zandonadi

Escritor e entusiasta de literatura de fantasia. Desenvolvedor Web nas horas em que não estou criando mundos fantásticos.