O Filho do Trovão — Gelo, Fogo e algo mais
O Filho do Trovão — Fonte da Imagem: HQ Ultimate Spider-Man #6 (2014)

Fogo, gelo e algo mais

O Filho do Trovão conta a história de Jean, um órfão que nunca achou seu lugar na vida. Até que encontrou um pouco de “sorte”.

Rod Zandonadi
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7 min readOct 12, 2020

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Jean sabia que sua sorte tinha acabado. Ele não conseguia terminar a prova, mesmo só faltando duas questões. E tinha certeza de que, das dez perguntas, só ter acertado cinco. Tudo porque não conseguiu apertar a mão de Lara antes da prova começar.

Olhou para o relógio e praguejou. Faltavam só cinco minutos para o sinal bater.

Não queria ver a decepção nos olhos da tia. Não depois que suas últimas notas tinham sido excelentes. Não quando sua tia lhe dizia que seu pai ficaria orgulhoso. Que sua mãe devia estar lhe abençoando dos céus.

Ser descendente de africanos no Brasil não era tão fácil quanto os outros achavam. Ali, no subúrbio do Rio, a maioria era negra. Mas ficar em casa estudando pegava mal. Ninguém queria um nerd por perto. Então, desde o ano passado ele não se dedicava mais. Passou a andar mais descolado, embora a galera o achasse nerd demais, mesmo com as roupas mais maneiras. Então ele ficou ali, no meio de dois mundos. Não era mais aceito pelos amigos nerds, e não era aceito pelos descolados.

Jean deu de ombros. Nunca conseguiria lembrar equação do segundo grau a tempo de resolver as duas questões. Então tomou a decisão mais lógica. Entregar a prova do jeito que estava. A professora ergueu uma sobrancelha para o papel, mas ele não ficou para ouvir sobre dedicação e esforço outra vez. Discurso de adulto era tudo igual, e já tinha bastante em casa.

Enquanto guardava suas coisas, Jean mentalizou suas próximas ações. Sairia para o intervalo e comeria o lance que sua tia preparou. Depois encontraria Toné e o cumprimentaria. Toné era o melhor da turma em história, matéria da qual teria prova depois do intervalo. Teria trinta minutos para usar sua sorte nele.

Respirou fundo e passou às mãos pelos cabeça careca. Sacudiu a camiseta para ventilar um pouco. Estava melado de suor, e a camisa polo azul-marinho do uniforme da Escola Estadual do Segundo Grau Alcides Padilha só o fazia suar mais. Talvez usar a camiseta do Homem Aranha por baixo não tivesse sido sua melhor ideia, mas ele não sabia que o ventilador da sala iria pifar bem naquele dia. Pelo menos podia usar bermuda jeans. Embora não entendesse o problema de ir à escola de chinelos. Era o Rio de Janeiro. Para Jean, os alunos deviam ir à escola de roupa de banho.

Ele levantou e ignorou o olhar fuzilante dos outros três retardatários. Tinha recusado passar cola desde que descobriu sua sorte. Era melhor que ninguém percebesse que suas respostas eram idênticas às de outros alunos da sala. Tirando aquela prova de matemática. Quando vissem sua nota os alunos que pediram cola ficariam aliviados por ele negar as respostas.

Enquanto caminhava pelo corredor, Jean sentiu algo estranho. Não era a primeira vez que ele sentia aquele formigamento na nuca. Mas era a primeira vez que o incomodava tanto.

Ficou distraído tentando entender o que era aquilo. Talvez tivesse a ver com sua sorte recém descoberta. Se fosse isso, não poderia ir ao médico. Vai que ele ia parar em algum Arquivo X da vida, ou pior. Poderiam força-lo a refazer as provas.

Ele só acordou quando alguém lhe deu um encontrão.

— Olha por onde anda, neguinho.

Jean ergueu os olhos. O formigamento em sua nuca se tornou tão intenso que começou a doer. Acima dele estava Apolo, uma das poucas pessoas que falavam com Jean na escola. Infelizmente não era uma conversa. Apolo xingava Jean, roubava seu lanche ou seu dinheiro, e às vezes, quando estava mais generoso, não lhe batia.

— Desculpa aí, Apolo. Estava distraído e não te vi.

Assim que as palavras deixaram a boca de Jean, ele percebeu seu erro. Dizer para Apolo que não o tinha visto era uma ofensa pior do que socar seu rosto. Apolo inspirou e seus olhos azuis pareceram arder. Ele deu um sorriso torto para um Jean ainda sem coragem para levantar do chão. O garoto aterrorizado acompanhou enquanto o outro ajeitava os cabelos loiros que iam até os ombros atrás da orelha. Não pela primeira vez Jean pensou que Apolo devia comprar um número menor do uniforme da escola apenas para os músculos se destacarem sob a roupa. Pelo menos ele usava bermuda jeans, e não um short grudado, o que o deixaria ridículo na visão de Jean.

Para variar não tinha nenhum adulto responsável por perto. A maioria dos alunos ainda estava dentro da sala, já que o sinal para o intervalo ainda não tinha tocado. Só Jean e Apolo estavam ali.

O menino se encolheu, pronto para o chute que viria. Por instinto, Jean colocou a mão na frente, que segurou a perna de Apolo.

E foi aí que as coisas ficaram estranhas.

Uma energia ardente entrou no corpo de Jean quando a perna de Apolo encontrou sua mão. Foi como se o sol resolvesse passear por dentro dele.

Apolo cambaleou para trás, os olhos arregalados para Jean.

— Como você fez isso? — ele perguntou com a voz fraca enquanto se apoiava na parede.

Os braços de Jean começaram a tremer. Ele sentia que seu corpo explodiria. Se levantou e saiu correndo, e quando virou no corredor trombou com outra pessoa. Antes que caísse outra vez alguém o segurou pelo braço.

— Hey, calma aí garoto…

A voz da menina sumiu, sua expressão de raiva substituída por surpresa. Ela logo o soltou no chão.

Enquanto se levantava, Jean sentiu a energia que queimava dentro dele ser… a única palavra que ele encontrava era equilibrada. Algo como gelo dançava por seu corpo, lhe deixando mais calmo.

Ele olhou para a garota. Os cabelos brancos estavam presos em uma trança, jogada por cima do ombro. Os olhos eram tão claros que pareciam brancos. Os lábios pretos contrastavam com a pela clara. Diferente dos outros alunos, ela usava uma camiseta preta de uma banda chamada Dream Theater, que ele nunca ouvira falar. Sua calça jeans estava rasgada, o que, Jean tinha certeza, lhe colocaria em problemas com a senhora Adelide, a coordenadora da escola.

A menina piscou algumas vezes e o mediu de cima a baixo.

— Her… me desculpe — ele gaguejou. — Não costumo sair correndo por aí assim.

Os olhos da garota brilharam em divertimento e um indício de sorriso se formou em seus lábios. Jean nunca tinha visto uma garota tão linda.

— Relaxa menino. Essas coisas acontecem — ela estendeu a mão para Jean, os olhos curiosos não deixando os seus. — Sou Ana Clara, muito prazer.

— Sou Jean.

Ele apertou a mão dela e mais daquela energia gelada entrou em seu corpo. Ana Clara soltou a mão dele e ofegou, como se estivesse cansada. Jean por outro lado se sentiu mais… poderoso? Ele quase riu de si mesmo. Se tinha uma coisa que ele não era, era poderoso. Mas era assim que se sentia. Era quase a mesma sensação de quando usava sua sorte para pegar emprestado o conhecimento dos outros alunos. Mas naquele momento, era como se tivesse recebido poder.

Ana Clara ainda o encarava. Sua respiração tinha se normalizado.

— Me diz uma coisa Jean. Tá de bobeira hoje a noite?

Jean não confiou em sua boca para responder, então balançou a cabeça confirmando. Sua vida se resumia a ficar de bobeira. Mas achou melhor não comentar isso com ela.

— Me passa seu cel. Não vai ter ninguém em casa, então podemos ficar de bobeira juntos.

Jean piscou cinco vezes antes de entender que, pela primeira vez, uma menina o tinha convidado para alguma coisa. Se esforçando para fechar a boca que insistia em abrir o tempo todo, ele deu o telefone para Ana Clara, que riu.

— Eu só queria o número, mas anoto aqui para você. Qual é a senha?

— 34544

Ele assistiu ela franzir a sobrancelha sorrindo enquanto desbloqueava o celular e cadastrava seu contato.

— Se importa em me dizer porque esses números?

Dando de ombros, ele explicou.

— Três porque o Terceiro Mundo é onde os Thundercats vão parar quando Thundera é destruída. 45 é o número da Terra onde o Superman é negro no multiverso DC. E 44 é o número de Super Sentais lançados até agora.

Ela riu, e o som o fez lembrar de uma cachoeira rompendo o gelo que a prendia no inverno. Lindo e perigoso.

— Você é interessante, Jean. Eu te dou um toque pra confirmar o esquema hoje. Até.

Ela se aproximou dele, devolveu o celular e beijou seu rosto. Ele se virou e a acompanhou enquanto ela ia embora. Olhou no celular e quase o deixou cair quando viu que ela marcou mesmo o contato ali.

Esquecendo tudo que tinha vivido até então, incluindo a onda de poderes que o invadiu, ele foi em direção do pátio. O sinal tocou, liberando os alunos para o intervalo. Pela primeira vez Jean não sentia fome.

Ia se encontrar com uma menina. Se conseguisse convencer sua tia a lhe deixar sair de casa.

Leia a série completa de “O filho do trovão” aqui

Esse é meu primeiro conto aqui no blog do meu amigo Luís, e estou muito contente por esse espaço. Se quiser conhecer mais do meu trabalho, acesse meu blog Crônicas de Etherion ou meus outros links.

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Rod Zandonadi
Luis Storyteller

Escritor e entusiasta de literatura de fantasia. Desenvolvedor Web nas horas em que não estou criando mundos fantásticos.