Séries americanas não são novelas, Record!

Luiz Filipe Paz
Luiz Filipe Paz
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8 min readJan 18, 2018

Não sei se já repararam, mas desde 2007, com a estreia de “Caminhos do Coração” (trama de Tiago Santiago e que rendeu uma trilogia estrelada por mutantes), a Record parece estar se inspirando em séries americanas para compor o enredo de suas telenovelas.

Sim, é a Preta Gil ali no cantinho e eu sempre enalteço isso sim!

Claro que nem todas as narrativas do canal seguem esta fórmula, mas grande parte delas é adaptada de histórias que já foram contadas por outros meios — o que acaba por causar um certo déjà vu em seus telespectadores. Só para vocês terem uma ideia, de 2007 para cá, nós tivemos, em termos de adaptações:

  1. “Caminhos do Coração” (2007), “Os Mutantes” (2008), “Promessas de Amor” (2009): tramas inspiradas fortemente em “Heroes”, série de 2006 criada por Tim Kring, para a NBC;

2. “Bela, a Feia” (2009): novela inspirada no clássico colombiano “Yo Soy Betty, la fea”, de Fernando Gaitán. Sucesso de adaptações ao redor do mundo, a versão brasileira foi idealizada por Gisele Joras para a Record;

3. “Rebelde” (2011): essa dispensa apresentações… A versão tupiniquim do sucesso infanto-juvenil, escrita originalmente por Cris Morena (a argentina também é responsável por outros sucessos, como “Floribella” e “Chiquititas”), foi adaptada por aqui por Margareth Boury e contou com duas temporadas;

4. “Dona Xepa” (2013): terceira adaptação da história para a TV, e desta vez reimaginada por Gustavo Reiz, a trama foi a última de Arthur Aguiar na emissora (em 2014, o ator migrou para a Globo);

5. “Escrava Mãe” (2016) -> a novela foi inspirada no romance “A Escrava Isaura”, que ganhou versões para a Globo e para a Record, e contava as peripécias dos antepassados de Isaura;

6. “Os Dez Mandamentos” (2015), “A Terra Prometida” (2016), “O Rico e Lázaro” (2017), “Apocalipse” (2017): tramas bíblicas (a emissora vem apostando cada vez mais nesse filão), tendo sido escritas, respectivamente, por Vivian de Oliveira, Renato Modesto, Paula Richard e, novamente, Vivian de Oliveira.

Nem preciso dizer que essas últimas foram inspiradas na Bíblia, né não minha gente boa?

Várias tramas foram adaptadas ao longo dos últimos 10 anos pelo canal e, em especial, quero destacar nesse post as duas que mais dialogaram com plots de séries americanas, sendo semelhantes em enredo e contextos com estas. Bora?

Retomando do ponto onde paramos lá em cima, as semelhanças entre a trilogia de “Os Mutantes” e “Heroes” são grandes! A começar pela proximidade do ano de lançamento: enquanto que a série da NBC foi lançada em 2006, a telenovela da Record deu o ar da graça logo depois, em 2007. Além disso, o mote central das duas tramas girava em torno de pessoas comuns descobrindo habilidades sobrenaturais, como superforça, supervelocidade, superaudição, capacidade de voar e de prever o futuro…

E, claro, por trás de tudo isso havia uma grande corporação, que ambicionava dominar o mundo por variados motivos (no caso de “Caminhos do Coração”, a clínica de medicina Progênese e, em “Heroes”, a bizarra fábrica de papéis Primatech).

Personagem alada em “Caminhos do Coração
Nathan Petrelli podia voar, em “Heroes”

A abordagem das tramas, no entanto, era diferente. Conforme podemos observar nas imagens acima, “Caminhos do Coração” possuía um ar mais lúdico e voltado ao público infanto-juvenil, enquanto que “Heroes” era dotado de uma linguagem baseada em HQs e era destinada, narrativamente, ao público adulto. Na trama da Record, além de um numeroso núcleo infantil de humanos com poderes especiais e de personagens totalmente voltados à comicidade — como o querido Pachola (André Mattos) — quase não havia a presença, nos capítulos, de sangue, lutas violentas, personagens complexos… A história de “Heroes” foi adaptada para uma versão mais light na emissora dos bispos , agradando em cheio ao público do horário e conquistando fãs das mais diversas idades.

Além disso, a trilogia de “Os Mutantes” contou com traços peculiares que só o Brasil mesmo poderia proporcionar aos fãs de ficção científica, como:

  • Velociraptors na grande São paulo;
  • Sapos Bufos Gigantes encarando crianças (DETALHE: quando eles eram beijados, viravam príncipes HAHAHAHA Tiago Santiago, eu te venero);
  • Mutantes-formiga tendo construído toda uma civilização no centro da Terra;
  • Uma Miss Brasil interpretando uma Mulher-Aranha;
  • Um mutante inspirado no folclore brasileiro, o Curupira (gente, Monteiro Lobato já abordava isso antes de ser modinha, vlw flw).

No entanto, e isso valeu para as duas tramas, ao longo de suas temporadas (“CDC” teve 3, enquanto que “Heroes” contou com 4 da série original e mais uma proveniente de um reboot — e que você pode conferir a nossa opinião clicando aqui), a audiência foi, gradativamente, indo embora. Isso aconteceu muito por causa do exagero que produtores, roteiristas e autores estão submetidos quando mutantes são abordados nas narrativas, utilizando em demasia seus poderes e habilidades especiais e esquecendo de completar certas lacunas necessárias ao bom desfecho da narrativa. O importante de lembrar é que, por mais fantasiosos que sejam os universos imaginados, eles, ainda sim, possuem regras e limites.

Já em julho de 2017, eis que a Record vem com mais uma novidade inspirada em uma série que é fenômeno mundial: “Game of Thrones”.

Trata-se de “Belaventura”, novela de Gustavo Reiz escrita para o horário das 19:30h e que buscava bater de frente com “Pega Pega”, da Globo (no ar no mesmo horário). Ao seu fim, a novela amargou baixos índices de audiência — chegando até mesmo a empatar com as tramas que o próprio canal reprisa em suas tardes, com o diferencial de que a atual trama de Reiz era inédita e contava com um custo de produção considerável).

Mas por que será que o público rejeitou a trama? Quais foram os motivos que levaram essa grande aposta a ser transformada em uma dor de cabeça para a Record? Simples. Regra básica da vida. Se tem alguém fazendo um produto direito e com qualidade, não adianta imitar ou contar histórias parecidas se você não possuí as mesmas técnicas… Infelizmente (ou não) o meio audiovisual incita, por si só, a comparações. E foi isso o que aconteceu no caso da novela.

Mas, também, as aberturas são IDÊNTICAS 😮

Eu mesmo fiquei pasmo quando assisti! Impossível não comparar.

~ Rindo de nervoso ~

Além das semelhanças na disposição dos créditos, a trama central de “Belaventura” também se assemelha à de “GoT”, na medida em que temos a disputa por um trono, capitaneada pelas casas de Redenção, governada pelo bondoso duque Otoniel (Kadu Moliterno), e Valedo, de propriedade do conde Severo (Floriano Peixoto). A disputa estratégica e diegeticamente coerente proposta por “Game of Thrones” se perde em meio à dicotomia infantil entre o bem e o mal proposta pela trama brasileira. Falta caldo nesse feijão, falta verdade em uma história construída na rebarba do sucesso alcançando pela história da HBO.

É importante lembrar também que, em “A Terra Prometida”, recente novela bíblica da emissora, nós tivemos nossa própria versão de Daenerys (Emilia Clarke) produzida pelo canal. Tratava-se de Kalesi (Juliana Floribella Silveira), intitulada como “a rainha das cobras”. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Não satisfeitos, fizeram também uma versão de Melisandre (Carice van Houten) nossa, e na mesma novela.

Mara (Cristiana Oliveira) faz parte da comunidade Aser na história. É descrita como uma feiticeira amarga, sozinha e ambiciosa, que — adivinhem só — ao longo dos capítulos se vale de magia negra para aparentar jovialidade, até terminar bem envelhecida e senil no final de sua jornada egocêntrica…

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Sem dúvida alguma, “Os Mutantes” foi uma das tramas mais originais da TV brasileira até hoje (devido, além de outros fatores, à sua excentricidade e coragem em abordar um gênero ainda pouco trabalhado por aqui, como o da ficção científica). Porém, falta à Record um respiro criativo e um investimento em enredos realmente inéditos, com histórias que consigam prender o telespectador no sofá de novo. O grande segredo para isso é planejar bem o ‘durante’ da narrativa para que seu final seja amarrado, coeso e surpreendente.

Basear-se em histórias de desfechos conhecidos ou já manjados pelo público torna o jogo de assistir TV menos atrativo do que ele realmente o é. O segredo está em conduzir a audiência por caminhos críveis e originais.

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