Bob Widlar — Como se tornar um gênio?

Luiz Gustavo Soares Martins
Arco Elétrico
Published in
12 min readFeb 5, 2019

Hoje vamos falar desse que na minha opinião é um daqueles famosos gênios esquecidos. Um engenheiro americano que sequer é citado nas universidades brasileiras, mas que foi extremamente importante para a indústria dos CI’s modernos. Seu nome? Robert J. Widlar, o pai dos circuitos integrados lineares ou analógicos. Um homem que mostrou que ser um gênio não é tão simples assim. É necessário muito esforço, e alguns parafusos fora do lugar.

Conteúdo:

  • Os primeiros anos e paixões
  • Fairchild Semicondutor — A primeira revolução (1963–1965)
  • National Semiconductor — “ Eu quero ser RICO” (1965–1970)
  • A primeira aposentadoria
  • De volta à ação — o 2º round na National Semiconductor (1974–1981)
  • Linear Technology — o gênio frustrado (1981–1984)
  • De volta a National Semiconductor e morte prematura (1984–1991)
  • Referências
Bob era um ser humano excepcional…em todas as formas possíveis.(Fonte)

Ele parecia mais artista do que engenheiro; Ele apreciava mais a criatividade do que o conceito de inteligência de uma forma geral. — Bo Lojek

Os primeiros anos e paixões

Não vamos entrar nos mínimos detalhes para evitar que você durma, então antes de mais nada, caso você queira se aprofundar mais nessa e em muitas outras histórias sobre o desenvolvimento da eletrônica moderna, recomendo fortemente o livro do professor Bo Lojek, The History of Semiconductor Engineering, disponível na Amazon americana. Pois bem, vamos lá, “começando pelo começo”.

Bob Widlar, como era conhecido, nasceu em 30 de Novembro de 1937 em Cleaveland, Ohio. Desde muito cedo teve contato com a engenharia elétrica, já que seu pai, Walter L. Widlar era um engenheiro autodidata que trabalhava em uma estação de rádio de Cleaveland, e que rapidamente se tornou um dos maiores nomes na área. Walter chegou a trabalhar em projetos para o governo americano, os quais eram chefiados por ninguém menos que William Shockley. Bob acabou vendo em seu pai, um modelo a ser seguido, e sempre buscou deixá-lo orgulhoso. Infelizmente, Walter L. Widlar faleceria em 1953 sem saber da genialidade e esforço que seu filho mostraria ao mundo.

Bob aos 16, dessa vez mais comportado.

Em Fevereiro de 1958, alguns anos após a morte de seu pai, Bob Widlar entrou para a Força Aérea dos Estados Unidos, onde teve a oportunidade de escrever seu primeiro livro, “Introduction to Semicondutor Devices”. Segundo o professor Bo Lojek, Bob tinha uma capacidade incrível de transformar um assunto complicado em algo mais palatável.

Após ingressar na Universidade de Colorado em Boulder e ter contato com um estilo de vida mais desregrado, ficou claro que seus dias na Força Aérea estavam contados. E de fato estavam. Bob deixou a carreira militar em 1961, apesar de um ótimo desempenho (o que pode ser visto aqui), e passou a trabalhar no Ball Brothers Research Co. onde desenvolvia equipamentos para a NASA. Graduou-se em 1963 como um dos melhores alunos do curso, dando indícios do que estava por vir.

Bob entendia mais de circuitos transistorizados do que a maioria de seus professores — Bo Lojek

Fairchild Semicondutor — A primeira revolução (1963–1965)

Em Setembro de 1963, Bob Widlar passou a fazer parte de uma das empresas mais importantes da história da engenharia elétrica, a Fairchild Semiconductor, famosa por abrigar os “8 traidores” e onde ele iria se destacar tanto por suas conquistas profissionais quanto por sua personalidade um tanto difícil de lidar. Inicialmente, trabalhou como engenheiro eletrônico na avaliação de componentes digitais com aplicação em circuitos analógicos. O problema é que Widlar considerava o design de circuitos digitais um trabalho inferior, algo que ficou claro quando proferiu sua famosa frase: “…qualquer idiota sabe contar até 1”.

Acredito que ele se formou em Engenharia Elétrica em 3 anos — GPA de 3.9999. Em algum momento eu perguntei pra ele se ele tinha trazido seu currículo. Em resposta, ele me passou uma cópia sobre a mesa. Analisei cuidadosamente e percebi que só haviam A’s, exceto por um C solitário — sendo este em História de Colorado. Quando perguntei sobre a óbvia aberração, ele me respondeu que era uma matéria obrigatória para a graduação. Disse que o professor, no primeiro dia de aula, pediu para que a turma toda pegasse um pedaço de papel e traçasse o contorno de Colorado. A resposta de Widlar a tal tarefa foi escrever em seu papel: “O mapa está na parede atrás de você seu filho da p*** idiota”. Ele então, sorrindo, me admitiu que o professor nunca mais foi com a cara dele e que deu apenas uma nota para que ele passasse na matéria. Minha primeira impressão de que esse era um cara diferenciado? — Joe Malone, em entrevista sobre a entrada de Widlar na Fairchild.

Widlar e seu famoso cumprimento a toda a industria de circuitos digitais. (Fonte)

Foi durante seu período na Fairchild que Bob conheceu Dave Talbert (Engenheiro Eletricista que desenvolveu uma série de melhorias nos processos industriais), um dos poucos que conseguiram se aproximar dele e suportar seu gênio forte, tornando-se um de seus melhores amigos. Juntos, desenvolveram alguns dos CI’s mais importantes já fabricados como o uA702 e mais tarde o uA709, dois amplificadores operacionais (sendo o ultimo uma evolução do primeiro) os quais revolucionaram todo o mercado e que tornaram a Fairchild líder no ramo de circuitos analógicos por alguns anos. Eventualmente, pretendo fazer um post explicando o funcionamento de cada um deles, então, aguardem.

Anúncio do uA702 em 1964. Talvez esteja difícil de ler mas o preço chegava $300 no consumidor final.

Infelizmente, a Fairchild Semiconductor não soube dar o devido valor a seus engenheiros, e logo Bob Widlar, juntamente com Dave Talbert aceitaram a proposta de Peter Sprague (presidente da National Semiconductor), decidindo então sair da gigante, mudando-se para uma nova empresa, a Molecro Co. — parte da National Semiconductor, em Santa Clara,CA . Widlar escreveu na sua carta de demissão: “ Eu renuncio no dia 31 de Dezembro de 1965” e recusou-se a preencher o formulário de saída , tendo apenas rabiscado algumas palavras como justificativa: “Eu quero ser RICO”.

National Semiconductor — “ Eu quero ser RICO” (1965–1970)

Agora na National Semiconductor, Bob iria desafiar a indústria de semicondutores mais uma vez mostrando seu potencial em desenvolver obras primas da engenharia e histórias jamais esquecidas por seus colegas. Foi durante seu período na empresa que alguns de seus chips icônicos ganharam vida, como LM100, LM101, LM105, LM107, LM108, LM109, entre outros (lembrando que cada um deles irá ganhar um artigo próprio futuramente). Foi nesse período também que algumas pessoas importantes para a história de Bob entraram em sua vida.

Anúncio dos anos 70 da National feito a partir de ideias de Widlar. Sutil e direto (Fonte)

“Durante seus anos na National, Bob gerou uma enorme quantia de dinheiro para a empresa” — Bo Lojek

Quando Widlar e Talbert chegaram à National, as coisas não andavam muito bem financeiramente e a empresa ainda não tinha um método de produção de CI’s bem consolidado. Esse foi o primeiro trabalho de Bob e Dave que logo colocaram a empresa nos eixos. Uma segunda leva de pessoas vindas da Fairchild ajudou-os nessa árdua tarefa e logo a empresa já estava produzindo os primeiros CI’s desenvolvidos por Widlar.

Anúncio do LM100, primeiro CI de Widlar na National.

O primeiro deles foi o LM100, o primeiro regulador de tensão no mercado e que causou grandes impactos na indústria, seguido do amplificador operacional LM101, uma espécie de evolução do uA709 muito mais estável e menor. E foi ainda durante o desenvolvimento do LM101 que Widlar conheceu um outro Bob, Bob Dobkin, que se tornou um grande amigo e parceiro de suas criações. Juntos, eles ainda iriam fundar uma das empresas mais importantes do Vale do Silício, a Linear Technology Corp. Aos poucos Widlar foi trazendo diversas pessoas que trabalharam com ele na Fairchild para seu grupo na National até que o time estivesse completo.

Widlar, sem barba, e seus colegas na National Semiconductor em 1967. (Fonte)

A união dos trabalhos de design de Widlar e Talbert auxiliados por diversos outros engenheiros e técnicos juntamente com os trabalhados administrativos de Charles Sporck e Pierre Lamond (antigos colegas de Fairchild) agora na National, rapidamente fizeram com que a empresa se sofresse um “Boom” absurdo, enquanto suas concorrentes estagnavam ou até mesmo perdiam cada vez mais suas vendas (como foi o caso da Fairchild Semiconductors). O trabalho de Bob Widlar e seus colegas logo fez com que ficassem conhecidos como “os animais do Vale do Silício”, pois muito mais do que genialidade, eles eram caracterizados por trabalhar incessantemente.

A história da National Semiconductor é um bom exemplo de como alguns poucos indivíduos criativos , com um líder diferenciado como Charles Sporck, podem transformar a empresa quase que da falência ao auge dos grandes negócios. — Bo Lojek

Um ótimo exemplo da genialidade de Widlar e do quão importante sua opinião era para a industria de semicondutores se dá em umas das histórias mais icônicas de sua carreira, o desenvolvimento do LM109, o primeiro regulador de tensão de alta potência (com três terminais). Em 1969, havia intenso debate se seria possível a criação de tal circuito em um único chip e Widlar, que sempre entrava nas discussões resolveu dar sua opinião escrevendo uma carta à uma das revistas mais importantes da época, a Electronic Equipment Engineering, ou EEE ( atualmente EDN),afirmando que seria impossível por uma série de motivos. Pois bem, todos levaram em conta o peso da opinião de Widlar e consideraram caso encerrado. Então, em 1970 Widlar presentearia todos com o LM109, que se utilizou de uma técnica conhecida como Widlar’s Band gap voltage reference. Ele tornou o impossível, possível. Clássico Bob.

A história da ovelha

Existe uma história em particular que merece um espaço a parte. A famosa história do dia em que Bob Widlar levou uma ovelha para o trabalho. Sim, eu sei. Após tantas histórias você achou que Bob não iria te surpreender não é mesmo? Pois bem, acredito que esse era o real talento dele, surpreender a todos, não importa como. No dia 12 de Dezembro de 1970, a empresa estava precisando economizar e decidiu que cortaria, com o perdão do trocadilho, a verba para que a grama fosse aparada. Bob então dirigiu até uma fazenda de uma amigo, pegou uma ovelha emprestada, colocou-a no banco de trás de seu Mercedes-Benz e dirigiu de volta as instalações da National. Ele então amarrou a ovelha em uma árvore e deixou que ela fizesse o trabalho.

Bob Widlar e a ovelha em frente a National Semiconductor. (Fonte)

No fim do dia, Widlar foi até um bar e levou a ovelha com ele. Ele deixou a ovelha com o bartender. — Bob Pease

Aqui podemos ver o carro de Bob ao fundo. (Fonte)

Da mesma forma que entraram, Bob Widlar e Dave Talbert deixaram a National Semiconductor em 1970, no dia 21 de Dezembro. Infelizmente dessa vez cada um seguiu um rumo. Widlar possuia 20.000 ações da National no valor de $50 cada e decidiu se refugiar em um de seus lugares favoritos, o México, deixando sua marca em todo o Vale do Silício.

Eu não gosto mais da água do Vale do Silício— Bob Widlar

Bob era uma verdadeira estrela do Rock. Anúncio da Teledyne em 1973. (Fonte)

A primeira aposentadoria

Morando agora em Puerto Vallarta, uma cidade litorânea do México, com seus 33 anos, muitos poderiam achar que a marca de Bob no mundo da tecnologia estava completa. Bob deixou a indústria, mas nunca parou de trabalhar.

Bob era conhecido como “ladrón de caballos” em Puerto Vallarta. (Fonte)

De volta à ação — o 2º round na National Semiconductor (1974–1981)

Após 3 anos morando em Puerto Vallarta, Bob Widlar decidiu voltar ao seu mundinho e em 1974 fez um acordo com Charles Sporck voltando a desenvolver circuitos analógicos para a National Semiconductor. Porém, Widlar continuou a morar no México, o que fez com que ele tivesse que atravessar a fronteira frequentemente. Toda vez que ele era parado e algum guarda perguntava onde ele trabalhava, Bob proferia sua famosa frase “Eu não trabalho”. Isso acabava irritando profundamente os guardas e consequentemente atrasava suas viagens, obrigando-o a utilizar um cartão falso para poder passar pela fronteira tranquilamente.

Cópia do cartão de Bob, guardado pelo professor Bo Lojek. Reparem nos escritos “Road Agent”. (Fonte)

Foi durante esse período que surgiram os famosos amplificadores LM10 e LM12 os quais ficaram em produção até o século XXI. Muito anos se passaram até que alguém conseguisse desenvolver um circuito que fosse tão bom quanto o LM10.

Linear Technology — o gênio frustrado (1981–1984)

Em 1981, Bob Widlar junto de Robert Swanson e Robert Dobkin (sim, o mesmo que trabalhou com ele na National Semiconductor) fundaram a Linear Technology que inicialmente atuava como “second source”, ou seja, uma empresa que fabricava tecnologia de outras empresas parceiras (as empresas “first source”). Acontece que ao longo dos anos a relação entre Bob Widlar e Bob Dobkin foi se tornando desgastada. Isso porque, de acordo com Bo Lojek, Widlar acreditava que a apresenta estava se utilizando de designs seus para a fabricação de alguns CI’s, não lhe dando o devido crédito. Desse modo, a empresa acabou entrando em uma longa ação legal durante o ano de 1984 e então Swanson demitiu Widlar.

Robert Swanson e Robert Dobkin, fundadores da Linear Technology. Dobkin e Widlar nunca mais se falaram. (Fonte)

De volta a National Semiconductor e morte prematura (1984–1991)

Após ser demitido por seus “colegas” na Linear Technology, Widlar voltou a trabalhar como consultor na National Semiconductor até sua morte em 1991. Bob morreu na cidade de Puerto Vallarta, onde continuou morando, enquanto tentava subir uma colina. Seu coração, que já havia sofrido pela idade e pela vida desregrada de Bob, não suportou o esforço e sofreu uma parada na manhã de 27 de Fevereiro de 1991. Widlar tinha 53 anos e se juntou a seu pai na lista de familiares com uma morte prematura.

Bob está enterrado em Puerto Vallarta, México. (Fonte)

Mesmo com uma morte prematura, Widlar fez muito mais do que a maioria das pessoas na sua idade. Desde muito cedo trabalhou duro e mostrou pra todos que tiveram a oportunidade de conviver com ele, como se tornar um gênio. Revolucionou, não uma, mas diversas vezes a indústria de circuitos integrados e foi fundamental na construção do Vale do Silício e no que ele representa atualmente. Acho que a melhor forma de terminar esse artigo é com um texto, utilizado na campanha de promoção da Apple em 1997 e que sintetiza muito bem o que Widlar foi para a engenharia elétrica. Uma pessoa que pensou diferente.

Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os encrenqueiros. Os que fogem ao padrão. Aqueles que veem as coisas de um jeito diferente. Eles não se adaptam às regras, nem respeitam o status quo. Você pode citá-los ou achá-los desagradáveis, glorificá-los ou desprezá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Eles empurram adiante a raça humana. E enquanto alguns os veem como loucos, nós os vemos como gênios. Porque as pessoas que são loucas o bastante para pensarem que podem mudar o mundo são as únicas que realmente poderão fazer.

Um adeus de Bob a todos que chegaram ao fim deste artigo. (Fonte)

Se você gostou dessa longa história, não deixe de conferir o livro do professor Bo Lojek, The History of the Semiconductor Engineering, qual mostra como foi esse período tão incrível para o desenvolvimento tecnológico. Além disso, vou deixar aqui embaixo os links que utilizei, de diversas entrevistas com grandes nomes da eletrônica à matérias em revistas sobre histórias protagonizadas por Widlar. Eu adorei escrever este artigo e poderia ter escrito muito mais. Mas acho que você já entendeu o que eu quis mostrar, quem eu quis mostrar e a importância que ele teve. Um grande abraço, e até a próxima.

Referências

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Luiz Gustavo Soares Martins
Arco Elétrico

Estudante de Engenharia Elétrica com Ênfase em Eletrônica na Escola de Engenharia de São Carlos, São Paulo, Brasil.