Edith Clarke — o pioneirismo feminino na Engenharia Elétrica

Luiz Gustavo Soares Martins
Arco Elétrico
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9 min readJul 18, 2019

Encontrar inspirações masculinas no mundo das ciências exatas é muito fácil. Desde pequenos ouvimos falar de Isaac Newton e suas maçãs, e o nome Einstein se tornou sinônimo de gênio. Na Engenharia Elétrica não é diferente. Desde que comecei a me interessar pela área, alguns anos antes de entrar na faculdade, um professor de um curso técnico passou um documentário em sala, sobre a história da Eletricidade. Nele, conheci muitos nomes, desde Gilbert, passando por Faraday, Maxwell, Hertz, Tesla, Edison, até Bose e Shockley. Na época eu não havia percebido, mas todos aqueles nomes eram de homens que haviam deixado sua marca no estudo da eletricidade e durante todos os episódios, nenhuma cientista mulher havia sido sequer citada.

Durante meu primeiro semestre na faculdade, em 2017, em uma disciplina chamada “Humanidades e Ciências Sociais”, eu e meus colegas de turma tínhamos um trabalho a ser feito: entrevistar um(a) engenheiro(a) eletricista. Nesse trabalho havia a possibilidade de entrevistar um engenheiro vivo, ou contar a história de um engenheiro que já tivesse falecido. Foi então que ouvi pela primeira vez o nome de Edith Clarke, personagem principal do texto de hoje. Conhecida como a primeira mulher a receber um diploma de Engenharia Elétrica no MIT e a primeira Engenheira Eletricista dos Estados Unidos, Clarke quebrou as barreiras de uma sociedade dominada pelo machismo e mostrou que mulheres podem ser no mínimo tão competentes quanto qualquer homem. Vamos contar um pouco de sua história.

Assim como no texto sobre Bob Widlar, não vou entrar nos mínimos detalhes, portanto, caso você queira se aprofundar mais nos trabalhos de Edith Clarke, recomendo que leia o artigo de James E. Brittain, entitulado From Computor to Electrical Engineer: The Remarkable Career of Edith Clarke. Infelizmente, o artigo não é gratuito, podendo ser acessado somente através da compra ($33 para não membros e $14,95 para membros do IEEE) ou através de uma conta institucional. Por isso, recomendo que você procure saber se sua instituição/universidade possui uma conta no site. Se você é aluno da USP, a resposta é sim, portanto, aproveite para utilizar as ferramentas disponíveis.

Edith Clarke em uma de suas únicas fotos disponíveis. (Fonte)

Eu sempre quis ser engenheira, mas sentia como se mulheres não devessem estudar coisas como engenharia. — Edith Clarke ao The Dallas Morning News

Os primeiros anos

Edith Clarke nasceu em 10 de Fevereiro de 1883, e passou seus primeiros anos em uma fazenda em Maryland, junto de seus pais, John R. Clarke e Susan Owings Clarke, além de seus oito irmãos. Teve uma infância trágica, pois por volta de seus 12 anos, ambos seus pais já tinham falecido. Edith passou a ser criada por seu tio e durante esse período, estudou em um internato, no condado de Montgomery, até o ano de 1899. Aos 18 anos, ela recebeu uma herança de seus pais e usou o dinheiro para dar continuidade aos estudos, algo bastante incomum para a época. Devemos lembrar que estamos no início do século XX, período em que mulheres tinham basicamente um propósito: cuidar da casa e dos filhos. Mas Edith não pretendia seguir essa linhagem e decidiu por continuar a estudar, inscrevendo-se no Vassar College, em Nova York e obtendo seu Bacharelado (B.A., Bachelor of Arts) em Matemática e Astronomia, em 1908.

Vassar College, NY. Aqui, Edith Clarke deu um importante passo em sua carreira acadêmica. (Fonte)

Assim que obteve seu diploma, passou alguns anos atuando como professora de Matemática e Física em São Francisco e em seguida, Wisconsin. Porém, logo mostrou-se descontente com a profissão e ingressou no curso de Engenharia Civil, na Universidade de Wisconsin, em 1911. Mais uma vez, ela mostrava que não tinha a menor intenção de seguir o caminho esperado por uma mulher de sua época.

Com a Primeira Guerra Mundial (1914–1919) as mulheres começaram a ocupar outros espaços como fábricas de automóveis. (Fonte)

O trabalho na AT&T

Durante o verão do ano seguinte, Edith Clarke começou a trabalhar na American Telephone and Telegraph, a AT&T, como Computer Assistant para o pesquisador George Campbell. Muitas mulheres, que assim como ela possuíam uma forte base em ciências exatas (principalmente em Matemática) acabavam se tornando os famosos computadores humanos. Foi durante esse período que Clarke teve um forte contato com as teorias de linhas de transmissão e circuitos elétricos, áreas que fariam parte de toda sua futura carreira como engenheira. A carreira como computador era tão mais interessante que ela abandonou seus planos de se formar engenheira civil. Em 1915, Clarke passou a fazer parte do Departamento de Engenharia de Proteção e Transmissão da AT&T, onde coordenava um grupo de computadores humanos. A paixão pela eletricidade começava a se tornar mais evidente em sua vida.

Um exemplo de computador humano, profissão comum a mulheres que se destacavam em ciências exatas. (Fonte)

A Primeira Engenheira Eletricista formada no MIT

Em 1918, Clarke tomou uma importante decisão em sua carreira e decidiu se inscrever no curso de Engenharia Elétrica no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Ela se graduou no Outono de 1918 e continuou no Mestrado por mais um ano. Desse modo, tornou-se a primeira mulher a se graduar em Engenharia Elétrica na instituição.

Cúpula do MIT, instituição que inaugurou o curso de Engenharia Elétrica nos EUA, em 1882 e onde Edith Clarke obteve seu diploma. (Fonte)

Passagens pela General Electric Company: de computador a engenheira

Frustrada por não conseguir se estabelecer como engenheira, Clarke decide se mudar para Istambul. (Fonte)

Mesmo tendo se formado como engenheira, Clarke ainda sentia muita dificuldade em conseguir trabalho, já que ser uma mulher num cargo de engenheira era algo inimaginável para a sociedade da época. Foi então que ela aceitou trabalhar na General Electric Company, a GE, em Schenectady, Nova York, novamente como computador humano. Durante dois anos, coordenou grupos de computadores humanos na companhia, até deixar a mesma para trabalhar em Istambul, Turquia, como Professora de Física em uma escola para mulheres. Um ano depois, Edith Clarke finalmente tinha alcançado seu objetivo. Aos 39 anos, retornou para a General Electric, mas dessa vez não como assistente de engenheiros homens, e sim como a primeira engenheira eletricista dos Estados Unidos.

Planta da General Electric em Schenectady, Nova York. Aqui, Edith Clarke faria história como a primeira engenheira eletricista dos EUA.(Fonte)

Primeira patente: A “calculadora Clarke”

Vou voltar um pouco em nossa linha do tempo para contar um pouco sobre a invenção da calculadora gráfica de Clarke, também conhecida como “Calculadora Clarke”. Em Junho de 1921, durante sua primeira passagem pela General Electric, pouco antes de viajar para Istambul, ela tentou patentear seu projeto, que consiste em uma ferramenta para auxiliar nas soluções de problemas de linhas de transmissão. Segundo Clarke, a calculadora tinha como propósito facilitar a análise de linhas de transmissão de diferentes tamanhos ou formatos, reduzindo os cálculos em até dez vezes. Se você já cursou Ondas Eletromagnéticas ou alguma disciplina semelhante, com certeza teve contato com a Carta de Smith. Pois bem, podemos considerar a Calculadora Clarke a precursora dos métodos gráficos na análise de problemas de linhas de transmissão. A patente foi aprovada em Setembro de 1925 e você pode acessá-la clicando aqui.

A calculadora gráfica patenteada por Edith Clarke. (Fonte)

Agora engenheira na GE, Clarke passou a ter muito mais espaço no meio acadêmico e aproveitando-se disso, passou a fazer parte do American Institute of Eletrical Engineers, AIEE, precursora do IEEE, e de 1923 a 1945, foi autora ou co-autora de 18 artigos científicos. Em 1926, teve a honra de tornar-se a primeira mulher a apresentar um artigo ao instituto. Você pode ler o artigo na biblioteca digital do IEEE, clicando aqui. Este artigo foi muito importante já que naquela época as linhas de transmissão estavam cada vez maiores, juntamente com as cargas alimentadas por essas linhas. Consequentemente as chances de instabilidade eram maiores e os métodos utilizados por Clarke permitiram que tais linhas fossem analisadas.

Sede do AIEE, em Nova York. (Fonte)

Ao longo de sua carreira, Edith Clarke teve dois artigos premiados como melhores artigos do ano pelo AIEE. A cada nova apresentação, muitos elogios eram feitos a maneira como ela conseguia explicar assuntos extremamente complexos. Por ter uma base matemática muito sólida, Clarke enxergava formas muito mais fáceis de analisar determinados problemas, traduzindo cálculos complexos em gráficos e algoritmos que qualquer engenheiro conseguia compreender.

Em 1943, foi publicado o primeiro livro, intitulado “Circuit Analysis of A-C Power Systems”. O livro foi baseado em suas notas de aula na General Electric. Edith lecionou a engenheiros da GE por muitos anos. Sua obra foi muito usada como texto-base em cursos de engenharia e como referência a engenheiros que trabalhavam com sistemas de potência. Como já faz muito tempo, você pode encontrar uma cópia gratuita do primeiro volume aqui. É como voltar no tempo!

Os dois volumes do livro de Edith Clarke, publicados em 1943 e 1950. (Fonte)

Aposentadoria na GE: o início como professora de Engenharia Elétrica

Em 31 de Julho de 1945, após 26 anos trabalhando na GE, dos quais 23 foram como engenheira, Edith Clarke decidiu se aposentar. Chegava ao fim sua carreira como engenheira eletricista, porém, na primavera de 1947, sua carreira como professora universitária se iniciava. Clarke, agora com 62 anos, aceitou um convite da Universidade do Texas para lecionar no curso de Engenharia Elétrica, onde permaneceu até o ano de 1956. Quebrou novamente as barreiras de seu tempo sendo a primeira professora de Engenharia Elétrica dos Estados Unidos.

Ela foi uma das primeiras engenheiras a realmente entender e expandir as equações de corrente alternada de Charles Steimetz Proteus. — Chris Hunter, historiador da GE e curador no Museu de Inovação e Ciência de Schenectady

Universidade do Texas, onde Edith Clarke passou de 1947 a 1956 como professora de Engenharia Elétrica, a primeira nos EUA. (Fonte)

Durante seu período como professora, Clarke conquistou ainda uma série de feitos notáveis. No ano de 1948, se tornou a primeira mulher a receber o título de “Fellow” do AIEE, podendo agora participar de votações na instituição. Em 1950, publicou o segundo volume de seu livro e em 1954, foi premiada pela Sociedade de Mulheres Engenheiras, por suas importantes contribuições à engenharia.

Não há uma demanda por engenheiras como há por médicas; Mas sempre há demanda por qualquer um que possa fazer um bom trabalho — Edith Clarke ao Daily Texan, em 1948

Segunda aposentadoria e legado

Aos 73 anos, no ano de 1956, ela decidiu se aposentar pela segunda vez, mudando-se para seu estado natal, Maryland. Edith Clarke faleceu três anos depois, no dia 29 de Outubro de 1959, em Baltimore. Deixou um legado enorme à Engenharia Elétrica, um campo que por tradição é dominado até hoje (pelo menos no Brasil) por homens.

Obituário de um jornal da época, noticiando a morte de Edith Clarke, no ano de 1959. (Fonte)

Ninguém soube explicar melhor o legado de Edith Clarke do que o professor James E. Brittain em seu artigo, no qual ele escreve:

Ela traduziu o que muitos engenheiros consideravam ser matemática esotérica em gráficos ou simplificações, em uma época onde sistemas de potência tornavam-se cada vez mais complexos e quando os primeiros esforços em desenvolver ferramentas eletromecânicas na solução de problemas eram realizados. Como uma mulher que trabalhou em um ambiente tradicionalmente dominado por homens, ela demonstrou de forma eficaz que mulheres podem ser no mínimo tão boas quanto os homens, se forem dadas oportunidades. Suas incríveis conquistas serviram de exemplos inspiradores as futuras gerações de mulheres com desejo de seguir uma carreira na engenharia.

Ilustração de Edith Clarke por George Doutsiopoulos. (Fonte)

Mais uma vez gostaria de indicar a todos que queiram se aprofundar nas principais ideias de Clarke no campo dos sistemas de potência, que leiam o artigo do professor James Brittain. E peço que se você achou essa história no mínimo interessante, que compartilhe, pois essa cientista incrível merece ter sua história lida pelo maior número de pessoas. Infelizmente a Engenharia Elétrica aqui no Brasil ainda continua sendo um curso com uma presença feminina muito aquém do esperado. Portanto, conhecer a história de uma mulher tão importante para a área pode fazer a diferença no momento da escolha de qual curso seguir.

É isso, obrigado pela leitura e até a próxima!

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Luiz Gustavo Soares Martins
Arco Elétrico

Estudante de Engenharia Elétrica com Ênfase em Eletrônica na Escola de Engenharia de São Carlos, São Paulo, Brasil.