A Disruptura do Jornal

Fernando Luzio
Luzio Strategy
Published in
11 min readAug 20, 2019
Primeira página do The Washington Post, em exposição na frente do Newseum em Washington, dia 6 de agosto de 2013, no dia seguinte ao anúncio da aquisição por Jeff Bezos (AP Photo/Evan Vucci)

O que temos a aprender com as transformações do The Washington Post Um Estudo de Caso

A digitalização da vida contemporânea tem provocado disrupturas em diversos setores da economia, criando oportunidades para as empresas que desenvolveram a disciplina de pensar estrategicamente e inovar, mas ao mesmo tempo ameaças vitais para aquelas que não conseguiram evoluir e se antecipar ao espírito dos tempos. Os jornais integram um dos segmentos que mais têm sofrido abalos profundos ao redor do mundo. Aqueles que ainda sobrevivem, com lucros tendendo a zero ou driblando um fluxo de caixa negativo, lutam para encontrar uma saída em um modelo de negócios que perdeu sustentabilidade nos princípios que os trouxeram até aqui.

Inúmeras são as causas que, juntas, constituem o hipocentro de um terremoto que tem destruído os pilares do jornal tradicional. Dentre elas, cabe reunir algumas que são fundamentais para compreender a transformação no comportamento da demanda…

A imersão cotidiana no universo da Internet, por meio dos telefones inteligentes e tablets, mudou completamente os hábitos de leitura. Multidões perderam a confiança em veículos tradicionais da imprensa, que se tornou coadjuvante no palco das redes sociais e mídias digitais — onde cada um de nós tem o poder de ser editor de suas próprias publicações e influenciador de pensamentos coletivos. O cisne negro do fake news (ícone da era da pós-verdade) revelou o lado perigoso da Internet, que se tornou o melhor lugar para mentir e camuflar a veracidade dos fatos. A emergência do número de curtidas, como principal indicador de sucesso pessoal, deixou as pessoas obcecadas na criação de posts que viralizem, sem importar a integridade e qualidade da mensagem. Cada vez mais pressionadas pela falta de tempo, alto volume de trabalho e overdose de informação, as pessoas são forçadas a fazer não-escolhas de leituras na rotina diária — o jornal físico, embora muito mais fácil de navegar pela sua variedade de textos que a versão digital, é símbolo desse excesso que provoca sobrecarga cognitiva — e um cansaço — que faz o leitor preferir as mensagens curtas dos feeds que frequenta o seu celular.

O estrago desse contexto pode ser ilustrado pela queda violenta das assinaturas e pela pulverização do mercado publicitário. Segundo a Newspaper Association of America, os jornais norte-americanos reportaram uma queda de 55% nas receitas no período de 2007 a 2013. Em agosto de 2013, o New York Times não aguentou segurar e vendeu o Boston Globe por US$ 70 milhões, tendo pago US$ 1 bilhão por ele em 1993.

Os esforços dos jornais para se adaptarem a esse novo mundo, em geral, têm se concentrado em três frentes principais de mudanças: criar uma versão digital do conteúdo e fazer uso das redes sociais e aplicativos digitais como canais de distribuição; reduzir custos para buscar viabilidade diante da queda brutal das receitas de assinatura e propaganda; e aprimorar seus bancos de dados macroeconômicos e setoriais, para vender informação às empresas. Na redução de despesas, infelizmente muitos acabam perdendo jornalistas de peso, desfalcando a alma do jornal que é a qualidade do conteúdo. Essa estratégia não tem sido suficiente para dar sobrevida a muitas dessas organizações, porque baseia-se no movimento de adaptação conjuntural ao mundo como ele é, ao invés de se reinventar para reconquistar relevância (e valor econômico) no contexto atual de extremismos e incertezas que vivemos.

Nessas situações, o melhor a fazer é converter os efeitos da disruptura em epicentros de transformações positivas no modelo de negócios. Em outras palavras, escolher pilares do negócio que precisam ser transformados e adaptar os demais para refletir essas mudanças de maneira consistente. Exemplo notável dessa lógica de inovação estratégica é o que o norte-americano The Washington Post tem conseguido fazer, desde que Jeff Bezos fez uso de sua fortuna pessoal para comprar o jornal em 2013 e reverter a espiral de crise em que o jornal se encontrava. Um ano antes de ser vendido, o Post havia contabilizado a perda de quase 300 mil assinantes em 10 anos — de 769 mil e um lucro de US$ 109 milhões em 2002, para 472 mil assinantes e um prejuízo de US$ 54 milhões em 2012.

Criador e CEO global do império de e-commerce e logística, a Amazon, Bezos não assumiu nenhum cargo executivo e nem atua no dia a dia do jornal, mas tem emprestado sua visão estratégica, pautada pela ousadia e coragem, para mobilizar uma reviravolta que salvou o Post e reinventou o jornal. Tudo o que Bezos e o time de gestores do Post têm feito de lá para cá oferecem inúmeros aprendizados preciosos para qualquer empresa, os quais procuro resumir neste artigo. A estratégia contempla 3 epicentros de transformação no centro de gravidade do modelo de negócios: um novo conjunto de Propostas de Valor, amparado pelo desenvolvimento de novos Recursos Estratégicos e foco na busca de excelência em poucas Atividades-Chave para realizar a virada (Figura 1).

EPICENTRO 1 — Mais valor para o leitor e uma ressignificação de quem são seus clientes

O elemento central da estratégia de qualquer empresa é tudo aquilo que você se compromete a entregar para o consumidor que você escolhe servir e priorizar, que proporciona benefícios muito superiores ao preço que ele paga pelo serviço e uma percepção de singularidade em relação às ofertas concorrentes — a isso denominamos Propostas de Valor. Vale destacar 3 mudanças principais no Washington Post:

“Saber nos empodera.
Saber nos ajuda a decidir.
Saber nos mantém livres.
A democracia morre na escuridão”

EPICENTRO 2 — Investir nos Recursos de fato essenciais

As novas Propostas de Valor possibilitaram uma diversificação dos segmentos-cliente em 3 dimensões, criando novas fontes de receitas. A expansão da capacidade de produção de jornalismo de qualidade, amparada por ferramental tecnológico capaz de dar agilidade na criação e publicação de conteúdo para acompanhar a velocidade do mundo interconectado, permitiria ao Post perseguir tanto larga escala ( digital audience) quanto satisfazer os leitores mais sofisticados ( elite audience). O foco não seria mais somente o público de Washington DC, mas também de outros estados norte-americanos e também de outros países, mobilizando a internacionalização do jornal. E para completar a estratégia, o novo Sistema de Gestão de Conteúdo — batizado de Arc Publishing -, desenvolvido para dar velocidade na editoração do conteúdo em amplitude multimídia, e na gestão do processo de publicação de notícias, poderia ser licenciado para outros jornais, em qualquer lugar do mundo — uma nova fonte de receitas capaz de gerar mais de US$ 100 milhões por ano.

Pessoas-Chave

Toda empresa é um conjunto finito de recursos. Um dos maiores desafios na execução da Estratégia é fazer as escolhas (e não-escolhas) mais adequadas para alocar o dinheiro nos recursos humanos e materiais que efetivamente vão fazer a diferença.

Desde a entrada de Bezos em cena, o jornal tem reforçado o time de jornalistas para imprimir agilidade na cobertura e reflexão sobre os fatos mais relevantes nos Estados Unidos e no mundo — ao longo dos últimos 6 anos, contrataram 200 novos profissionais para repor a equipe desfalcada pela crise. Para conter a sangria do fluxo de caixa, os jornais não conseguem remediar o corte de jornalistas do time para reduzir as despesas da operação. Porém, a medida prejudica ainda mais o coração da empresa, porque a redução da capacidade jornalística derruba a oferta de conteúdo de qualidade no tempo certo, para competir com a intensidade criativa exigida pela arena digital.

Avanço Tecnológico

Para desenvolver o novo mecanismo sofisticado de curadoria de conteúdo para o leitor e um sistema de navegação mais rápida e precisa, investiram na contratação de cientistas de dados e engenheiros de sistemas. Em parceria com o Google, mudaram a engenharia do site e do app para aumentar sobremaneira a velocidade de carregamento dos conteúdos para milissegundos. Bezos viabilizou a contratação de 35 novos engenheiros para darem suporte à redação do Post.

Para acompanhar a velocidade do mundo interconectado na era digital, os jornais têm se transformado em empresas de tecnologia para servir melhor ao jornalismo. A viabilização das novas Propostas de Valor exigiu investimentos em novos sistemas e equipamentos:

EPICENTRO 3 — Foco na Mudança Cultural para o novo modelo dar certo

Dois anos após a aquisição por Bezos, o Post superou o tráfego online do New York Times, com 67 milhões de visitantes mensais, um aumento de 59% em apenas 1 ano. No final do terceiro ano, superaram a marca de 100 milhões de visitantes únicos e, em setembro de 2017, quatro anos depois, ultrapassaram a marca de 1 milhão de assinantes digitais. Em fevereiro de 2018, o Washington Post foi eleito a 8 a empresa mais inovadora do mundo na tradicional pesquisa da revista norte-americana Fast Company, em um ranking composto por líderes da nova economia como Apple, Netflix e a própria Amazon.

Um dos principais desafios da revolução por dentro do Post era ajudar os editores e repórteres a pensarem digitalmente e mudarem a maneira de trabalhar. Em qualquer modelo de negócio, entender o perfil do cliente, aceitar que ele pense diferente de você e ajustar a mensagem para promover uma conexão e um vínculo duradouro são desafios permanentes. É por isso que hoje a prática da empatia, favorecida pelo Design Thinking, veio para ficar nos processos de reflexão estratégica para criação de produtos, serviços e novos modelos de negócios.

Essa talvez seja uma das mais importantes — e menos comentadas — contribuições de Jeff Bezos para a transformação do Washington Post. Bezos teve sucesso na criação de uma cultura centrada na experiência digital do consumidor e na implementação de frentes de inovação em tecnologias e processos na Amazon. Apesar da governança à distância no dia a dia do Post, Bezos conseguiu engajar o C-Level no fomento de uma cultura de encorajamento à experimentação, respeitando o passado e o conhecimento acumulado no Post que deve atravessar os tempos, mas ao mesmo tempo estimulando a inovação. Bezos tornou-se o embaixador da visão do cliente que não é mais o mesmo que acompanhou a história do Post — os leitores jovens buscam cada vez mais formatos alternativos, como podcasts, vídeos e canais em redes sociais. Essa consciência tornou-se o principal vetor de transformação do jornal.

Bezos sugeriu mudanças muito relevantes no modelo de recompensa, que é peça-chave em programas de mudança cultural. O indicador número 1 de impacto no bônus das pessoas-chave, até a sua chegada no Post, era o Lucro Operacional. Quando as receitas estavam em queda, cortavam custos. Quando Jeff comprou o Post, em 6 meses ele mudou o critério e agora são 3 indicadores estratégicos:

  1. Rapidez do gestor na implementação das iniciativas estratégicas
  2. Amarras de Compromissos identificadas e transformadas para empurrar a experimentação
  3. Nível de engajamento dos gestores com as decisões tomadas

APRENDIZADOS E PENSAMENTOS FINAIS

Assim, Bezos incentivou o debate, mas com uma diferença: as pessoas podem discutir o quanto quiserem, mas quando chegam em um consenso, ninguém mais tem o direito de sabotar a decisão e tem de sem comprometer com a execução.

Jeff Bezos é hoje o homem mais rico do mundo, com uma fortuna avaliada em US$ 131 bilhões, e comprou o The Washington Post, em 2013, por US$ 250 milhões, encerrando 80 anos de liderança do até então Chairman e CEO Donald Graham, membro da família fundadora. No início de 2013, Graham contratou o banco de investimentos Allen & Co. para encontrar um comprador para o Post, pois a empresa e os Conselheiros não se sentiam mais capazes de encontrar uma saída estratégica para o negócio. Na época, o Valuation de outros negócios semelhantes indicava que o Post não valia mais que US$ 60 milhões (3,5 a 4,5 vezes o EBITDA anual), menos de um quarto do valor pago por Jeff Bezos (17 vezes o EBITDA de 2012, estimado em US$ 15 milhões). Graham deu o preço, e Jeff concordou.

Já ouvi de analistas comentários, na minha opinião, equivocados sobre esse fato…

Primeiro, afirmar que a fortuna de Bezos salvou o Post. Sem dúvida que a capacidade de investimento de Bezos viabilizou a transformação do modelo de negócios, porque viabilizou os avanços tecnológicos necessários para reinventar a empresa. No entanto, a história empresarial está recheada de casos em que dinheiro abundante, sem visão e estratégia claras, não fizeram a menor diferença.

Agora, um fato é inexorável: experimentação exige caixa. Dinheiro permite apostar em tecnologias que podem demorar para decolar, e testar novas ideias pode significar gastar dinheiro sem retorno financeiro de curto prazo. O erro que todos devemos evitar, portanto, é deixar de investir na fase da prosperidade, porque a empresa está inebriada pelo sucesso do negócio como está, ou míope pelo efeito da inércia ativa. Muitas empresas acordam para a necessidade de imprimir ousadia na reinvenção do negócio quando o mesmo está em crise — e o medo da morte da empresa catapulta as pessoas para fora da caixa. Não podemos esperar o negócio entrar em crise (porque um dia ela virá) para financiar reflexões estratégicas periódicas, prototipagem de novos modelos de negócios e experimentação que envolve alocação de recursos.

O Post deixou de ser uma empresa de capital aberto, com ações em bolsa, a partir da aquisição de Bezos. Esse fato também favoreceu a experimentação. Quando os jornais abriram capital nas décadas de 70, 80 e 90, o corte de custos para satisfazer os investidores foi paulatinamente reduzindo a capacidade jornalística dessas organizações, mesmo antes do impacto devastador da internet. Propriedade pública e pulverizada também reduz o apetite da gestão por investimento em inovações necessárias, que podem levar tempo para retornar dividendos para os acionistas — tornando o corte de custos o caminho priorizado por tantos jornais.

O segundo pensamento corrente, na minha visão também equivocado sobre o fato, é que Bezos comprou o Post para ter uma artilharia de imprensa pesada em seu poder, para contra atacar tentativas frequentes de formação de opiniões negativas sobre a sua pessoa e suas decisões empresariais. Eu não acredito nisso. Na verdade, temos assistido bilionários comprando negócios em situação financeira dramática, pelo prazer de atender seu último degrau da Pirâmide de Maslow: o senso de legado, de contribuição para o mundo. É o que leva homens ricos, na maturidade, a assumirem a liderança de Museus e Teatros falidos, comprarem Revistas clássicas que precisam de ajudar para se transformarem, e até mesmo vinícolas — um negócio que todos sabem ser muito difícil de sustentar. Bezos disse, em uma entrevista, que “a minha Governança do The Washington Post e o meu apoio à sua missão, que permanecerá inabalável, é algo de que mais me orgulharei quando tiver 90 anos e rever a minha vida, se tiver a sorte de viver tanto tempo”.

FONTES PARA QUEM QUISER SE APROFUNDAR E ONDE ENCONTRAMOS DADOS E FATOS RELEVANTES SOBRE O THE WASHINGTON POST E JEFF BEZOS

Assumir uma das melhores testemunhas da história da democracia americana, ver a empresa contabilizar lucros nos últimos 3 anos de maneira sustentável, é um prato cheio para o senso de legado de Bezos.

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Fernando Luzio
Luzio Strategy

Business Strategist • Changemaker • Consultant • CEO Latin America at Luzio Strategy • www.luzio.com.br