Racismo religioso: tão presente, mesmo que tão disfarçado

Nicoly Serafim
Luz Negra
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5 min readNov 18, 2021

Por Roberto de Sousa

Para quem acompanhou as últimas semanas da novela ‘Nos tempos do Imperador’, em especial o capítulo exibido na noite de ontem (16), uma cena provocou certa discussão nas redes. A cena em questão traz Vitória (personagem de Maria Clara Gueiros) e Lupita (Roberta Rodrigues) incorporando duas entidades. Quando incorporam, começam a se contorcer, exagerando nas expressões faciais e emitindo onomatopéias aleatórias, em uma clara tentativa de atribuir tom cômico a uma parte importante das religiões de matriz africana. Não bastasse o show de horrores desse primeiro trecho, surge ainda Quinzinho (Augusto Madeira), que ao se deparar com a situação apanha um frasco de água benta e despeja o líquido nas personagens, “milagrosamente” trazendo elas de volta a si.

(Reprodução: TV Globo)
(Reprodução: TV Globo)

Não é de hoje que presenciamos esse tipo de representação irresponsável. Se formos um pouco mais longe em nosso ‘imaginário dramatúrgico’ lembramos de Pai Helinho (Matheus Nachtergaele). O personagem de ‘Da Cor do Pecado’ — novela escrita por João Emanuel Carneiro — fingia ser pai de santo e em determinado momento da trama começa a presenciar e ser cobrado por algumas entidades, que são sempre representadas como figuras maléficas. E não é nem preciso dizer que o núcleo do personagem servia de alívio cômico.

De volta para a atual novela das sete, ‘Nos Tempos do Imperador’ já vem de uma série de desserviços para com a população negra. A cena de um dos primeiros capítulos que constrói Pilar (Gabriela Medvedovski) como sendo vítima de “racismo reverso” provocou até mesmo uma retratação da autora Thereza Falcão, que reforçou que tal erro não voltaria a se repetir, já que a novela contratou uma assessoria especializada para a produção dos capítulos vindouros.

É evidente que a estratégia da equipe da novela não foi suficiente para sanar o problema, muito mais denso e diretamente ligado à estrutura que compõe a produção de novelas no geral, ainda tão branca. O tratamento das cenas seria outro se tivéssemos mais pessoas negras ocupando esses espaços de produção, e no caso da cena protagonizada por Vitória e Lupita, indivíduos praticantes de religiões de matriz africana. É preciso mais tato e sensibilidade em um país que tem uma dívida ancestral e que historicamente nunca concedeu ao povo negro uma reparação devida.

É também no mínimo simbólico que a cena mencionada no início do texto tenha sido exibida no dia que sucede o 15 de novembro, Dia Nacional da Umbanda, e dias antes do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. Por vezes nos enche de cansaço e desesperança perceber que mesmo diante de avanços pontuais e de um público que é hoje ciente de sua capacidade de cobrança e responsabilização, cenas grotescas como essas tornam a se repetir cada vez mais. Os dias comemorativos que deviam ser — para os povos de terreiro — apenas motivo para celebração, trazem consigo um misto de dor e resistência em meio a esses desafios constantes.

É racismo religioso, sim!

Em balanço feito pelo Disque 100, no primeiro semestre de 2019, as denúncias identificadas como intolerância religiosa aumentaram 56%, se comparadas com os casos de 2018. A parcela predominante dos denunciantes são indivíduos pertencentes a religiões de matriz africana. Assim como as dinâmicas já conhecidas do racismo, o racismo religioso também opera através das relações de poder: os mais fortes suprimindo os mais fracos.

Historicamente, as religiões afrobrasileiras enfrentaram um forte processo de marginalização. O artigo ‘A repressão policial às religiões de matriz afro-brasileiras no Estado Novo (1937–1945)’ de autoria de Nathália Fernandes de Oliveira, traça uma linha do tempo da forma como essas práticas religiosas foram tratadas ao longo de determinadas épocas no Brasil. Com uma revisita ao período colonial do país, descobre-se que as religiões de matriz afro-brasileira eram apontadas como feitiçaria pelo Tribunal da Santa Inquisição, alcançando o caráter de “crime contra a fé”. Mesmo que tenha ocorrido um abrandamento dessa criminalização nos anos posteriores (principalmente no Estado Novo, como evidencia Nathália), em momento algum pensou-se em políticas públicas que servissem de reparação a todos os danos causados às religiões afrobrasileiras. Assim, religiões como Umbanda e Candomblé cresceram em solo brasileiro marcadas pelas cicatrizes dos estereótipos e violências racistas. Violências que, aliás, acontecem incessantemente.

Nos últimos anos, um caso que repercutiu foi o da Mãe Dede de Iansã (Mildredes Dias Ferreira), que era ialorixá do Terreiro Oyá Denã, em Camaçari-BA, e morreu de infarto após sucessivos ataques cometidos por Edneide Santos de Jesus, frequentadora de uma igreja em frente ao terreiro de Dede. Edneide não só insultava a ialorixá como também outros indivíduos presentes no terreiro, jogando com frequência sal grosso no espaço e direcionando frases como “Sai, Satanás!” a quem ali estivesse presente. O incidente ocorreu em 2015, foi registrado na delegacia e seis anos depois, o Tribunal de Justiça da Bahia decretou a condenação de Edneide por racismo religioso, a primeira condenação no estado.

A resolução do caso traz esperança de dias melhores, mas também nos põe para refletir: Quantos casos como este acontecem diariamente, e passam despercebidos? Ou então, quantos indivíduos são vítimas desse tipo de violência e silenciam suas dores, por medo de respostas ainda mais violentas (e que não serão punidas)?

Sabe-se que parte da culpa dessa violência persistir está também no discurso impregnado nos mais diversos espaços, inclusive na teledramaturgia, lembrando dos exemplos que fomentaram o texto. Existe assim uma relativização das violências recreativas — as piadas, atitudes preconceituosas que ganham legitimidade por estarem sendo transmitidas na TV, como se fossem brincadeira-. Essas atitudes tidas como inofensivas vão se acumulando e continuam sendo processos danosos. A luta dos povos de axé contra o racismo religioso já é centenária e enquanto não houver uma preocupação em reverter esse tratamento desumano e caricatural, não deixaremos de levantar nossas vozes em busca de respeito.

“No fundo do calumbé

nossas mãos ainda

espalmam cascalhos

nem ouro nem diamante

espalham enfeites

em nossos seios e dedos.

Tudo se foi

mas a cobra

deixa o seu rastro

nos caminhos aonde passa

e a lesma lenta

em seu passo-arrasto

larga uma gosma dourada

que brilha no sol.

um dia antes

um dia avante

a dívida acumula

e fere o tempo tenso

da paciência gasta

de quem há muito espera. […]”

(trecho do poema Malungo, Brother, Irmão, presente no livro “Poemas da recordação e outros movimentos” de Conceição Evaristo. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.)

Texto e reportagem: Roberto de Sousa

Edição: Nicoly Serafim

Redes sociais: Roberto de Sousa

Supervisão editorial: Rostand Melo

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Nicoly Serafim
Luz Negra

Jornalista pela Universidade Estadual da Paraíba- UEPB, Podcast no Spotify Política de Quinta