Contra o idealismo, contra Boaventura de Sousa Santos

Habib Curi
Má  infinitude
Published in
5 min readJun 10, 2020

Apesar de ser a norma de toda e qualquer opinião, das mais corriqueiras às mais doutas, é profunda a dor que sinto ao ouvir análises que colocam o mundo de pernas pro ar. São sutis as assertivas que invertem toda e qualquer lógica de predicação; envolvidos por um mundo que só se interpreta de uma e mesma forma, fica difícil mesmo para aqueles já estudaram a fundo Marx escapar ao idealismo.

O sujeito para nós, seres burgueses, é sempre o homem; o homem, por seu turno, age sempre segundo sua consciência, seja ela explícita ou implícita, seja seu ato consciente ou inconsciente. Notemos que o resultado tautológico dessa perspectiva só pode ser: conceber o homem não só como a medida de todas as coisas, mas ainda como o produtor de todas as coisas. Assim, o motivo e a solução de todos os problemas está única e exclusivamente no homem, no gênero humano.

Ora, que é a filosofia hegeliana senão o movimento desse gênero sobre si mesmo trazendo à consciência a verdade de seu próprio ser, e afirmando como seu próprio fim a reconciliação do gênero consigo mesmo de tal modo que ele alcançasse, enfim, a consciência de si mesmo e se soubesse tal como de fato é? O que seria isso senão o ápice de toda a filosofia, de todo idealismo – no limite, de todo ser burguês?

Para a consciência que superou o idealismo, a natureza, o não ser do homem, não está entre ele e ele mesmo. A natureza não é mero meio sobre o qual o homem age e se constitui enquanto tal, ao contrário, é a natureza que age sobre si mesma por intermédio do homem. O homem sim é um mero meio entre tantos outros sobre o qual a natureza age e se constitui enquanto tal. Que é um intermédio de um ser senão uma parte dele?

“A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza.” – Manuscritos econômicos-filosóficos, boitempo, 2004, p. 84

A consciência materialista não deve portanto buscar os fundamentos dos eventos que atormentam a humanidade em suas formas ou no modo como as consciências lidam tais eventos, mas nos elementos que causaram tanto os eventos quanto as consciências que de algum modo se relacionam com eles. Não é, pois, o estado atual da sociedade um resultado das escolhas passadas; mas o resultado daquilo que levou e continua a levar a humanidade a agir acreditando que tais ações são escolhas dela. A totalidade social junto de sua consciência é produto de algo que está muito além de seu ser, ainda que seu ser acredite piamente que nada mais escapa a ele.*

A humanidade nunca decidiu nada, ela sempre foi um produto racional da irracionalidade que incessantemente a constitui. Toda crença humana que afirma o irracional como aquilo que não é racionalou seja, que afirma o irracional a partir da racionalidade, que sublinha o racional, que o faz ser e relega ao irracional a condição de não ser resulta do próprio irracional, da própria não razão. O sujeito absoluto é irracional; a racionalidade, enquanto seu produto, busca, a partir de si e, por isso, limitada a si mesma, racionalizar o irracional. Seu ato, o único ato que dispõe, é simultaneamente ato de falsificação absoluta quando é ato de acreditar que a razão, ou melhor, a consciência, o espírito, a sociedade, em resumo, sua forma espiritual total e impessoal é sujeito. Enquanto, inversamente, a razão é apenas um relês objeto, é um ser posto a acreditar que não é objeto, mas sujeito.

Minha dor é crônica, vez por outra aguda. Desde que fui posto a superar o idealismo e a reconhecer meu ser como produto de um mundo que devemos buscar racionalizar, me confronto quase que exclusivamente com consciências que estão completamente aferradas a este mundo. Elas não falam, por isso, muito mais do que trivialidades, na maioria das vezes a forma corriqueira das mais genéricas asseverações as transforma em expressões imediatas do espírito, portanto, como meio para se acessar os fundamentos do mundo que nos cerca. Contudo, as doutas consciências, principalmente aquelas que procuram ser críticas à realidade presente, se confirmam como os mais torpes veículos eruditos de vulgaridades, muitas das quais já foram e continuam a serem superadas na prática pela maioria absoluta da sociedade.

No caso em questão, entre diversas tolices verbalizadas por Boaventura de Sousa Santos, a maior que escutei até onde consegui ouvir de sua entrevista à Guilhotina, podcast do Le Monde Diplmatique Brasil, foi aquela que reproduz a crença que a experiência que estamos vivendo neste momento devido ao COVID-19 nos oferecem alternativas ao que ele crê ser “o capitalismo” ou “à esta forma de viver que a gente está”. Sem me esfalfar sobre a completa noção equivocada do velho português em relação ao modo efetivo como nossa sociedade opera e, consequentemente, ao conceito de capital; sublinho a ingenuidade de uma consciência que, por mais erudita que seja, continua a acreditar que a questão decisiva para a superação do mundo que nos cerca – que nos constitui – está na capacidade da humanidade de conhecer, imaginar, acreditar – ou qualquer categoria vinculada à consciência – alternativas.

Já é mais que hora de outras consciências descobrirem que a liberdade da consciência é efetivamente alcançada quando ela se reconhece determinada, limitada. Tal como afirmei em meu artigo:

O teórico revolucionário é o teórico que avança sobre si por se compreender como objeto do mundo. Ele sabe que a prática revolucionária não é mais do que a prática burguesa que aponta para o interior do mundo burguês. Ele sabe, pois, que a política, não é mais que uma forma deste mundo. Ele sabe, inclusive, que tudo o que o cerca e que o constitui é forma exclusiva deste mundo. O revolucionário sabe que o único modo de se realizar enquanto tal é se destruindo, é aniquilando a sua própria essência – por isso o suicídio lhe é inútil, pois é ato formal. – Materialismo em vertigem.

  • Seria uma bela tarefa para outro momento mostrar como a consciência não burguesa sempre se reconheceu como limitada e produto de um ser a ela superior. O idealismo, o cientificismo, o ateísmo, em resumo, todas as formas de pensamento secularizadas, que ou negam qualquer forma espiritual ou de algum modo a dominou nascem com o mundo burguês; são suas formas mais adequadas de consciência.

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