Hegel e a esquerda do coração

Victor Alves
Má  infinitude
Published in
6 min readMay 11, 2020
por: moscou design

Na Fenomenologia do Espírito (FE), Hegel nos apresenta um dos momentos da dialética da consciência, em seu processo de conhecimento de si e do mundo, chamado de Certeza e Verdade da Razão. Circunscrita ao âmbito da razão, mais especificamente da Razão que age, encontram-se a consciência que age com a lei do coração e a consciência virtuosa. Estas nos interessam de perto, pois, como qualquer uma das figuras internas à Razão, ainda não se descobriram no e enquanto Espírito. Ou seja, o mundo social e a história, para os indivíduos nesse estágio do conhecimento, ainda não são propriamente conhecidos. O móbil de sua ação, no entanto, é especialmente interessante, em face das demais figuras, na medida em que ele se encontra no interior do indivíduo; no seu coração.

O individuo que age com o coração vai além. Ele acredita que os seus atos, porque provenientes do coração, são sempre bons; e, porque todas as individualidades são dotadas de um coração, o mandamento moral supremo e que rege a todos é aquele que diz: “siga o seu coração”. Se se seguisse essa máxima não poderia decorrer nenhum mal de sua ação e o mundo poderia ser um mundo harmonioso.

A consciência saída da dialética interna à Consciência-de-si e que, portanto, ingressa no mundo da Razão, encontra, porém, um mundo que se lhe opõe. Uma realidade distinta de si e inessencial; que deve ser, sob a figura imediatamente anterior à que ora comentamos (a do Prazer e da Necessidade), consumida para a sua própria satisfação. O curso das coisas é, assim, contrário à lei do coração e acaba por, inclusive, corromper os indivíduos.

Trata-se, aqui, do mundo liberal por excelência. Os indivíduos, embora tenham se reconhecido mutuamente a partir da superação da dialética do senhor e do escravo, se encontram em um mundo social, porém, atomizado. Sabem-se partícipes de um todo, mas que não é mais do que somatória simples das partes. Ainda assim, não se possui a consciência de que parte daquilo que afeta os indivíduos é produto da ação deles mesmos e de que o legado da humanidade que lhes antecedeu inere a sua própria existência.

Nesse sentido, o mundo lhe é estranho e a escolha que se impõe é: ou bem seguir a ordem reinante e se frustrar internamente, ou bem seguir a lei do seu coração. Porém, ao agir logo se percebe a inadequação da operação com aquilo que residia no seu coração, anteriormente à ação. Conforme coloca Hegel, a atualização faz com que a lei cesse de ser aquela do coração. Já faz parte de um mundo que o indivíduo não se reconhece como atuante.

Como aquilo que lhe afeta (negativamente) não pode ser produto de um coração tão puro, resta à consciência atribuir o mal ao outro, já que o seu coração é bom e sua ação dele decorre. Agora os outros corações lhe são opostos e vis, a perversão é do Outro; de alguns que teriam colocado o mal na sociedade originariamente boa. Assim, a conclusão a que chega o indivíduo de bom coração não pode ser sustentada. Se trata, nesse estágio, do jogo imanente das individualidades que procuram se realizar, fazer valer as aspirações individuais; do qual o agir com bondade também está incluído. No entanto, esse jogo escapa ao controle da totalidade dos indivíduos; mas, nesse ponto, a consciência ainda não conseguirá perceber este fato.

A solução encontrada pela consciência de razão para esse quadro problemático será dado na transição para a figura da Virtude. Nessa passagem, trata-se de afastar a individualidade que perverte o mundo. A grande descoberta é a de que o mal provém da natureza malvada de alguns, do vício introduzido no mundo pelos não virtuosos. Nesse ponto a suposta bondade da lei é percebida como seu oposto: atualizada no mundo ela não corresponde à bondade dos corações e, portanto, deve ser combatida. Trata-se de “perverter uma vez mais o curso pervertido do mundo” por meio da batalha entre os indivíduos virtuosos e os não-virtuosos. Essa consciência é que irá potencialmente transformar o Bem, ainda ideal, em ato.

O estágio mais aguardado, a descoberta do espírito, é reservado a seções posteriores do texto da FE. Só posteriormente, no processo tanto individual como coletivo, mas sempre histórico, de desvelamento do todo social (e cósmico, para alguns) que nos envolve, é que o mundo se torna algo que supera os indivíduos atomizados. Avancemos mais ainda no tempo até nossos dias. Leiamos o cenário político atual sob as lentes destas duas figuras hegelianas.

O mundo para maior parte da esquerda hoje é o mundo da Ilustração; o mundo dos liberais e do empirismo que aboliu toda a metafísica. O curso do mundo é o famigerado “todos contra todos”, mas que; de um lado se colocam os bons, que possuem a superioridade e o dever moral de instaurar o paraíso na terra; de outro se tem aqueles aos quais é preciso combater porque são mesmo pessoas ruins.

Toda essa dialética deixa entrever um fato perturbador em face da realidade que nos acomete em pleno século XXI: a análise da maior parte daqueles que se dizem de esquerda ainda não descobriu Hegel; permanece carente de Espírito. Dizendo de outro modo, a consciência de bom coração e de virtude não compreende que a realidade possui estruturas que superam a imediatidade da experiência sensível, o mero agregado de partes.

Ocorre que, onde a imediatidade e a certeza de o empírico esgotar toda a realidade imperam na análise político-social, não há ciência, nem é preciso haver; parafraseando Marx. O mundo é autoexplicativo e se deixa entrever tal como de fato é; a aparência esgota todo o ser. Tomou-se a palavra “materialismo” pelo seu sentido vulgar e nele se contentou.

Nesse sentido, é preciso compreender o legado hegeliano e seus efeitos na teoria social posterior. O seu feito tem o estatuto de uma descoberta; não pode ser tomado como mero ponto de vista, olhar parcial ou outro termo qualquer das metodologias contemporâneas. É, a bem da verdade, o desenvolvimento de uma contribuição aristotélica: a de que o Todo precede às partes. No âmbito do espírito, dos seres humanos e do seu mundo, é a inversão da máxima Thatcheriana. Há algo que nos preexiste, que nos supera e nos conforma enquanto indivíduos. Esse algo possui estatuto ontológico e é a metafísica dos seres humanos: elaborada por eles e sofrida por eles sem que eles o saibam plenamente.

A realidade é um infinito que põe a si mesmo, atualizado pelas nossas próprias mãos. Isso, por certo nos implica e confere horizonte à mudança social tão necessária. A tentativa hegeliana louvada aqui é a de tornar a metafísica algo imanente. Uma metafísica que, da parte de Marx, pertence a esta sociedade; não se trata de colocá-la teoricamente no mundo, mas de derivar o método de análise do próprio movimento real das coisas e, portanto, identificar as estruturas onde nós de fato as colocamos pela prática.

Essa reabilitação, que pode soar contra-intuitiva ou não condizente com o desenvolvimento obtido pela ciência moderna, mostra sua necessidade quando nos confrontamos com a irracionalidade sistêmica e com a série de constrangimentos a que somos submetidos sem que saibamos de onde ou porque se dão; para não dizer dos incríveis retrocessos humanitários que podem ser observados na prática do modo global de organização da vida contemporânea.

Daí a possibilidade de que o mundo humano seja compreensível ou decifrável: o real é racional. Não porque se apresente assim de saída, mas porque quanto mais vamos a fundo na investigação mais percebemos, com Hegel, que nada há por detrás para descobrir senão aquilo que nós mesmos colocamos lá, na coisa-em-si; nas relações sociais, nas ideologias, em suma, no nosso modo de produção. Desvelamos nossas próprias categorias no mundo colocado em circulação por nós mesmos; com Lukács, por nossos pores teleológicos.

Assim, qualquer alternativa para o mundo que ora habitamos que não aborde qualquer noção de estrutura, enquanto algo que nos formata, mas do qual somos também participantes ativos, contribuintes e reprodutores; não pode ser levada a sério desde o século XIX. É a via mais difícil, sem dúvida; analítica e praticamente. Até porque, com Marx, sabemos que a verdadeira ciência é a história. Esse sistema de atualização recorrente da nossa própria realidade social só será desvendado por completo com a própria ruptura radical e a substituição deste modo de atuar (produzir em sentido lato) por outro: quando as determinações que nos impelem já não forem as mesmas, em essência.

A apropriação desse conhecimento científico-filosófico já acumulado na história e a sua utilização em prol dos objetivos prementes de alguma civilidade humana mínima nos é imposta. O legado de Hegel e da tradição que ele inaugura é parte crucial nesse edifício. Trata-se de abandonar o diagnóstico que é guiado pelo coração e pelo moralismo. Esse é o dever-ser à esquerda.

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