Manifesto da imoralidade comunista

Habib Curi
Má  infinitude
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6 min readJun 14, 2020

Que partido de oposição não foi acusado de ser comunista por seus adversários no poder? […] É tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências […]. – Manifesto Comunista

Ilustração: Luísa Bacelar — https://www.behance.net/luisabacelar

Sempre me questionam sobre o porquê de minha insistência em distinguir nós, comunistas, da esquerda. A resposta é simples: nós somos, aos olhos burgueses, imorais, enquanto a esquerda busca ser o grande bastião moral do mundo, burguês.

Não cansarei jamais de repetir: a esquerda é filha deste mundo e por este mundo trabalha! Nós somos revolucionários e trabalhamos pelo fim deste mundo! – Somos os anjos caídos.

Somos todos – comunistas, anarquistas, esquerdistas, liberais, etc – filhos de um único e mesmo Deus: do todo poderoso Deus-mercadoria. Sabemos, porém, que nosso pai, aquele que nos produz diariamente, é nosso próprio produto – nós o produzimos. Sabemos ainda que seu domínio está chegando ao fim, que o dia do juízo final já se anuncia. Nossa imoralidade nasce assim junta de nossa liberdade, da sabedoria de que toda moralidade burguesa é filha dos grilhões que nós mesmos lançamos aos nossos pés.

Supressão da família! Até os mais radicais se indignam com esse propósito infame dos comunistas. – Manifesto Comunista

Contra o capital! Contra seu Estado! suas leis! seu despotismo! sua moral! suas religiões! sua família! Acusam-nos de todas as promiscuidades. Erram! Pois somos a promiscuidade. Somos os anjos caídos – demônios! Saltimbancos libertinos, desavergonhados e capazes, por isso, de ser o verdadeiro novo! De ser o que os velhos santos adoradores de um deus morto, incorpóreo, impessoal, indiferente jamais poderiam imaginar: somos a vida, o corpo, a pessoalidade, a mais absoluta e viva diferença em dança, da comunhão em alegria, em delírio.

Horrorizai-vos porque queremos suprimir a propriedade privada. […] censurai-nos por querermos abolir a vossa propriedade. De fato, é isso que queremos. – Manifesto Comunista

Acusam-nos de querer abolir a propriedade privada. Não mais nos limitamos a isso, queremos extermina-la, a ela e a qualquer ideia que se vincula à Coisa, pois nós nos cansamos da vileza da matéria morta e nos apaixonamos terrivelmente pelo gosto do que é conosco em vida! A propriedade privada, o direito privado, a vida privada – essas formas mortas da vida devem finalmente decompor. O cheiro bilioso nos entorpece, nos sentimos imersos em um oceano de vômito. Que sejamos a morte deste já finado mundo.

Maldita esquerda que se imagina superior por velar o morto. Baila com seus vermes e vê ali um sinal de vida. Gritamos a ela: largue-os e deixe que façam seu trabalho, o corpo é morto e esse cheiro nos enjoa! Mas ela permanece aferrada aos asquerosos movimentos de seus pares e ainda crê-se no fétido, pois é malcheirosa.

Ela trai! Sabemos. Há muito fomos avisados. Há muito acompanhamos seu atuar. A moral da antiga pequena-burguesia permanece imaginando-se superior. Talvez, de fato, ao menos neste mundo, ela seja – ela ainda consegue bailar puxando sua bola de ferro. A libertemos de tal difamante acusação e assumamos a terrível pecha de comunistas! Declaremos o que somos e passemos a nos deliciar ao sermos qualificados como aquilo que nossos inimigos tanto odeiam!

Enquanto a esquerda se ocupa com a justiça, com o justo, com a lei e a ordem. Nós usamos a justiça burguesa, o justo burguês com sua lei e sua ordem a fim de subverter toda realidade burguesa. A justiça, lembremos, não é para nós algo dado em si mesmo, diferentemente é fruto da sociedade que não faz da fome a justa causa do roubo. O justo burguês apela incessantemente à violência – a dor é própria ao corpo que tortura um outro ou a si mesmo. Não à toa, nossos dançarinos acompanhados dos vermes acreditam que há neste mundo possibilidade de justiça, pois imaginam que por haver violência há como eliminá-la. Torturam-se incansavelmente imaginando como mudar a natureza da coisa, tentam disfarçar o mau cheiro com perfume, mas o odor pútrido permanece.

Os comunistas também são acusados de querer abolir a pátria, a nacionalidade. – Os operários não têm pátria. Não se lhes pode retirar aquilo que não possuem. – Manifesto Comunista

O marco da esquerda está no único horizonte político que tem a disposição, o horizonte burguês, o horizonte da pátria. Ela se separa de si mesma ao cair na ilusão de imaginar o público como distinto do privado – seu corpo se coloca contra sua própria sombra. Mais uma vez, sua boa intenção revela-se uma patente ingenuidade que não consegue diferenciar a vida da morte, o que pensa de si do que realmente é. Por isso, ela continua cega e reproduz inconscientemente este asqueroso mundo. Levanta-se contra os comunistas e clama pela unidade nacional – são burgueses!

Medíocre imaginário pseudo-revolucionário; com vestes coloridas continua a dançar ao lado de seu amado defunto. A política lhe é cara, por meio dela chega ao Estado tutelado pela crença que ele é capaz de conter o afã pelo lucro em prol da dita sociedade, não sabe, infelizmente, que a sociedade já é integralmente o capital e que a violência não precisa mais ser física. A dor da auto-tortura se mostra na profunda certeza de sua incapacidade, de seu vazio absoluto, da percepção que este mundo está plenamente fora de seu controle, que viver nele é sinônimo de sofrimento, que mesmo acostumado a sentir apenas sombras da vida não mais consegue escapar da mais profunda tristeza. Sozinho encontra-se em meio à política.

O lucro, o dinheiro sobre si, parece-lhe como o grande mal a ser combatido, ou, ao menos, a ser controlado. A esquerda se apega a vulgar forma com a qual o mundo se apresenta a ela. Nós, comunistas, sabemos que tal forma só pode ser nós mesmos; que lutar contra a forma não é mais do que um permanente esforço fadado ao fracasso. Tolo aquele que declara o fim da gravidade ao erguer uma pedra. Somos o próprio lucro, ele é o Estado, nossa dor é dinheiro, nossa liberdade só é, portanto, quando nos colocamos como o sujeito causador de todo mal e, assim, nos descobrimos como objetos de nosso próprio nefasto agir. Assim se impõe a radicalidade comunista que não teme acusar a si mesma, nem levantar-se contra tudo e todos, inclusive contra aquilo que faz dela o que ela é.

Ilustração: Luísa Bacelar — https://www.behance.net/luisabacelar

A imoralidade comunista é a sabedoria profunda capaz de se reconhecer culpada, portanto, capaz de buscar a liberdade. Ela compreende que é produto deste mundo e que este é seu produto; sabe, assim, que a liberdade só pode ser alcançada com a destruição deste mundo. Ela está decidida a se erguer violentamente e a impor um novo mundo, a impor o reino da liberdade. Ao mundo onde os valores burgueses não mais terão vez, onde poderemos finalmente nos abraçar e nos amar, libertos de qualquer violência externa ou auto imposta. Nos amaremos! Nos amaremos como nunca ninguém jamais pôde imaginar.

Assumamos que somos o que nos acusam!

Somos imorais! Contra toda moral – burguesa. Somos bandidos! Contra toda propriedade – burguesa. Somos subversivos! Contra toda estrutura – burguesa. Somos baderneiros! Contra toda ordem – burguesa. Somos promíscuos! Contra toda família – burguesa. Somos libertinos! Contra toda frigidez – burguesa. Somos cruéis! Contra toda benevolência torturante – burguesa. Somos assassinos!

Que assassinemos o morto – burguês!

Aos que ainda estão com este mundo, mas que se cansaram de dançar com os vermes, oferecemos benevolentemente a mão, com a outra apontamos para os grilhões e declaramos que só poderão sentir o delírio da vida quando se entregarem ao comunismo!

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