Materialismo em vertigem

Habib Curi
Má  infinitude
Published in
4 min readMay 1, 2020

Costuma-se acreditar que o local por excelência da prática é a política, e isso sem jamais se compreender o que é uma ou outra. A prática é posta como um mero ato de imposição, seja contraposta à certa realidade, seja afirmando outra; a política é a política do senso comum que carrega como regra a pequena política, a chamada politicagem. O materialista bronco em completa vertigem não se sabe enquanto objeto, por isso jamais entende a realidade que o cerca, que o constitui. O estado mórbido é sintomático. Nele o moribundo se sente sujeito e crê que está vivo na exata medida em que atua — mal sabe ele que o agir não é dele, que seu pensar não é revolucionário e que a política só é na medida que ele é enquanto ser medíocre, limitado, posto, determinado, enquanto indivíduo burguês.

Imagina-se como personagem que produz com outros o espetáculo; nunca compreendeu que é o próprio drama que o concebe como personagem. O fora não existe, na medida em que não estando não o é. Em outras palavras, não há personagem fora do palco, se fora está, não é personagem. Pergunto-me: pode-se deixar de ser personagem quando o mundo é o palco e o drama é o todo que lhes dá vida? Respondo de modo retórico: teria tal drama concebido personagens que pensassem em si enquanto objetos de um além de si? Em nosso drama burguês, tanto na moral quanto na religião, os personagens são criados acreditando que eles fazem o espetáculo, que cada um é especial e suas ideias são a expressão imediata do grande princípio de nosso tempo: a liberdade.

Deus está morto e foram os homens quem o mataram. O mundo prosaico é o mundo que não precisa de nenhuma figura de domínio, pois já estão todos aferrados à ideia de liberdade. Aos loucos a reformulada caverna de Platão cuja saída, como outrora, está na ideia; mas não mais na altiva ideia pura e perfeita, e sim na ideia prosaica e cotidiana que acredita na informação. A exigência do estudo é, diga-se de passagem, a prova cabal da falta de espirituosidade de nosso eu-lírico — impressiona como os mais diversos atores sempre apelam à ideia suprema da informação como meio de superação de todo e qualquer conflito. — Ao que pesa, dessas bocas não saem apenas as mais profundas superficialidades de um tempo que engoliu todos os tempos, mas a expressão perfeita da inoperância dos que creditam a si próprios a pecha de sujeitos. A revelação divina está na consagração do prático na condição de manifesto fantoche. Ele nada produz senão o movimento definido pela tal informação. A informação, por sua vez, parece-lhe subordinada a ele, pois é ele quem a busca, escolhe e livremente a segue. Feliz da informação não escolhida, não se envergonhou por não estar vinculada a tão vil ser.

Mas ainda há vida, e sua prova está no caos. Sobre a impossibilidade probabilística ainda impera o espírito cheio de vida, de conteúdo, de diferença – grita Adorno! No drama da vida burguesa, todos aparecem presos às suas singularidades: ou se tem a própria impotência ou se tem a obrigação de alterar o mundo, os atos são ou letárgicos ou preenchidos de idiossincrasias. O mundo, pois, escapa a eles, exatamente por serem demasiadamente mundo. Assim, diariamente, o mundo burguês gera a vida, qual Deus outrora fizera: os homens que são a sua imagem e semelhança, são o seu rebanho.

Mas o mundo burguês não é divino, sua espirituosidade prega-lhe peças e não só afirma seu limite objetivo como também antecipa a inteligência que se sabe como inteligência burguesa, portanto limitada e, por isso, obrigada a avançar sobre o mundo que a constitui. O teórico revolucionário é o teórico que avança sobre si por se compreender como objeto do mundo. Ele sabe que a prática revolucionária não é mais do que a prática burguesa que aponta para o interior do mundo burguês. Ele sabe, pois, que a política, não é mais que uma forma desse mundo. Ele sabe, inclusive, que tudo o que o cerca e que o constitui é forma exclusiva deste mundo. O revolucionário sabe que o único modo de se realizar enquanto tal é se destruindo, é aniquilando a sua própria essência – por isso o suicídio lhe é inútil, pois é ato formal.

Pobre burguês-revolucionário de um tempo burguês, jamais pôde imaginar que tudo o que imagina sobre o tempo futuro não é mais que a mais tacanha e vulgar expressão de um mundo que será destruído. Pobre burguês-revolucionário que não se sabe enquanto burguês, seu ato revolucionário nunca foi nada além de um reafirmar deste mundo burguês. Pobre burguês-revolucionário que será maculado pela história como reacionário.

Resta ao intelectual revolucionário ter clareza de sua pequenez relativa. Ele compreende que o conteúdo encerrado em seu ser é uma antecipação casuística de uma forma que só se manifestará junto ao clarão revolucionário. A prática, por isso, deve sempre perseguir a vindoura aurora. Sábia, a consciência revolucionária não se perderá procurando preparar o tão esperado dia, mas procurará se preparar para ele. O revolucionário sabe que carrega sobre os ombros a maior das tarefas, mas sempre terá certeza que o novo mundo só será erigido pelos bilhões que compõem o espírito. Ele se reconhece como mais um entre tantos cuja única e exclusiva tarefa é inaugurar o fim da história.

--

--