O fim do governo Bolsonaro e o ovo da serpente

Habib Curi
Má  infinitude
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10 min readMay 24, 2020
Ilustração: Luísa Bacelar — https://www.behance.net/luisabacelar

Para o alento de todos o palco está montado. Em breve se confirmará a previsão de muitos, incluindo deste autor: o fim inequívoco do governo Bolsonaro. Não devemos, porém, nos esquecer que o ovo da serpente foi chocado – o cômico governo anuncia uma provável tragédia.

A democracia, qual a conhecemos, não é poder que emana do povo; é mero direito a ele concedido de escolher parte de seus representantes por meio do voto. A cargo de poderes outros está o “direito” de cassar ou revogar a representação política. Formalmente, cabe à Câmara e ao Senado julgar, por exemplo, o presidente da República; por detrás dos parlamentares estão as forças sociais-econômicas cujos poderes não se limitam a nenhuma regra pré-estabelecida. O establishment é de fato o grande inimigo de Bolsonaro, ele quer sua cabeça e nada o impedirá de tê-la.

São seres humanos de carne e osso, envoltos em dúvidas, impulsos, sentimentos que fazem nossa história. Abandonemos, pois, todo tipo de narrativa conspiratória.

A análise social não demagoga observa necessariamente que o discurso vocalizado pelos principais veículos de imprensa alteram-se ao longo do tempo. A observação dessas transformações revelam o movimento realizado pela consciência que domina cultural e economicamente o país. Corretamente, se reconhece essa singularidade dessa consciência quando, principalmente seus detratores, a chamam de “grande mídia”, “imprensa burguesa”, “imprensa chapa branca” etc. Todavia, o período Bolsonaro revelou que há um conflito estabelecido no interior dessa consciência: ao mesmo tempo que ela apoiou indiscriminadamente a política econômica e de segurança de seu governo, atacou de modo cada vez mais violento suas políticas ambientais e estabeleceu paulatinamente uma verdadeira guerra cultural contra o bolsonarismo olavista.

O líder ideológico do governo acerta ao reconhecer o brasileiro médio como conservador; seu conspiracionismo decrépito erra ao crer que o tal establishment senta à mesa e define a pauta da redação da Folha de São Paulo. Seu delírio acerca de tal domínio ideológico realizado pelo chamado Marxismo Cultural guarda, todavia, certa verdade quando conseguimos nos aproximar do ponto de vista senil do Jim Jones da Virginia. Olavo Carvalho identifica o comunismo e seus ideólogos à esquerda de tal modo que passa a imaginar que toda forma de cultura reivindicada por grupos não-reacionários são formas comunistas, socialistas, esquerdistas, petistas etc. Coerentemente dá o passo seguinte e faz de tudo aquilo que não é próprio à sua concepção de conservadorismo – do que seria para ele a cultura judaico-cristã – uma expressão de “comunismo”. Ora, a partir de tais premissas, devemos sim concluir que culturalmente o comunismo dominou o mundo.

Mal sabe Carvalho que não foi em uma reunião aos moldes da feita por Bolsonaro e seus ministros que se estabeleceram as estratégias para que o “Marxismo Cultural” se tornasse hegemônico. Para o assombro da inteligência astrológica, essa hegemonia é resultado puro e simples da forma como o capitalismo se organiza – não da burocracia comunista, mas da liberdade de mercado. Os rechaçados valores que o filósofo – como todo bom filósofo, Olavo crê que seu mundo imaginário é real – identifica ao chamado “Marxismo Cultural” são os bons e velhos valores burgueses, aqueles que surgem e se desenvolvem com a sociedade de mercado, com a mesma sociedade que produz cotidianamente os verdadeiros valores judaico-cristãos – não aqueles estranhos valores de seu delírio senil.

Não são os comunistas sentados em roda com suas boinas e charutos que criam os valores veiculados em parte pela grande imprensa e que, de fato, dominam a maior parte do pensamento acadêmico – em especial aquele que compõem as ciências sociais. Muito longe disso, é da vida urbana das grandes cidades – onde o diverso se encontra e o indivíduo é firmado como senhor de si – que surge a cultura atéia com sua sexualidade fluida e sua apologia às escolhas individuais. É essa camada média urbana, por meio de seu acesso à alta educação, aos fluxos culturais internacionais e aos tráficos econômicos, que ocupa os palcos, as telas, as cenas, os veículos de imprensa, as curadorias dos museus, as colunas dos jornais, etc.

Por um lado, Carvalho, inspirado por suas leituras dos grandes clássicos marxistas, acerta tanto em reconhecer o conservadorismo do brasileiro médio, como em afirmar que as manifestações culturais formais desta sociedade não resultam diretamente de seu exemplar médio, mas de uma camada social privilegiada. A partir de tal acertada constatação, ele se favorece ao instigar o conflito ideológico-cultural entre esses grupos abrindo caminho para sua própria narrativa. Por outro lado, o astrólogo erra ao não compreender o que efetivamente produz esses dois grupos enquanto, no presente caso, momentos contrapostos de uma e mesma sociedade. O limite de sua ideologia está no mesmo lugar do de toda ideologia burguesa: crê que as consciências são determinantes, ao passo que todas as formas da consciência – suas manifestações artísticas, religiosas, políticas, etc. – não são mais que expressões de forças estranhas a ela.

Voltemos ao establishment. Quando a forma política passa a entrar em conflito aberto com os interesses econômicos – logo, com os valores, ideais, sonhos, desejos, ganâncias, etc. das pessoas reais que os formam – é revelado que o verdadeiro conteúdo desta sociedade é o capital, que o verdadeiro poder econômico, político e cultural está nele e que toda e qualquer forma que se levantar contra ele sem a pretensão de destruí-lo irá sucumbir.

Quando dissemos que o período Bolsonaro revelou um conflito já há muito estabelecido no interior da consciência que domina culturalmente e economicamente o país, nos referíamos ao já clássico choque entre aqueles que de fato dominam tecnicamente a cultura e aqueles que dominam os meios de propagação cultural – a eterna briga entre redação e direção do jornal. Foi dessa contraposição que surgiram as pitorescas edições dos principais veículos de imprensa. Se, por um lado, havia um apoio incondicional às reformas e para isso uma defesa explícita do governo Bolsonaro, inclusive relevando ataques diretos do chefe do executivo à impressa, por outro, foram muitas as colunas, os artigos, as vozes de jornalistas sérios e ocupados com os mais diversos temas que se levantaram contra a boçalidade bolsonariana.

Paulatinamente esses grupos de jornalistas ligados na maioria das vezes às pautas não econômicas ganharam cada vez mais força e começaram a questionar até onde vale a pena apoiar um governo que coloca em risco tantos outros valores em detrimento da maldita economia. Estava claro que a existência da sociedade de mercado não depende exclusivamente da economia, mas é um complexo social total que possui valores e princípios de todo tipo de natureza dos quais não pode abrir mão sem colocar em risco sua própria sobrevivência. A favor das vozes críticas vinham ainda os parcos resultados econômicos e a cada vez mais clara percepção de que a prometida pungência econômica talvez sequer viria a ocorrer.

As diferentes expressões vocalizadas pela grande imprensa têm como base a própria sociedade, não devemos jamais nos esquecer disso. São pessoas reais, que circulam, viajam, vivem as cidades, conversam com outras pessoas, frequentam diversos ambientes, vão ao teatro, ao cinema, aos parques, às festas, etc. O tráfego cultural é constante, não está à margem ou além da sociedade. Os principais escritórios estão, é verdade, em São Paulo e no Rio de Janeiro, os jornalistas e chefes de redação compartilham os mesmos ambientes do grande capital paulista e carioca, mas também estão em Brasilia, são parte constante da vida política do país. Acabam assim por exprimirem de forma bastante precisa tanto em sua diversidade quanto complexidade o que os grupos com maior poder do país pensam e sentem.

Não há dúvida, pois, que o desejo desses grupos hoje é a saída de Bolsonaro, do estorvo – como foi qualificado em editorial recente pelo Estado de São Paulo.

Reportagem de capa da Folha de São Paulo deste domingo (24/05/20)

No Brasil, o povo elege – não sem antes uma bela dose de influência econômica –, mas quem decide sobre o destino de um eleito são os grupos de poder. Bolsonaro, como Dilma anteriormente fizera, colocou-se contra esses grupos e achou que, por ter sido eleito, teria o direito de agir segundo sua própria consciência. Mas Bolsonaro, mal imagina ele, tem sobre Dilma uma vantagem: seu guru intelectual leu Marx. E, como todo mau leitor de Marx, superestimou a importância do nível econômico. Ainda assim, isso lhe dá uma vantagem tremenda em relação à petista, que não é nem mesmo uma espécie vulgar de marxista. Não à toa Carvalho sabe da importância de conquistar o grande capital, de ter ao seu lado o difamado mercado.

Bolsonaro, ao fazer de Guedes o superministro da economia, reeditou a “Carta aos Brasileiros” de Lula e firmou um acordo tácito com grandes grupos financeiros. Enquanto a vida econômica mundial seguiu sem maiores desafios para o país, Guedes foi aplaudido pelo mercado ao dar vazão às suas ultrapassadas ideias liberais. O grande capital brindava à brutal política de transferência de renda das camadas baixas às altas e à liquidação do Estado brasileiro. Ainda que marcada por uma política externa vexatória, a economia parecia caminhar ao gosto do freguês conterrâneo que, por isso, continuava a apoiar o estabelecimento que lhe oferecia tal serviço.

Bolsonaro entende, não se sabe se através de seu astrólogo ou de seu instinto de sobrevivência, que um colapso econômico o levará à lona. Até para o maior dos asnos, já está clara a iminência desse colapso; institivamente, pois, ele tenta de modo atordoado utilizar-se desse fato para se livrar da degola. Sem coração, sem nenhum tipo de empatia, torpe como tantos medíocres e egoístas brasileiros que já não têm qualquer senso de amor, Bolsonaro aposta todas as fichas contra as políticas de contenção social, contra as políticas que poderiam evitar o genocídio que o Brasil já está vivenciando. Alucinado, acredita que haveria qualquer chance da economia sobreviver com ou sem medidas sociais restritivas; desesperado, imagina que pode transferir a culpa do vindouro colapso econômico para prefeitos e governadores.

A maldade e a loucura aqui se encontram no vazio da ignorância. Ele não reconhece que seu governo já estava perdido mesmo antes do início da crise do Corona. Àquela altura já estava claro que a economia não iria se recuperar e já se ventilava que Bolsonaro cortaria a cabeça de Guedes. Veio a crise sanitária, o chão sumiu e ao seu lado, ainda que de máscara e descalço, continuava lá seu fiel amigo liberal. Guedes reafirmou o compromisso com todo tipo de loucura do governo e começou a operar de forma dúbia. De um lado ele passa a imagem de que está apoiando as medidas emergenciais, de outro ele não age para efetivamente fomentá-las. Há uma esperança que a máxima do torpe marxismo petista seja agora a salvação de Bolsonaro: quanto pior, melhor.

A esperança, no caso, é que o pior seja econômico, já que a tolice conspiratória crê piamente que o empilhamento de corpos não acontecerá e se acontecer o brasileiro não vai se importar, pois o brasileiro médio é forjado na e pela violência. Com uma estranha esperança indiferente no peito, acentuam a crise ao não executarem plenamente as políticas emergenciais aprovadas pelo Congresso a fim de aumentar a tensão social e de transferir toda a responsabilidade para os estados e municípios – os quais possuem poucos instrumentos econômicos para realizar as políticas sanitárias necessárias. Acreditam que podem culpá-los ao mesmo tempo que esperam se safar impunemente dessa completa perversã.

Ilustração: Luísa Bacelar – https://www.behance.net/luisabacelar

Mas a pilha de corpos virá e o último ato para a queda inerente de Bolsonaro ocorrerá. Nem mesmo o oportunismo de Tofolli, Aras, do Centrão e dos militares conseguirá se esquivar da violenta pressão que já se impõe sobre o governo. A calma e o silêncio dos presidentes da câmara e do senado já confirmam que o tempo das negociações e conversas já se encerrou. O que está operando no interior do processo político é a maturação do modo pelo qual Bolsonaro será deposto. Lembremos que na história moderna do Brasil não houve nenhum ato político que não procurou se ancorar em uma justificativa legal – nossa história de golpes sempre se escondeu atrás das, ainda que pálidas, formas jurídicas.

Mas o ovo da serpente foi chocado. Esse curto período de tempo foi suficiente pra organizar o que há de mais podre no mundo burguês. Esse lixo humano agora se conhece e tem consciência da cultura que partilha; esse cancro sem presidente deverá se radicalizar ainda mais, deverá ter em breve novas lideranças que serão provavelmente menos ignorantes e mais cruéis.

Os últimos anos foram ainda suficientes para deixar claro que “as forças e os interesses” que levaram Vargas ao suicídio, “as forças terríveis” que levaram à renuncia de Quadros, as “forças poderosas” que derrubaram Jango continuaram a existir ao longo de toda a Nova República. Que tais forças continuam a regular a política do país; que tais forças, por mais que impeçam os descalabros de um mundo bolsonarista pleno, não permitem jamais que a vida frua em plena liberdade. É bizarro afirmar que hoje a energia que se levanta contra as forças reguladoras do país, é a energia de morte do bolsonarismo; enquanto a energia que se coloca ao lado das forças reguladoras é aquela que ama a vida. Ainda que não haja escolha neste momento para aqueles que amam a vida, jamais devemos nos esquecer que são exatamente essas forças reguladoras que impediram e continuam a impedir a fruição plena da vida.

Safatle erra ao afirmar que a esquerda perdeu seu caráter revolucionário – de fato ela nunca o teve. Ele erra ainda ao acreditar que a direita tomou para si a potência revolucionária – de fato isso não é direita. O que nasceu com o bolsonarismo e se autoproclama como extrema direita é algo revolucionário, ou antes, é algo anti-sistêmico, anti-capitalista. O mundo burguês caindo sobre si gera a partir de si mesmo os elementos que operam por sua destruição. Nada estabelece, pois, se esses elementos são formados pelo que há de mais nobre ou pelo que há de mais torpe deste mundo, por isso nada pode definir de antemão o caráter virtuoso de uma revolução. Devemos nos preparar, mas sem jamais perdermos o amor incondicional à vida.

Que nos preparemos para as próximas batalhas. Que o amor à vida vença a morte!

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