O mistério da construção especulativa d’A crítica da Crítica crítica

Habib Curi
Má  infinitude
Published in
7 min readApr 14, 2020

Fui instado por um amigo a comentar o famoso subitem do Capítulo V d’A Sagrada Família, ou, A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes: O mistério da construção especulativa. Nessa famosa passagem Marx assevera sobre o modos operandi da dita “construção especulativa” ou “construção hegeliana”, seu mistério, todavia, não foi revelado.

Apesar do próprio Marx anunciar sua crítica como um ataque “à construção especulativa de um modo geral”, veremos que sua crítica permanece como uma crítica da Crítica crítica, uma crítica àqueles que acreditaram ter criticado Hegel, mas que de fato estiveram sempre um passo atrás do verdadeiro pensamento especulativo. Por isso, esta crítica deve ser compreendida como direcionada aos hegelianos de esquerda, em especial a Szeliga.

Ao invés de falarmos, como faz Marx, diretamente aos filósofos, busquemos observar um filósofo em um mercado de frutas. O sr. Filósofo Szeliga, após um dia de trabalho recluso em seu escritório, resolve aproveitar o resto do dia
de sol visitando o mercado de sua cidade. Lá vê maçãs, pêras, morangos, amêndoas, seres reais que poderia muito bem tocar, levar para casa ou comer. O sr. Filósofo, porém, decide que ele não deveria se rebaixar a tal superficialidade efêmera e voluptuosa, ele deveria pensar sobre aqueles seres a fim de alcançar sua verdadeira essência. Depois de muito observar cada um desses seres, compreende que todos eles estavam ali casualmente, que iriam certamente desaparecer dentro de alguns dias: seriam ou comidos ou processados ou simplesmente apodreceriam. Triunfante conclui que esses seres seriam todos, na verdade, representação da fruta, essa sim eterna e capaz de sobreviver às intempéries do tempo.

A fruta que Marx afirma ser para o filósofo “a substância da pêra, da maçã, da amêndoa, etc.” não é mais que, como ele diz, uma representação abstrata (desprovida de qualquer conteúdo real), um fruto da imaginação do filósofo. Uma abstração que o filósofo conserva como a verdade daquilo que está a sua frente, que eleva, desse modo, a algo mais relevante do que a própria realidade. Daí o motivo pelo qual Marx afirma que para ele “as frutas reais e específicas passam a valer apenas como frutas aparentes, cujo ser real é “a substância”, “a fruta”.”

Notemos: esta pêra é uma fruta; esta maçã é uma fruta, esta amêndoa é uma fruta (sic.), do mesmo modo, aquela pêra ou aquela outra pêra, esta maçã, etc. são frutas. Ora, conclui o filósofo, independentemente desta ou daquela realidade, temos a fruta. A fruta seria assim, na linguagem utilizada por Marx, a substância de cada uma das frutas reais, as quais seriam, por outro lado, apenas a fruta-aparente (que aparece – Scheinfrüchte).

Apesar do linguajar hegeliano – representação, abstração, aparência, substância, etc. – o que temos aqui é uma inferência formal, própria ao que Hegel combatera ao longo de toda a sua vida. A lógica formal, como bem colocava Aristóteles, busca alcançar aquilo que é essencial dos seres a partir de um processo analítico. Não importa se Sócrates tem 50 anos, cabelos brancos e gosta de carne de porco, a essência de Sócrates é a sabedoria – é o que faz de Sócrates, Sócrates e não Aristides.

Para Hegel essa forma de operar acaba retirando a vida do ser sobre o qual se fala. Observemos: tal como foi feito com as frutas, pode ser feito com a sabedoria: Platão é sábio, Agostinho é sábio, Epicuro é sábio. A sabedoria, a fruta, em suma, o predicado, preserva-se independentemente de Platão, Agostinho, da pêra, do sujeito. Por isso podemos dizer que o predicado passa a existir sem o sujeito, já os sujeitos não são nada sem o predicado. Daí a percepção que afirma que é o predicado que faz o sujeito e não o sujeito, como deveria, que faz o predicado. – A sabedoria de Sócrates pode existir sem Sócrates? A sabedoria de Sócrates é a mesma de Platão? A sabedoria por si só existe?

É por isso que Hegel busca compreender a essência, a substância, a verdade, no limite, o próprio sujeito como aquilo que predica. Assim a sabedoria passa a ser conforme Sócrates é, conforme ele age. Ela não existe sem Sócrates, do mesmo modo que não existe sem Platão. A sabedoria é uma manifestação de Sócrates, bem como de Platão. (Não vou levar esse exemplo ao limite, pois chegaríamos ao conceito de Espírito de Hegel, que se manifestaria por meio dos filósofos, esses que não mais seriam efetivamente sujeitos, mas predicados do absoluto, do sujeito universal, do Espírito).

Voltemos ao sr. Filósofo que visita o mercado. Ele erra já no início e, por isso, não consegue mais voltar ao ser real com o qual começou todo o raciocínio, daí a conclusão de Marx:

“A especulação, que converte as diferentes frutas reais em uma “fruta” da abstração, na “fruta”, tem de, para poder chegar à aparência de um conteúdo real, necessariamente tentar – e de qualquer maneira – retornar da “fruta”, da substância, para os diferentes tipos de frutas reais e profanas, para a pera, a maçã, a amêndoa etc. E tudo que há de fácil no ato de chegar, partindo das frutas reais para chegar à representação abstrata “a fruta”, há de difícil no ato de engendrar, partindo da representação abstrata “a fruta”, as frutas reais. Chega a ser impossível, inclusive, chegar ao contrário da abstração ao se partir de uma abstração, quando não desisto dessa abstração.”

A substância da maçã não pode ser a fruta. A fruta é apenas a categoria genérica que contém a maçã singular, tal como a essência de Sócrates não é ser homem, ou ser grego, essas são apenas categorias formais que englobam Sócrates. Em outros termos: um animal marinho não é uma essência deste tubarão tampouco daquela baleia. Daí o absurdo de se falar que esta baleia é a manifestação da essência, da substância da animalidade marinha.

O movimento analítico da lógica formal que parte do singular em direção ao universal pode ser descrito da seguinte maneira: o cisne branco é uma ave, a ave é um animal, o animal é um ser vivo, o ser vivo é um ser etc. Já o movimento sintético de tal lógica afirmaria que um ser que é vivo, um ser vivo que é animal, um animal que é ave, uma ave que é branca, pode ser (ou é) um cisne. Na primeira via, retira-se os predicados e chega-se ao que seria o mais fundamental e abstrato em relação àquele objeto; na segunda, adiciona-se ao fundamento, ao abstrato, os predicados até se chegar novamente ao singular, ao cisne. Podemos dizer, pois, que nosso sr. filósofo grande admirador da arte merceeira, age de acordo com a primeira via, mas, ao acreditar que está operando especulativamente, perde-se em si mesmo e consigo perde-se sua ideia de fruta.

É verdade que Marx acreditava estar, de certo modo, explicitando a deficiência da própria filosofia hegeliana, embora estivesse tanto atacando algo que Hegel já há muito havia criticado quanto enaltecendo o próprio método especulativo. Não surpreende, pois, que Marx, ao final de sua crítica a Szeliga reconheça que Hegel estava em um outro patamar, pois, além de apresentar seus argumentos com maestria, ele ofereceria, “dentro da exposição especulativa, uma exposição real, através da qual [seria] possível captar a própria coisa.”

Caricatura de Engels do encontro d’ “Die Freien” [Os Livres]

Em resumo, ainda que Marx tenha afirmado que “o mistério da representação crítica dos ‘Mystères de Paris’ [da Crítica crítica, aqui representada por Szeliga – Curi] é o mistério da construção especulativa, da construção hegeliana” e que “poucas palavras haverão de ser suficientes para caracterizar a construção especulativa de um modo geral”, devemos reconhecer que “o tratamento dos ‘Mystères de Paris’ encaminhado pelo senhor Szeliga” está longe de ser um tratamento hegeliano, logo, Marx pode até ter ali caracterizado a construção especulativa de Szeliga, mas jamais a de Hegel. Como vimos, a criticada “construção especulativa” não passa de uma construção própria à lógica formal que se utilizou do linguajar hegeliano e, nessa medida, revela sua total incapacidade de retornar ao objeto real do qual inicialmente havia partido. Ora, perguntemos, como então Hegel consegue ter “dentro da exposição especulativa, uma exposição real, através da qual é possível captar a própria coisa”? A resposta está no fato de que Hegel jamais utiliza de tal construção formal, ao contrário, concebe seu método especulativo a partir da mais profunda crítica a esse tipo de construção.

A crítica de Marx a Szeliga, ao pretender atingir Hegel, resulta em seu contrário. O compromisso de Marx com a verdade não permite que ele não diferencie o pensamento de Hegel do de Szeliga, de tal modo que acaba por confessar que seus métodos não são idênticos. Quando, junto a essa constatação, recuperamos a crítica de Hegel ao pensamento formal, devemos reconhecer que o esforço de Marx na verdade se identifica com o de Hegel, revelando que, mesmo procurando afirmar o contrário, nunca deixou de ser um discípulo do filósofo.

O que o desenvolvimento do pensamento marxiano demonstrará é que o método especulativo de Hegel estava certo, que a racionalidade hegeliana é a racionalidade par excellence e que apenas a razão que avança sobre toda e qualquer realidade imediata a fim de encontrar as abstrações que as constituem de tal modo que o imediato é mediato e que o mediato é imediato ou que o simples só é enquanto universal do mesmo modo que o universal só é enquanto simples alcança a verdade. Esta maçã disponível na banca de frutas não é a fruta, mas a manifestação da totalidade que faz com que esta maçã exista tanto como alimento quanto como mercadoria, ela é aquilo que faz com que a própria totalidade exista enquanto tal. Em suma: esta maçã é tanto causa como resultado do mundo das mercadorias.

--

--