Qual o problema com o capitalismo, afinal?

Pedro Ribeiro
Má  infinitude
Published in
5 min readJun 2, 2020

A postura que tomamos em relação ao capitalismo muitas vezes tem a ver com as relações mais imediatas que vivenciamos diariamente. Um chefe mesquinho, um colega de trabalho aproveitador, observar constantemente crianças passando por situações de vulnerabilidade extrema, entre tantas outras situações. Por conta disso, é importante levantar uma questão: é possível reduzir todo um sistema complexo às vivências individuais que experienciamos no cotidiano? Por acreditar que não, resolvi escrever essa breve reflexão sobre o tema para que novas questões possam ser colocadas.

Acredito ser importante iniciar pontuando que o capitalismo não é um mero sistema de dominação de uma classe sobre a outra como outros sistemas o foram. O lugar da exploração — esta que não pode ser compreendida em sentido moral, mas enquanto a apropriação de uma quantidade de trabalho não-pago — na sociedade capitalista é muito mais dinâmico e complexo do que nas outras sociedades. A começar pelo fato de que não há uma identidade imediata entre a possibilidade da exploração e a realização da exploração. A partir disso podemos desenvolver os seguintes pontos:

1. A exploração não é dada somente na relação individual entre trabalhador e patrão, ela é uma exploração regulada por um todo social.

2. Se o momento da exploração não coincide com a realização da exploração, isso quer dizer que é preciso disputar pela apropriação da riqueza produzida após o processo produtivo. Percebemos claramente como esse processo se dá quando vemos parte do lucro de um industrial ser destinado a pagar o transporte de sua mercadoria, parte ser destinada aos publicitários que farão a sua propaganda e outra parte escoar por meio dos juros do dinheiro que ele tomou emprestado do banco para fazer seu investimento inicial.

Se no capitalismo cria-se um montante de trabalho não-pago na esfera produtiva, na esfera da circulação há uma constante disputa pela apropriação dessa riqueza: onde um ganha, outro perde.

Mas por qual motivo esse processo de acumulação de riqueza opera incessantemente? Para se retroalimentar. A exploração ocorre para permitir que essa dinâmica que se apresenta como externa aos homens continue. Entretanto, o que essa dinâmica esconde é que ela é o processo de reprodução material da vida que se apresenta de forma estranhada na nossa sociedade. A humanidade no nosso tempo só pode se realizar por meio dessa dinâmica de troca, trabalho privado, etc, mas não é assim que as coisas têm que ser.

Não podemos, portanto, ser ingênuos. O burguês bondoso que decidir não compactuar com esse sistema de exploração da classe trabalhadora será logo descartado, fechará as portas e o seu trabalho será executado por outro. Não há, nesse sistema, empresário que possa decidir da noite para o dia triplicar o salário dos seus empregados por livre e espontânea vontade. Quem regula toda a atuação dos capitalistas (assim como da pequena-burguesia) é a concorrência e é a ela que eles servem. O nosso problema com a classe capitalista não pode residir na sua voracidade pelo lucro; o que buscamos abolir é a existência dos capitalistas enquanto classe, assim como isso abolirá a própria classe trabalhadora. Não se trata de quais indivíduos estão em cima ou embaixo — o capitalismo é realmente um sistema que possibilita certa mobilidade de classe — mas a existência mesma dessas posições “de cima” e “de baixo” na sociedade, que são necessárias para a sua manutenção.

O que se coloca com isso é que se a classe trabalhadora é sujeita à exploração e alimenta o sistema, os capitalistas também funcionam como mero apêndice do capital e operam apenas como reprodutores deste. O que o capitalismo faz é colocar todos nós subjugados à sua lógica de reprodução infinita; é o capital quem rege todo o processo de reprodução da vida material porque ele é o senhor todo poderoso que dita as regras. Seria, portanto, infundado colocar na conta dos capitalistas a centralidade do problema. Eles sofrem as consequências da dominação do capital, de forma distinta dos trabalhadores, é claro, mas não é como se uma vida destinada ao lucro e acumulação sem fim fosse uma vida de realizações plenas e sem consequências nas suas relações com a família, amigos e com a sociedade.

Por qual motivo, mesmo com os grandes avanços da tecnologia, não temos no nosso horizonte a redução da jornada de trabalho? Como todo o nosso progresso e a nossa capacidade de automatizar processos produtivos se traduz muitas vezes em desemprego e não em prosperidade? O nosso horizonte hoje é o do trabalho como fim em si mesmo. Todo o nosso avanço parece não servir para as nossas vidas. Para um trabalhador, vale a pena ter como perspectiva de vida abrir o seu próprio negócio e continuar trabalhando de forma incansável? É esse o maior sonho que conseguimos vender para as pessoas, o do trabalho abstrato, que sabemos que do ponto de vista da realização humana, muitas vezes não nos acrescenta nada. As nossas justificativas para agir assim são puramente econômicas, são pensadas pela cabeça do capital, não pelas nossas cabeças.

É por essa razão que o fim desse sistema não é só o fim da divisão da sociedade em classes, mas a sua superação por uma forma de organizar a sociedade que inverta a sua lógica. No lugar dos homens como suporte para a manutenção do capital, o bem-estar humano terá centralidade nos rumos que a sociedade decidir tomar. O processo de reprodução da vida material deixaria de caminhar com as próprias pernas, independente da humanidade, e teria como objetivo central atender as nossas necessidades. Isso melhorará imensamente a vida não só dos trabalhadores, mas também a vida de milhões de empresários — bem sucedidos ou não — que só desempenham o seu papel na reprodução do capital e que poderiam desfrutar de muito mais tempo livre e relações pessoais mais saudáveis. O que buscamos fazer é colocar a nossa própria produção para nos servir, onde a totalidade social que regulará nossas relações e produção material será a da comunidade e não mais a do capital. Isso não significa a instauração da era da liberdade ou da igualdade, mas a da abundância, da redução drástica do tempo de trabalho e principalmente de um profundo amor ao próximo.

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